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The L Word: Generation Q

Três anos se passaram desde que analisamos o que The L Word representou para cultura pop e diversas pessoas, principalmente lésbicas, que estão por aí. Na ocasião, o texto foi encerrado com o comentário de que precisávamos de uma nova era com mais seriados, filmes e representatividade para um grupo tão invisibilizado. Bom, nada mudou. Foi preciso que a mesma série retornasse quinze anos depois — com The L Word: Generation Q — para que continuássemos ocupando nosso lugar. Não devemos esquecer de diversas séries que deram espaços e boas histórias para as mulheres lésbicas, porém, nenhuma delas focada exclusivamente em nossas vidas.

Atenção: este texto contém spoilers

The L Word: Generation Q estreou no final do ano passado e nos deu a oportunidade de matar a saudade de Bette (Jennifer Beals), Alice (Leisha Hailey) e Shane (Katherine Moennig). Junto com nossas três queridas personagens, saindo do foco de West Hollywood para Silver Lake, somos apresentadas ao um novo ciclo de personagens que, em como bom mundo gay, estão ligados à elas de alguma forma. Generation Q nos apresenta um grupo de amigos formado por Dani (Arienne Mandi), Sophie (Rosanny Zayas), Micah (Leo Sheng) e para completar o grupo, temos Finley (Jacqueline Toboni).

Desde a cena de abertura em Generation Q, onde mostra o casal Sophie e Dani fazendo sexo menstruadas — incorporando detalhes como resíduos de sangue nas unhas e limpando o rosto — somos introduzidas aos personagens atuais mostrando que a série evoluiu e que quer sim chamar atenção para os assuntos que ainda são considerados tabu.

The L Word: Generation Q

O elenco atual retrata melhor a diversidade de gênero e etnias de Los Angeles. Uma das críticas feita no texto passado, e pelo público no geral, se referia sobre quão branca e heteronormativa The L Word era — logo essa mudança não foi apenas um caminho natural de inclusão e diversidade mas necessária. Na série clássica nós tínhamos dois exemplos de mulheres negras, as irmãs Bette e Kit Porter (Pam Grier). Infelizmente, Kit não participa dessa temporada e é revelado no meio da trama que o grande motivo de Bette concorrer a prefeitura é para colocar um fim na crise do ópio na cidade que influenciou a morte de sua irmã. Kit sempre foi tratada como a “trabalhosa” que se envolvia com drogas, álcool e travava uma batalha dura contra o vício que nunca conseguiu vencer. Bette, ao contrário, sabia navegar muito bem em cenários sociais devido ao seu tom de pele mais claro, mas principalmente por ter aceitado se adequar ao sistema.

O interesse da série nunca foi retratar e explorar os problemas políticos e culturais da comunidade LGBTQI+. Como sua música tema original dizia — “Talking, laughing, loving, breathing, fighting, fucking, crying, drinking” [“Conversando, rindo, amando, respirando, brigando, transando, chorando, bebendo”] —, The L Word sempre foi uma série muito mais próxima de uma novela queer e não existe problema nenhum nisso. Inclusive, a série se passa em um universo quase utópico onde todos os personagens tem empregos interessantes — ou modernos o suficiente para que o grande público não entenda a incoerência de sua rotina com a trama, estilos muito mais refinados do que grande parte dos seus empregos pode pagar ou casas que dificilmente entrariam em seu orçamento. A crítica sobre a aproximação que a série tem com uma vivência lésbica real é muito pertinente, mas quando entendermos que assim como temos séries que tentam ser realistas em sua trama, The L Word nunca se propôs a ser uma delas, é mais fácil aceitar o cenário improvável em que as coisas acontecem.

Vamos começar com a Finley, um grande exemplo do que faz uma personagem ser popular dentro e fora da série: ela é engraçada, imatura e é introduzida na trama como uma pessoa atrapalhada que rouba a bicicleta da menina com quem transou na noite anterior, deixando seu carro na garagem da mesma porque está sem gasolina e atrasada para o trabalho. A mesma Sarah Finley que acaba morando de favor na mansão recém comprada de Shane porque foi arrumar alguns móveis para ela e as duas acabaram se dando bem. Finley é aquela amiga que todo mundo tem: sempre de bom humor e animada, que topa qualquer tipo de programa e com quem não existe tempo ruim. Mas quando você começa a conhecê-la de verdade, percebe por quantos problemas ela já passou e como isso reflete na sua personalidade extrovertida para que não seja necessário lidar com nenhum deles.

The L Word: Generation Q

No início da temporada, nós não conseguimos perceber tantas camadas, mas felizmente seu desenvolvimento é significativo e aos poucos a história e os traumas de Finley vão se revelando. Seu relacionamento com Rebecca (Olivia Thirlby), a reverenda, traz à tona seu histórico familiar e seu problema com religião. Sua família não aceita sua orientação sexual e por isso Finley foi obrigada a deixar sua cidade natal em busca de algum lugar que sinta pertencer. O afastamento da família já é motivo suficiente para deixá-la para baixo, mas ela tenta não demonstrar e uma das armas que usa para camuflar esse sentimento é a bebida — em determinado momento da série ela chega a mencionar que não se lembra da última vez que fez sexo sóbria com alguém. A quantidade de consumo de álcool de Finley influencia diretamente na trama de Tess (Jamie Clayton), a gerente do bar de Shane. Tess está sóbria há alguns anos, mas acaba deslizando em uma noite de bebidas e sexo com Finley. Não é preciso olhar com muita atenção para perceber que a bebida mascara problemas e traumas de ambas as personagens, mas em nenhum momento é mostrado como é preocupante a forma com que Finley lida com o álcool. Inclusive, esse é um problema bastante presente na comunidade LGBTQI+ e que não é discutido com a importância necessária, normalmente sendo interpretado como um traço da personalidade ou algo engraçado — o que está longe de ser toda a verdade.

Outras duas personagens novas na série são Dani e Sophie. Dani é focada, ambiciosa e tem um desejo muito grande de fazer algo que importe com a sua vida. Nos primeiros episódios acompanhamos Dani bater de frente com o seu pai sobre seu casamento, por ele não aprovar Sophie, e também em relação aos seus valores no trabalho e dinheiro. Em determinado momento, Dani conhece Bette e fica admirada com sua ética, vida profissional e pessoal. Essa relação, em minha opinião muito mal explorada, é um grande arco da primeira temporada. É visível que Dani é uma versão mais nova e moderna de Bette e acompanhar essas personagens tão parecidas convivendo e trabalhando juntas poderia ser motivo suficiente para que ambas repensassem diversas atitudes que tem. Sophie é uma produtora executiva do programa de Alice e muito amiga de Finley. Desde o início do primeiro episódio quando Dani pede a mão da Sophie em casamento, nós observamos como ela prioriza muito mais as suas relações pessoais e familiares do que o trabalho, ao contrário de Dani. É possível compreender o lado de Sophie muito mais que o de Dani, mas isso não a faz uma personagem coerente e muito menos uma pessoa perfeita. As atitudes de Sophie em relação a Finley, após a falta de apoio e atenção de Dani, são impulsivas e egoístas. É uma pena que o único casal mais jovem, e mais provável do público se identificar, seja abordado de uma forma em que ambas se tornem muito mais completas quando focam em sua relação, e não em suas próprias jornadas.

Uma das principais críticas feitas a série original foi o tratamento do personagem transexual Max (Daniela Sea), interpretado por uma atriz cisgênero. Seu enredo era confuso e cheio de questões que traziam desconforto. Não precisamos relembrar tudo que fizeram o personagem passar e como sua história foi encerrada de uma maneira ofensiva e dolorosa para quem assistisse. Micah é um personagem com muito mais potencial, mas ainda raso: fofo, tímido, gay procurando por amor e ainda definido por sua transição. Micah passa a temporada inteira envolvido com Jose (Freddy Miyares) tentando entender que relação eles têm. Jose é misterioso e interessante, aos olhos de Micah, mas completamente imprevisível em suas atitudes e comportamentos. Em alguns momentos é carinhoso e em outros simplesmente desaparece. Isso faz com que toda insegurança de Micah aflore, algo ligado diretamente com o fato de ser trans. A maneira como a temporada termina e deixa sua narrativa em aberto não é das mais positivas. No elenco principal, Micah é o único jovem trans e justamente ele tem sua história visivelmente menos desenvolvida se compararmos com as tramas das demais personagens. Sua ligação com todo elenco vem de dividir a casa com Sophie e Dani, e nada mais. Não sabemos muito sobre sua vida profissional, pessoal ou antes do que acompanhamos na série, além de ter namorado Dani na faculdade. Na metade da temporada, tivemos um episódio onde conhecemos sua mãe e como ele se sente em relação a ela, mas no momento de aprofundar sua narrativa familiar usaram a carta fácil da postura da mãe com problemas com a transição do filho.

Brian Michael Smith, outro dos quatro atores trans na série, que interpreta Pierce Williams, o gerente de campanha de Bette, disse em uma entrevista “que isso aprisiona os personagens transexuais fazendo parecer que a única coisa interessante sobre nós é a nossa transexualidade. Imagine se cada série de televisão sobre uma mulher cisgênero falasse sobre a puberdade”. No caso de Pierce, só descobrimos sua transexualidade em uma de suas últimas cenas. Outros atores transexuais que têm suas próprias histórias, mas muito mal aproveitadas, são a incrível Jamie Clayton, que interpreta Tess, e sua recaída com o álcool após uma noite de bebedeira com Finley, e Sophie Giannamore, que interpreta Jordi, interesse romântico de Angie (Jordan Hull), filha de Bette. Não é claro se seus personagens foram escritos como mulheres trans ou não, mas são dois passos positivos para uma história cheia de potencial.

Angie é uma das belas surpresas de Generation Q. Aproveitar para naturalizar o relacionamento lésbico entre adolescentes é um assunto extremamente importante e necessário para um seriado deste tamanho. Desde o início, quando acompanhamos o desenvolvimento e aceitação dos sentimentos de Angie por Jordi, nós nos sentimos dentro de uma comédia romântica adolescente. Suas mães e amigas da sua mãe (tia Shane!) a ajudam a expressar o sentimento que tem pela amiga. Em uma cena doce, assistimos Angie se declarando para Jordi e as duas tendo seu primeiro beijo. É um alívio ver um romance tão puro nascer e espero, do fundo do coração, que continuem focando no crescimento de Angie e a naturalização dos primeiros relacionamentos lésbicos. Está mais do que na hora que produções mostrem que está tudo bem ser lésbica e que você também pode viver uma positiva experiência amorosa quando adolescente. Todas nós nos apaixonamos e temos uma experiência de primeiro amor, mas poucas são as vezes que na cultura da televisão e do cinema mostraram o romance entre duas garotas como algo natural e uma história feliz.

Em outros assuntos, uma das minhas maiores tristezas assistindo a série atual é que não existe um lugar de encontro. O Dana’s foi cenário para um dos melhores episódios e cenas dessa primeira temporada. O The Planet era parte importante da narrativa e se foi assim como grande parte do elenco original — e aceito isso. Entretanto, a relação entre os personagens dos dois grupos é muito dividida e a falta de um lugar de encontro tira um pouco do sentimento de intimidade entre todos.

The L Word: Generation Q

Os novos personagens são, em seus níveis, interessantes, mas não são páreo para competir com Bette, Alice e Shane. Suas histórias por mais “improváveis” que sejam ainda são as mais interessantes. Alice está envolvida em seu talk show e produção da sua própria marca para ser o mais próximo que temos de uma nova Ellen DeGeneres. Assistir uma personagem que sempre foi tão efusiva virar chefe de uma grande equipe e realmente dialogar para e com a comunidade lésbica é inspirador e interessante de ver. Mas, para mim, seu ponto positivo está na relação com sua namorada, Nat (Stephanie Allynne), seus dois filhos pequenos e sua ex-mulher, Gigi (Sepideh Moafi). Acompanhar Alice, que sempre se achou tão moderna e cabeça aberta, aceitar se envolver em uma relação com a atual e a ex de sua atual é um prato cheio. Questionamentos, situações engraçadas e a melhor cena de sexo da temporada foram momentos perfeitos para dar um toque de humor e comédia romântica para uma série que trata de tantos assuntos importantes e sérios ao mesmo tempo.

No primeiro episódio da temporada nós acompanhamos Shane chegar em Los Angeles, em seu jatinho particular, após alguns anos no exterior. Nas cenas seguintes conhecemos a mansão que comprou, e a festinha de inauguração que rolou no balcão entre ela e a comissária de bordo do seu voo, e finalmente descobrimos o que aconteceu em sua vida nos últimos anos. Aparentemente, nessa realidade Shane transformou seu salão em um novo Jacque Janine, criando uma marca multimilionária com lojas por todo mundo e muito dinheiro no banco que a permitem viver sem muita preocupação além de comprar um bar de um dia para o outro. Mas um dos detalhes que só iremos saber depois de alguns episódios, é que ela está se divorciando. Em algum momento, Shane se apaixonou por Quiara (Lex Scott Davis), uma cantora relativamente conhecida, e elas tiveram um relacionamento que terminou pela falta de vontade de Shane querer formar uma família. Uma das características de Shane é que ela sempre foi muito fiel a suas amigas, e é uma ótima tia para Angie, mas ela não é o melhor suporte emocional para quem se envolve romanticamente, como percebemos pela forma com que lidou com o aborto de Quiara no final dessa temporada. Mesmo assim, é um alívio assisti-la ter problemas de adultos muito mais profundos do que casos de amor e empregos aleatórios. Seu final de temporada foi um dos meus preferidos e com maior potencial para desenvolvimento e amadurecimento para os próximos episódios.

Em compensação, não podemos falar o mesmo de Bette. Apesar de qualquer crítica, ressalvo que Bette sempre foi uma de minhas personagens favoritas. Tenho um sentimento de amor e ódio por ela. Amor por ela ser uma personagem tão imperfeita e cheia de camadas, provavelmente a mais bem desenvolvida do elenco, mas ódio por a fazerem tão unidimensional em outros quesitos. Para mim, ela tem qualidades incríveis como a ambição, foco e senso visual impecáveis, mas ao mesmo tempo é extremamente egoísta. Quantas vezes não deu pra sentir ódio do comportamento de Bette com Tina (Laurel Holloman)? As traições, mentiras e escolhas egoístas? E mesmo assim, era impossível não ficar ao seu lado. Esperava que, de alguma forma, tivessem amadurecido a Bette neste sentido, mas ela continua pensando com o que tem entre as pernas. Bette é e sempre foi o lema “faça o que eu digo não faça o que eu faço” e, por isso, sua escolha para ser candidata política foi muito coerente. Pela primeira vez, fomos mostradas a sua verdadeira natureza.

The L Word não tem mais a responsabilidade de carregar todo peso da representação lésbica na televisão. O cenário do cinema e dos seriados vem mudando e expandindo mesmo que muito lentamente, mas com mais variedade do que quinze anos atrás. Entretanto, nenhum outro programa foi tão popular enquanto focava na vida de mulheres, mas o público não é tão mais desesperado como antes era.

Uma das coisas que fez a série tão popular era como cada personagem ali considerava o lesbianismo uma parte de sua identidade, cultura, mas que não se deixavam ser definidos por isso. Nas temporadas anteriores, nós vimos diversas características básicas serem apresentados para todos, mas agora quero ver como podemos aprofundar nas nossas vidas e experiências. O que as jovens lésbicas têm a ensinar para as mais velhas? O que cada geração pode ensinar em retorno? Esse é um programa queer que é dirigido por pessoas queer escrito por roteiristas queer e isso por si só é demonstra a capacidade de apresentarmos a imagem da mulher lésbica e toda complexidade que nós temos. E, assim, evoluir.

O que me prendeu na série nunca foram seus romances, mas as amizades. Foram seis temporadas de investimento na dinâmica dessas amigas e continua valendo cada segundo.

1 comentário

  1. Eu ameu o texto! Super concordo que a representatividade da comunidade LGBTQIA+ foi muito mais explorada, além do lesbianismo. Não sei se já tiveram contato com a segunda temporada, mas muitas das críticas que fizeram, em relação ao Micah, por exemplo, são solucionadas na segunda temporada. Eu amo The L Word, apesar de ser uma realidade completamente utópica da nossa vida pelo padrão que elas têm, me inspira a chegar onde elas chegaram, e que lésbicas podem conseguir esse espaço e serem poderosas e respeitadas. E não pela orientação sexual, mas pela competência de cada uma. Eu simplesmente achei genial a proposta de acompanharmos a evolução de Alice, Bette e Shane (que, nossa, para mim o melhor crescimento como personagem sem dúvidas!) em conmunto com a nossa geração queer, com outras pautas e outras propostas (muitas delas possíveis pela luta de gerações anteriores). Eu sou fã devota da série, amo de verdade, para mim é a melhor sem dúvidas! Deixo aqui um convite para conhecerem meu blog: Sem Sutiã Br. =)

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