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Heartstopper: dois garotos, um encontro

Baseada na série de quadrinhos escrita por Alice Oseman, Heartstopper estreou na Netflix no último dia 22 de abril. Com uma primeira temporada composta por oito episódios de pouco menos de meia hora de duração, a série acompanha a jornada de Charlie Spring (Joe Locke) e Nick Nelson (Kit Connor), adolescentes descobrindo que sua improvável amizade pode ser algo mais.

Atenção: este texto contém spoilers!

Publicado originalmente em plataformas digitais e de maneira gratuita em 2017, Heartstopper, o quadrinho, conquistou tantos fãs que não demorou para que o projeto também passasse a ser publicado de forma impressa no Reino Unido. Com os dois primeiros volumes da série lançados no Brasil pela Editora Seguinte em 2021 e o terceiro chegando agora, em 2022, a saga de Charlie e Nick é de deixar o coração quentinho, sem se eximir de tratar de assuntos pertinentes à idade e ao entendimento do que se é e do que se quer ser. A série é um típico coming-of-age e dispõe de todos os elementos do gênero, mostrando Charlie, Nick e seus amigos em uma jornada de amadurecimento. O diferencial da série, no entanto, é lidar com todos os dilemas da juventude de uma maneira doce e sensível, indo na contramão de séries ditas para adolescentes, como Elite e até mesmo Euphoria.

Isso não quer dizer que falta um senso de realidade em Heartstopper, apenas que a abordagem da série como um todo é diferente de outras produções que contam com adolescentes queer, mostrando para sua audiência elementos com os quais se identificar e um outro tipo de realidade em que se basear. A sensação é que Heartstopper tenta se aproximar de sua audiência por meio da criação de laços mais duradouros, enquanto as demais séries, em um momento ou outro, apelam para uma construção muito fria da trajetória de seus personagens. Alice Oseman, que também assina os episódios da série para a Netflix, opta por um tipo de humor tranquilo e um roteiro que transborda sinceridade, mas sem fugir dos temas pertinentes às idades de seus personagens. Se assumir para os amigos e a família, navegar pelo ensino médio tentando sofrer o menor dano possível, lidar com amizades e ciúme… — está tudo ali, porém com uma construção paciente e delicada de cada trama, sem usar de plot twists com o único objetivo de chamar a atenção da audiência. Seu roteiro e escrita, aliados ao carisma de todos os atores e atrizes envolvidos no projeto, dão conta do recado.

Charlie e Nick transitam por núcleos diferentes no colégio só para meninos que frequentam: enquanto Charlie é basicamente um nerd que toca bateria (em sua própria descrição), Nick é a estrela do time de rúgbi que anda no grupinho dos populares. Charlie vem sofrendo bullying no colégio depois de se assumir gay no ano anterior e mantém um relacionamento escondido com Ben Hope (Sebastian Croft), que não quer assumi-lo publicamente. Seus mundos começam a se sobrepor quando são colocados lado a lado na aula de matemática: enquanto para Charlie a faísca do crush acontece praticamente de imediato, para Nick os sentimentos evoluem de maneira gradual, principalmente pelo fato de que, até então, ele se considera um menino hétero. O relacionamento entre eles é adorável de acompanhar, das conversas inocentes sobre o que fizeram no final de semana a trocas de “olá”, é possível ver o sentimento crescendo entre eles como um laço que os envolve, mantendo-os apertados e impossíveis de separar.

Charlie, vivendo uma experiência negativa e abusiva com Ben, sabe racionalmente que não deve alimentar sentimentos — ou expectativas — de que sua amizade com Nick se transforme em algo a mais, mas é impossível para ele deixar de pensar no amigo de maneira romântica, por mais que seus amigos o avisem a respeito do perigo da situação. É esse início de relacionamento que dá o impulso necessário para os primeiros episódios de Heartstopper, e a série lida com todas as borboletas no estômago de um novo amor de um jeito adorável e especial. Sempre que faíscas rolam entre os personagens, animações ao estilo dos quadrinhos de Alice Oseman saltam pela tela, nos remetendo ao material original enquanto gera uma interferência cativante na narrativa. Ao mesmo tempo em que Charlie sonha acordado com romance, Nick começa a perceber que o que sente pelo amigo pode não ser apenas amizade, mas algo a mais, e luta para entender o que essa atração de fato significa.

Enquanto Charlie é assumido para toda a escola há pelo menos um ano, Nick ainda precisa entender o que se passa em seu coração. Nick, interpretado brilhantemente por Joe Locke, em toda a sua confusão, passa por todas as fases dessa descoberta da sexualidade, das pesquisas no Google ao despertar bissexual ao assistir Piratas do Caribe com a mãe, Sarah (Olivia Colman), e perceber que tanto Keira Knightley quanto Orlando Bloom o fazem sentir coisas. Entre tantos outros pontos importantes, a beleza de Heartstopper está, também, em dar determinados “rótulos” aos personagens, sabendo que, para sua audiência, é importante ser visto e compreendido, já que tantas séries simplesmente preferem se abster de falar sobre as coisas como são. Quando Nick pesquisa sobre sua sexualidade e percebe que pode ser bissexual, isso é de fato dito pelo personagem. Ele busca compreender a si mesmo e seus desejos, e quando chega à conclusão de que é bissexual, é com tranquilidade que o recebe. O momento em que Nick se reúne com sua mãe e conta a ela que gosta de meninos e de meninas é de aquecer o coração não somente pela interpretação certeira de Joe Locke, interagindo com a veterana Olivia Colman de uma maneira tão natural, mas pelo acolhimento que Nick recebe de Sarah. É uma representação saudável da bissexualidade, desde o momento em que Nick começa a entender a si mesmo, até o momento em que conta para sua mãe e fica em bons termos com o que descobre sobre sua identidade.

Se a descoberta e entendimento de Nick é tão importante, o mesmo pode ser dito a respeito de Tara Jones (Corinna Brown) e Darcy Olsson (Kizzy Edgell). A dupla estuda na Higgs, escola para meninas próxima ao colégio Truham, de Charlie e Nick, e apenas recentemente publicaram para o mundo — por meio de um foto no Instagram — que não são apenas melhores amigas, mas namoradas. E lésbicas. Séries normalmente evitam usar a palavra “lésbica” para se referir a suas personagens, preferindo usar o termo guarda-chuva “queer”, mas em Heartstopper tanto Tara quanto Darcy se referem a si mesmas como lésbicas em mais de uma oportunidade. Isso é importante não somente pelo fato de reafirmar a identidade das personagens, mas para demonstrar ao público que a sua identidade importa. Outro ponto significativo da narrativa envolvendo as personagens está no fato de que ser lésbica é diferente para Tara do que é para Darcy. Enquanto Darcy é uma menina branca, Tara é uma menina preta que está não apenas descobrindo sua sexualidade e a carregando como uma bandeira na frente de todos, mas que recebe julgamentos de uma forma diferente do que Darcy. Os comentários atingem Tara de uma forma mais dolorida e Heartstopper não se esquiva do fato.

Enquanto fala sobre as sexualidades e descobertas de seus personagens, Heartstopper também é muito boa em falar sobre mudanças, uma das questões mais em voga quando se trata de adolescência. Essa questão é abordada por meio de Tao Xu (William Gao) e o medo que sente de ficar sozinho quando percebe que todo o seu núcleo de amizades está mudando de uma maneira que ele não consegue acompanhar e nem se adequar. O grupo, que até então era composto por Tao, Charlie, Isaac Henderson (Tobie Donovan) e Elle Argent (Yasmin Finney), vem encontrando novas dinâmicas com as quais Tao não se sente confortável. Para além do fato de Elle ter mudado de escola, deixando de frequentar a Truham e iniciando os estudos na Higgs, há o novo relacionamento entre Charlie e Nick, que Tao não vê com bons olhos, suspeitando das intenções de Nick, que faz com que ele se sinta abandonado com certa frequência. A ansiedade gerada pelo medo das mudanças que estão acontecendo em sua vida, quer ele queira ou não, fazem com que Tao sinta medo, algo perfeitamente compreensível, mas com que ele não sabe lidar muito bem. A lealdade de Tao para com os amigos, principalmente com relação a Charlie, é linda de se ver, e seu humor ácido e irônico ao rebater o bullying dos outros garotos do colégio foi uma das minhas coisas favoritas com relação a ele. Tao é um personagem de grande potencial e seu relacionamento com Elle ainda pode render boas tramas em uma vindoura segunda temporada.

Elle, por sua vez, é uma das personagens mais adoráveis da série. A menina trans ainda não teve muito tempo de tela para contar sua história, mas o pouco que deixou transparecer, principalmente com relação a sua sensatez e delicadeza para falar com os amigos e as questões que os preocupam, a mostram como uma personagem muito interessante e admirável. O comecinho da crush entre ela e Tao também promete render bons momentos em episódios futuros, assim como sua amizade com Tara e Darcy. O fato é que todo o núcleo principal de Heartstopper — é óbvio que não estou incluindo Ben e Harry (Cormac Hyde-Corrin) no pacote — é carismático de uma maneira encantadora, nos fazendo criar conexões com os personagens, torcendo para que o final feliz entre eles não demore muito para chegar, mostrando que assistir inúmeras temporadas de cada um deles simplesmente existindo tem potencial para dar incrivelmente certo dada a recepção positiva desses oito primeiros episódios.

Quando penso na série, a palavra que mais salta aos meus olhos é “adorável”. Mesmo com os momentos mais intensos tomando parte na narrativa, como quando Ben interpela Charlie de maneira agressiva ou quando Nick entra em uma briga para defender o até então amigo, tudo o que rodeia Heartstopper é de deixar o coração quentinho. A produção, com a qual Alice Oseman esteve completamente envolvida, soube transportar as páginas dos quadrinhos para as telas de maneira praticamente perfeita, reproduzindo cenas, frames e frases de maneira literal. As animações que permeiam os episódios e que evocam o material de origem dão um toque todo especial à narrativa, surgindo para indicar que seus personagens estão com as emoções à flor da pele. Faíscas quando mãos quase se tocam, flores e folhas seguindo a pessoa de quem se gosta, corações estourando ao redor do personagem que se percebe apaixonado, raios de luz envolvendo o casal abraçado — tudo funciona de maneira orgânica, acrescentando à série e não a deixando fora de lugar, como foi o caso de Cursed, também da Netflix e já cancelada.

Os dilemas sobre identidade, pertencimento e descoberta da sexualidade estão todos na trama de Heartstopper, mas tudo é trabalhado de uma forma delicada, gentil e honesta. A sensação que a série passa em sua temporada inicial é de tanta proteção e carinho que é fácil desejar, com todas as forças, que todos os adolescentes queer possam ter um lugar seguro onde falar sobre sua sexualidade e se descobrir sem pressa. Heartstopper passa uma sensação onírica de realidade, e não seria de todo mal se algo da série pudesse se desprender e vir habitar em nosso mundo real, um lugar que é duro e sombrio na maior parte do tempo, principalmente se você foge do padrão heteronormativo. Mas isso também é o que faz de Heartstopper uma produção tão especial: mesmo que a série demonstre episódios de homofobia e as dificuldades de assumir sua orientação sexual em sua narrativa, na maior parte do tempo os personagens estão envoltos em aceitação e compreensão, com melhores amigos leais, encontros duplos (ou triplos!) regados à milk-shake e uma mãe amorosa com o rosto da Olivia Colman.

Algumas pessoas podem achar difícil comprar essa realidade açucarada, mas digo que é exatamente disso que precisamos. Precisamos de mais histórias de amor juvenil em que identidades sejam reafirmadas e que tropos nocivos não tenham espaço, que menino encontra menino seja tão simples e adorável quanto tem que ser, e que essa fantasia adolescente transborde das páginas — e das telas — para a nossa realidade. Se Heartstopper for capaz de iniciar conversas entre pais e filhos adolescentes, já terá sido perfeito, assim como também será importante para que pessoas se sintam vistas, acolhidas e compreendidas. É uma obra de ficção? Sim, mas isso não significa dizer que não possa ser responsável por algumas mudanças — ou só de ser um abraço quentinho pelo tempo em que estivermos em sua companhia.


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