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Queremos nos ver em Wandinha Addams

Sem sorrisos, sem demonstrações de afeto ou entusiasmo. Roupas escuras e sapatos pesados. Fria, sarcástica e de língua afiada. O contrário do “seja simpática, sorria mais, seja delicada, use roupas leves, não se desgaste”. A Wandinha Addams de Jenna Ortega é, de muitos jeitos, como nós queríamos ser.

Não é a primeira, e provavelmente não será a última vez, que a personagem é trazida ao público. Na verdade, Wandinha (ou para quem é apegado ao nome original, Wednesday) surge como uma personagem sem nome, nos quadrinhos de Charles Addams e assim permanece por mais de 20 anos. A família mais estranha e mórbida conquistou leitores ao satirizar o ideal da classe média estadunidense e sua vida de aparências e, provavelmente, não imaginou que quase 100 anos depois, ainda seria assistida e discutida — como se fosse uma invenção de agora.

De lá pra cá vimos diversas versões de Wandinha, em animação e live-action, no cinema e na televisão, aclamadas e rejeitadas, mas todas com pontos em comum. Para além das tranças e dos vestidos, Wandinha tem gostos peculiares, moralmente questionáveis, indo na direção contrária daquilo que se é esperado de uma menina, seja ela uma criança ou uma adolescente — que todo mundo gosta de opinar como deveria ser.

Wandinha

“— Wandinha está naquela fase em que as meninas só pensam em uma coisa.
— Meninos?
— Homicídio.”

A imagem de Wandinha é forte não apenas por ir contra o que esperam dela, como também por ter o apoio da família em ser quem é, afinal, ser de uma família que já é vista como estranha te motiva a ser mais estranha ainda. Seja porque Morticia não impede nenhuma das brincadeiras que faz com o irmão ou porque Gomez exalta sua mente perversa, Wandinha tem liberdade para ser ela mesma e, por isso, quando alguém a critica, isso não a abala — na verdade, a motiva ainda mais: estranho é o padrão e o normal é facilmente desprezado pela garota.

Entre as diferentes performances que tivemos ao longo das décadas, Cristina Ricci se destacou por trazer mais dessa Wandinha que não se importa com a opinião alheia, é fiel aos seus gostos e desejos, tem cara de poucos amigos e pouca paciência, mas que se empolga com comidas estranhas e ao eletrocutar o irmão. Sua imagem é (ou era) a primeira a vir à mente do público ao pensar na personagem, que se transformou em um ícone feminista da década de 1990. Até 2022, quando foi a vez de Jenna Ortega entrar nessa dança e, sem tentar copiar ou superar Ricci, entregar a sua própria Wandinha: uma versão vista principalmente como intimidadora e, por isso, muito fácil de gostar.

Wandinha

Wandinha, a série, começa com a personagem andando pelos corredores de uma clássica escola estadunidense, sendo julgada da cabeça aos pés por meninas “padrão” e com looks idênticos, para logo em seguida se vingar dos garotos que abusaram de Pugsley (Isaac Ordonez), seu irmão, pois ela é a única que pode torturá-lo. Wandinha é expulsa da escola — o que, aparentemente, não acontece pela primeira vez e pelos mesmos motivos — e é transferida para Nevermore, uma escola para outras criaturas estranhas e mal vistas pela sociedade. É a mesma escola onde Gomez (Luis Guzmán) e Morticia (Catherine Zeta-Jones) se conheceram e sua esperança é que a filha se adapte — o que não acontece.

Cada um em Nevermore — Enid (Emma Myers), Xavier (Percy Hynes White), Bianca (Joy Sunday), a diretora Weems (Gwendoline Christie) — tem uma opinião sobre como Wandinha deve se portar, com quem fazer amizade e se relacionar. Nada disso importa ou define como a personagem se coloca nesse novo e desconhecido ambiente, no entanto. Focada em dar um jeito de ser expulsa e resolver um mistério, Wandinha é de poucos sorrisos e não está aberta a afetos — seria possível contar nos dedos do Mãozinha (Victor Dorobantu) os momentos em que isso acontece. Antes de sabermos as intenções da professora Thornhill (Christina Ricci), ela elogia a capacidade da menina de não se importar com os outros, algo que não é encorajado a meninas adolescentes, que estão sempre ouvindo que poderiam melhorar em sua aparência, gostos e comportamento.

Com todas as suas peculiaridades, o ápice desse aspecto da personagem ocorre na já muito exalta cena da dança no baile. Além de entregar uma cena icônica que resume o amor que Wandinha tem por ser quem é com todas as suas estranhezas, é um dos momentos de mais entrega no trabalho de atuação de Ortega, com um compilado de pesquisas e referências presentes em menos de um minuto de cena.

“— Eu finjo que não ligar que não gostam de mim, mas, no fundo, eu curto secretamente.
— Nunca perca isso, Wandinha.
— Perder o que?
— A capacidade de não deixar os outros te definam.”

Pelo bem do roteiro, Wandinha é a única estranha no meio de estranhos e não faz questão de se encaixar, muito menos de se adaptar ou criar relacionamentos. Ao dividir o quarto com Enid e sua explosão de cores, o ambiente é dividido exatamente ao meio, deixando plumas, glitter e cores de um lado, e a simples cama, seu guarda-roupa em tons de preto e a máquina de escrever, do outro lado. Ao longo dos episódios, no entanto, vemos, gradualmente, a amizade entre as duas crescer — o que envolve se aproximar, se afastar, entender os limites e como amizades são essenciais para cada uma, ao seu modo.

Em paralelo aos acontecimentos da escola, ainda há a relação entre mãe e filha. Se, quando a personagem surgiu nos quadrinhos, era definida como “a filha de sua mãe” (her mother’s daughter), agora vemos uma versão que deseja se afastar daquilo que a mãe é e das expectativas que esta projeta nela. Resgatando a versão de Ricci, Wandinha fala que não é, e nem quer ser, o que a mãe é — ter um relacionamento amoroso, casar e ter filhos. Ao contrário do que se vê em Ricci, a Wandinha de Ortega afasta a mãe que, mesmo incomodada e magoada, aceita o momento da filha, até que ambas possam aceitar que são diferentes e que isso é bom, tanto para si quanto para o relacionamento delas. Tanto o relacionamento com Enid, quanto o com Morticia exigem que Wandinha entenda que ser quem ela é não precisa significar ser sozinha.

“— Dizem que as garotas da sua idade falam maldades para machucar o coração de uma mãe.
— Ainda bem que você não tem um.
— Enfim uma palavra de bondade para a sua mãe.”

Wandinha tem seu estilo, seus gostos, suas ambições — publicar um romance que nenhuma editora rejeite por ser mórbido demais — e sabe que só conseguirá tudo isso sendo quem é, por isso, agradar os outros não é uma opção.

Vale voltar ao ponto de como a personagem diz que não deseja se apaixonar e se relacionar, para, poucos episódios depois, se ver no meio de um triângulo amoroso. A própria atriz disse que tentou convencer os roteiristas a deixarem a ideia de lado, uma vez que “Em relação aos meninos, eu só tive que aceitar o que os roteiristas queriam. Honestamente, eu sempre fui fortemente contra e sempre serei com essa coisa do triângulo amoroso, porque tento proteger a personagem. Falei inúmeras vezes, que acredito que Wandinha jamais se envolveria em um triângulo amoroso. Eles me disseram para confiar, que não seria como costuma ser”. E foi. Mais uma vez.

Essa imagem é forte para nós, mulheres adultas, que olham para a adolescência e pensam que não queriam ter aberto mão de quem eram para agradar os outros — família, grupinhos do colégio, meninos, outras meninas que também estavam abrindo mão de quem eram. Por isso, ver uma personagem icônica há anos estar de volta às telas e às rodas de conversas é tão arrebatador, a ponto de pensarmos que queríamos ser como ela.

Como a internet e o machismo não deixam nada passar, a resposta imediata foi desprezar essas mulheres, tanto por gostarem e se divertirem com uma série adolescente, quanto com a manifestação de querer ser essa mulher intimidadora e segura. Não ironicamente, escrevo esse texto na semana da infeliz manchete da Folha a respeito do show do Backstreet Boys (“Backstreet Boys atiram cuecas para trintonas em show nostálgico em SP”). Sabemos que se a série tivesse um tom mais adulto ou, principalmente, tivesse uma figura masculina com as exatas mesmas características, ele seria muito bem visto, um exemplo de um menino amadurecendo, se tornando um homem decidido, focado e que ninguém passa por cima dele. Não existiria nenhum problema em meninos e homens se identificando com esse possível e hipotético personagem.

Wandinha ainda não é a resposta de toda imagem positiva que queremos ver nas mídias, afinal, ainda se encaixa em alguns padrões, mas ela é um respiro para aquelas que cresceram com outras imagens moldadas para agradar a sociedade, e é uma ponta de esperança para aquelas que estão crescendo. A imagem de Wandinha retornará para uma segunda temporada, com uma Ortega que vem se tornando mais influente, reconhecida e trazendo uma imagem feminina que convida meninas e mulheres a serem quem são.

2 comentários

  1. Amei💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖
    💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖💖

  2. Amei demaiss, parabéns pela matéria, realmente incrível tudo que foi dito e escrito, nunca alguém fez uma crítica tão bem feita, aceitando a personagem, e colocando ela pra cima, e mostrando o porquê que todos amarem ela.🖤🖤🖤🖤🖤🖤🖤🖤🖤🖤🖤

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