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Sobre Pantanal, Velho do Rio e Guimarães Rosa

Pantanal, novela de Benedito Ruy Barbosa, adaptada por Bruno Luperi, foi uma obra de grande sucesso que tem como pano de fundo a saga familiar dos Leôncio e a própria natureza. Um de seus personagens marcantes é o Velho do Rio, um encantado, entidade mítica protetora do Pantanal. Nota-se que o conto “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa, serviu como inspiração para o personagem, que aborda o luto e o mistério da vida e da morte.

Na novela, Joventino Leôncio é o pai de Zé Leôncio (Marcos Palmeira/ Cláudio Marzo) e há anos desapareceu ao ir caçar bois selvagens. Muitas pessoas acreditam que um certo idoso curandeiro, que segundo a lenda se transformaria em sucuri, seria Joventino Leôncio. Todavia, Zé Leôncio questiona porque o pai, se vivo, não apareceria para o próprio filho e optaria por viver como um ermitão em meio ao pantanal.

Ocorre que Joventino Leôncio tornou-se o Velho do Rio (Cláudio Marzo/ Osmar Prado), um encantado, que habita o entremeio do plano físico e espiritual. Como disse Guimarães Rosa, pouquíssimos dias antes de falecer, “as pessoas não morrem, ficam encantadas.”

Ainda segundo Osmar Prado, que deu vida ao personagem no remake: “Esse é um personagem especial. É um poeta, um filósofo, um homem que só na transcendência poderia ser o que é, falar o que tem que falar. Ele representa a libertação do mundo, da terra.”

Jove (Marcos Winter/Jesuíta Barbosa), o neto, chega a fazer uma fotografia do Velho do Rio, no entanto, Zé Leôncio não consegue visualizar nada, a não ser um feixe de luz em uma canoa. Somente quando prestes a falecer, Zé Leôncio consegue, finalmente, visualizar o pai na fotografia. Ele encontra-se com o Velho do Rio, que afirma nunca ter lhe aparecido por causa da sua incredulidade. Então, afunda pouco a pouco no rio, até que resta somente o chapéu de palha e a capa, boiando. Zé Leôncio então assume o posto de Velho do Rio.

O Velho do Rio é um dos personagens memoráveis de Pantanal, que lhe dá o tom de realismo fantástico. O conto de Guimarães Rosa, “A Terceira Margem do Rio”, publicado em Primeiras Estórias, visivelmente, serviu de inspiração para o personagem Velho do Rio. Inspirou, também, a música de mesmo nome, de Caetano Veloso e Milton Nascimento.

“A Terceira Margem do Rio” é um daqueles textos indecifráveis, que guardam o segredo da vida e da morte, mais ainda, do que está entre elas. Trata-se da história de um homem que um dia, sem mais nem menos, decide preparar uma canoa e parte, sem explicação, apenas para nela flutuar nos braços do rio. Aquele homem, sozinho, numa canoa que só cabia a ele.

Quem parte em busca de si mesmo raramente é compreendido. Isso implica certo componente de solidão, despojar-se daquilo que é seguro, conhecido, as “bagagens da vida”. Esse alguém também não consegue traduzir o seu encontro consigo. A família não o acompanhou, e, com o tempo, desiste de lhe prestar assistência. Não entendia os seus porquês. Somente o filho sente o elo, um dever para com o pai, que não sabe precisar qual é, uma espécie de chamado.

Pai e filho estão separados pela terceira margem do rio, um espaço transcendental, mítico. Existe rio com três margens? Estão separados pela ocorrência da morte, quem sabe, pois o conto não está explícito o falecimento do pai. Pouco sabemos deste conto, mas intuímos.

Há uma interpretação segundo a qual a terceira margem seria uma metáfora para o luto. O filho alimenta a lembrança do pai, simbolizada pela insistência em levar-lhe alimentos, numa ritualística, enquanto o restante da família segue o seu curso. Ele, por outro lado, não segue adiante, está à margem, incumbido da missão de alimentar a memória do pai, para mantê-lo, de alguma maneira, vivo. Onde antes havia apenas o rio, agora existe a presença do pai. Contudo, ele não se deixa ser apreendido — como a água, escorre por entre os dedos. Só no momento derradeiro é que o filho se propõe a tomar o lugar do pai como canoeiro solitário, cuja missão não sabemos, talvez seja estar em contemplação da imensidão do rio.

Depois de tanto tempo, o pai manifesta reação e o saúda. Porém, ao contrário do personagem Zé Leôncio, aqui o filho hesita, foge, porque o pai parece vir do além. Assim, o filho, arrependido, pede que após a sua morte seja colocado numa canoa, então se tornará o rio:

“E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha e nada, nessa água, que não para de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro — o rio.”

João Guimarães Rosa (1908–1967) foi um diplomata, médico e escritor brasileiro, conhecido por retratar o sertão, pela escrita que espelha a oralidade e o uso de neologismos. Guimarães Rosa falava 20 idiomas, daí então criava o seu linguajar próprio, vindo quiçá do plano metafísico.

No livro Tutameia, Guimarães Rosa relata que a ideia para o conto lhe ocorreu na rua, de forma pronta e brusca, como que de fora, tanto que ele instintivamente ergueu as mãos para pegá-la. Segundo ele, o escritor está face a face com o infinito, é um descobridor, arquiteto da alma.

Disse Guimarães Rosa:

“[…] amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.”

No pantanal, onde muitos vivem ilhados, o rio é estrada, a vida também segue o curso das águas. A maior planície alagável do planeta hoje é castigada pelas mudanças climáticas.

O que é a vida senão esta travessia solitária, na qual estamos numa canoa, em margem desconhecida. A correnteza bate no casco, faz com que nos percamos, guia-nos para onde as águas são profusas, vívidas. Temos que aceitar o que há de misterioso, de insólito nessa travessia. Ser fluidos, fundir-nos com o rio que se estende “grande, fundo, calado que sempre”, como descrito por Guimarães Rosa. Há um rio que nos atravessa por dentro.


Referências: 

FARIA, Maria Lucia Guimarães de. Travessia para a solidão: “A terceira margem do rio”. In: XI Congresso Internacional da ABRALIC, USP – São Paulo, Brasil, 2008.
MORAES, Daniel Silva. A invenção de uma terceira margem: dissolução do sujeito e devir-rio. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) — Universidade Estadual de Montes Claros, 2017.
ROSA, João Guimarães. Entrevista concedida a Günter Lorenz
WISNIK, José Miguel. A terceira margem do rio (Guimarães Rosa)