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Assunto de Família: quando o crime compensa

Há filmes que você assiste e não pensa muito a respeito: um simples “gostei” ou “não gostei” é uma definição suficiente na hora de guardá-lo na memória. Mas há filmes que incomodam por um bom tempo depois de vistos, porque algo neles não nos deixa seguir em frente tão facilmente assim. Assunto de Família (2018), dirigido por Hirokazu Kore-eda e indicado ao Oscar na categoria Melhor Filme Estrangeiro, foi um desses últimos para mim. A primeira parte do longa parece se passar num universo paralelo, no qual certo e errado se fundem e os personagens são intocáveis pelas consequências de suas ações. Em seguida, tudo desmorona sem aviso.

Atenção: o texto contém spoilers!

Cinco pessoas vivem sobre o mesmo teto: Hatsue (Kirin Kiki), uma senhora que vive da pensão do falecido marido; o casal Nobuyo (Sakura Andô) e Osamu (Lily Franky); Aki (Mayu Matsuoka), uma moça mais jovem e neta de Hatsue, e um menino chamado Shota (Jyo Kairi). Certo dia, ao voltarem do mercado após roubarem comida e outros itens de necessidade básica, Shota e seu “pai”, Osamu, encontram uma menina deixada sozinha no frio enquanto dentro de casa pode-se escutar os pais brigarem. Osamu resolve levar a criança para onde moram para alimentá-la, mas, ao ver as marcas de abusos nos seus braços, os residentes decidem abrigar-lhe durante a noite com a promessa de devolvê-la no dia seguinte.

Com Yuri (Miyu Sasaki) no colo, Osamu e sua esposa, Nobuyo, saem para cumprirem o tratado da noite anterior e discutem como proceder pelo caminho, já que eles realizaram praticamente um sequestro. Contudo, ao chegarem perto da casa da menina, eles mudam de ideia ao ouvirem sons de violência vindo de lá. A partir desse momento, Yuri, que posteriormente tem seu nome trocado para Lin, se torna a mais nova integrante dessa “família”, na qual laços de sangue são a última coisa que importam. Para esse grupo nada tradicional o que interessa é a sobrevivência, e a moral pesa menos que uma pena quando colocada na balança com a necessidade. Apesar disso, não os classificaria como disfuncionais, porque de um jeito peculiar e movido a artimanhas, eles funcionam muito bem juntos.

Assunto de Família (Manbiki Kazoku, no original) é um retrato comovente da pobreza na cidade grande e faz um belo trabalho em humanizar seus personagens, tanto que muitos momentos parecem justificáveis. Osamu e Nobuyo trabalham em empregos desgastantes e Hatsue conta com uma pensão, mas a soma de tudo é longe de ser o suficiente para eles próprios e ainda assim não hesitam em abrigar uma nova criança. Eles roubam, fraudam e cometem uma lista sempre crescente de crimes para sobreviverem. Porém, não há luxos ou gastos extravagantes, a casa onde vivem é pequena, bagunçada e completamente fora do lugar na vizinhança que já elevou seus padrões residenciais. Seu interior é também muito humano, suja pela rotina e entulhada de miscelâneas acumuladas pelo tempo. A falta de decoração pela estética faz com que a casa seja tão carismática a ponto de ser quase personagem. Já as roupas velhas têm tamanhos errados aos corpos que vestem e não combinam entre si, pois ninguém ali está particularmente interessado em estar na moda. As preocupações são outras, mas isso não significa que o filme não seja lindo.

O filme encontra beleza no que há de mais mundano: um abraço, uma conversa, interações ordinárias que carregam consigo significados gigantescos. A pobreza é somente material, pois há ternura na forma como tratam um ao outro. É bonito também como os personagens têm espaço para serem múltiplos. Unidos pelo acaso, cada um carrega consigo bagagens únicas que vão sendo reveladas ao longo do filme. Quando descobrimos que Osamu ajudou Nobuyo a matar seu ex-marido agressor, a relação dos dois ganha uma nova camada. Quando nos contam que Hatsue foi abandonada pela família, o vínculo dela com o casal, que se aproveita do que seus trocados, ganha outra. O mesmo para quando sabemos que Shota foi “encontrado” abandonado dentro de um carro e que Nobuyo não pode ter filhos.

Shota, Nobuyo e Yuri

Vivemos num momento em que qualquer um pode dar seus pitacos sobre qualquer assunto  a toda hora. Contudo, muitas dessas postagens mais ressaltam a opinião já formada de quem se pronuncia em vez do que agregam à conversa. Nesse contexto, a complexidade dos protagonistas de Assunto de Família nos obriga a refletir. Que tipo de pais ensinam os filhos a furtar e contam mentiras fajutas para impedi-los de irem a escola? Sim, é inegável a gravidade dessa situação, mas quando vemos Osamu relatando à polícia, depois do casal ter seus crimes descobertos, que era tudo o que ele tinha para ensinar ao garoto, e somamos isso a condição de pobreza, nem tudo se encaixa no binarismo de certo ou errado. Ainda, que tipo de pais agridem sua criança indefesa? Porque ao ver Nobuyo abraçando Yuri e explicando para a menina que aquilo ali era como o amor deveria parecer, eu não queria nunca mais que elas fossem separadas.

No fim, não há heróis e vilões, e sim pessoas vivendo como podem num mundo injusto e imprevisível. Assunto de Família é belo, mundano — e como uma moça no Letterboxd o descreveu (perfeitamente): é “como um abraço até que te soca no coração”.