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Pearl, um filme de horror para os tolos que sonham

A necessidade humana de fuga da realidade é algo difícil de ser datado. Na literatura, ela está presente pelo menos desde os poemas de Homero, escritos no século VIII a.C. Logo, o escapismo faz parte da cultura desde que o mundo é mundo, mas o seu sentido extrapola bastante a ideia de digressão mental de defesa, um dos significados dicionarizados da palavra. Em alguns casos, o termo adquire a conotação de libertação de uma realidade opressora e na modernidade encontra na cultura pop o seu terreno mais fértil. Desse modo, não é difícil explicar o sucesso de super-heróis ou de sagas de fantasia. O ócio produtivo proporcionado por produtos desses segmentos exerce perfeitamente a função de teletransporte à medida que permite o desligamento de uma série de questões aflitivas.

Atenção: este texto contém spoilers!

Considerando esses aspectos, o cinema pode ser destacado como a grande arte escapista do século XX e isso está presente nos filmes desde que as pessoas abandonaram a sala no Boulevard des Capucines com medo de serem atropeladas por um trem, em 1895. Desde a ocasião, a suspensão de descrença é algo marcante, fazendo com que aqueles que têm contato com uma determinada obra sejam capazes de acreditar em eventos pouco plausíveis devido à capacidade das câmeras de levá-los para as dimensões que os cineastas desejam que eles ocupem — sejam estes locais galáxias muito distantes ou uma estrada de tijolos amarelos.

Pearl

Apesar dos contornos positivos do escapismo, é importante ressaltar o seu lado negativo, que está ligado à alienação. Ela surge a partir do momento em que a realidade lúdica começa a atrapalhar o indivíduo na realização das suas obrigações e interações sociais, fazendo com que seja cada vez mais difícil para ele se adaptar aos seus entornos. No cinema, esse lado pode ser visto com clareza através do horror, um gênero que frequentemente se interessa por personagens cujos conflitos interiores não são bem resolvidos. Logo, as suas jornadas estão diretamente ligadas ao enfrentamento de si mesmos e à tomada de consciência de quem eles são. Um exemplo recente que ilustra perfeitamente essa questão é Pearl, longa dirigido por Ti West.

Escrito por West e Mia Goth, Pearl é um brilhante estudo de personagem. O roteiro foi pensado durante as gravações de X – A Marca da Morte como uma forma de fazer com que Goth compreendesse as motivações de Pearl e aquilo que a transformou na idosa sedenta por sexo e sangue que conhecemos no primeiro capítulo lançado da trilogia. Assim, o longa volta para o ano de 1918, contexto no qual a personagem-título vivia em uma fazenda com os seus pais e esperava pelo retorno do seu marido da guerra. À época, ela se sentia oprimida pela realidade de trabalho e pobreza, de modo que o seu escape era sonhar com uma vida de estrela de cinema, algo que seria capaz de retirá-la daquele ambiente e, principalmente, de fazer com que ela não tivesse o mesmo destino servil que a mãe. Devido a estes devaneios, sempre que a oportunidade se apresentava, Pearl se refugiava no cinema, ignorando que o dinheiro poderia fazer falta para suprir as necessidades básicas da família. Então, quando uma trupe de dança promove um teste na cidade, ela passa a compreendê-lo como o seu bilhete para fora dessa situação.

É interessante notar como o uso do technicolor serve a essas questões. A técnica era bastante comum aos musicais e melodramas hollywoodianos da era clássica. Com suas cores acentuadas, ela foi a responsável pela magia evocada por clássicos como O Mágico de Oz, E O Vento Levou e Cantando na Chuva. Em Pearl isso se repete: sempre que a protagonista está sozinha e perdida nos seus sonhos, os tons de vermelho, amarelo, azul e verde enchem a tela. Assim, quem assiste é levado a acreditar nas mesmas possibilidades que Pearl e a ignorar a perversão presente nas suas ações.  Além disso, ao mesmo tempo em que as cores se chocam com a brutalidade do filme, elas contribuem para a construção do horror porque fazem parte do escapismo da personagem: a fotografia é mais viva sempre que ela está fora do ambiente doméstico e quando ela retorna os tons terrosos assumem o primeiro plano, reforçando as falas amargas da mãe e distanciando Pearl da sua grande chance de brilhar.

Esse uso das cores também contribui para a construção da personalidade da personagem que é, na mesma medida, inocente e feroz. Enquanto a primeira característica surge sempre que ela acredita facilmente em qualquer um que lhe diz que ela é capaz de alçar voos maiores, a ferocidade assume o comando quando é contrariada — especialmente quando isso faz com que ela se sinta invisível. Pearl é, antes de tudo, uma exibicionista. Isso pode ser ilustrado pelo fato de que os seus impulsos assassinos foram sublimados pela presença do marido, que demonstrava constantemente a sua admiração por ela. Ao perder Howard (Alistair Sewell), ela precisa encontrar novas formas de ser vista e amada. Em um primeiro momento, Pearl consegue suprir essas necessidades através do seu breve caso com o projecionista da cidade (interpretado por David Corenswet), mas assim que ele revela as suas verdadeiras intenções, as fantasias da personagem são trincadas e o real volta a se impor, levando-a a uma reação de extrema violência que mostra a faceta negativa do escapismo uma vez que a dificuldade de aceitar e de se adaptar ao seu contexto é o principal gatilho de Pearl.

Pearl

Pearl é um filme entregue a sua protagonista, algo incomum especialmente quando se fala a respeito de vilãs. E o monólogo próximo do final é o exemplo perfeito disso. Com a câmera focada do seu rosto por longos minutos, Mia Goth expõe as fragilidades, a perversidade e os sonhos de uma personagem que é o reflexo de um meio repressor. Ao fazer isso de uma forma corajosa e assustadora, a atriz consolida a sua atuação como uma das melhores do ano e nos remete a outra personagem clássica do cinema: Blanche Dubois, interpretada por Vivien Leigh em Uma Rua Chamada Pecado. Em uma determinada cena do filme de Elia Kazan, Blanche afirma que não se interessa por realismo e sim por mágica. Também fruto de uma realidade que a condena e de uma enorme necessidade de ser admirada, ela existe no mesmo espaço de ambivalência que Pearl e encontra um destino tão cruel quanto o dela.

Portanto, embora Ti West e Mia Goth estejam trabalhando com uma personagem cujos traços de maldade são impossíveis de ignorar, eles também estão lidando com uma mulher que resiste e que busca a sua liberdade, ainda que ela faça isso deixando uma trilha de corpos pelo caminho. Logo, é possível afirmar que Pearl um filme de horror para “aqueles que sonham, por mais tolos que possam parecer”. Ainda que eles fracassem, tropecem e acabem presos em uma realidade deformada.

2 comentários

  1. Eu adorei esse filme.
    E na minha opnião, a atriz Mia Goth deveria ser ao menos indicada ao Globo de Ouro 🥇 já que não foi ao Oscar.
    Porque simplesmente o papel dela está incrível demais.

  2. Eu definitvamente não sei porque o google notícias recomendou esse site ou esse artigo, mas eu fiquei interessado em entender a lógica do filme, entretanto eu sou burro de mais pra algo tão profundo quanto esse texto.

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