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Crítica: Eu, Tonya

Uma das primeiras cenas de Eu, Tonya mostra a protagonista, com então quatro anos de idade, de mãos dadas com a mãe, de pé em um rinque de patinação. A menina usa um capuz de pelúcia e sua mãe fuma no meio do rinque enquanto tenta chamar atenção da treinadora. A música que acompanha a cena dá todo o tom da produção pelos próximos 120 minutos: enquanto a câmera passeia do rosto da pequena Tonya Harding para o de sua mãe, e então para o rinque de patinação, ouvimos a canção “Devil Woman”, de Cliff Richard, e seus primeiros versos. “Não tive nada além de má sorte, desde o dia em que vi o gato em minha porta.”

Atenção: este texto contém spoilers!

A história de Tonya Harding, ex-patinadora olímpica, é um sem número de situações de má sorte e uma boa dose de talento para o errado. Nascida em Portland, Oregon, nos Estados Unidos, em uma família pobre, Harding cresceu em um lar abusivo e sem amor. Tudo o que a menina amava fazer na vida, e que lhe dava verdadeira satisfação, era patinar no gelo. Sua mãe, LaVona Golden, acreditava estar incentivando a menina a fazer melhor e dedicar-se ao esporte ao cobri-la de tapas e gritos. O pai se divorciou de LaVona quando a filha tinha 13 anos, deixando-a com a mãe abusiva, e nunca mais voltou. Tonya não conhecia outra realidade na vida que não fosse maus-tratos e abandono, e tal verdade a acompanhou até a vida adulta.

Em Eu, Tonya, filme com direção de Craig Gillespie e roteiro de Steven Rogers, acompanhamos a trajetória da atleta, interpretada por Margot Robbie, e sua vida de erros e tropeços. “Baseado em entrevistas livres de ironia, extremamente contraditórias e totalmente verídicas” com Tonya Harding e Jeff Gillooly (Sebastian Stan), ex-marido da atleta, Eu, Tonya deixa muito claro desde o início que sua proposta é trazer uma versão da história que, ainda que baseada em fatos reais, tem sua cota de licença poética levada às alturas. A trama do filme, desde o início, encaminha-se para o incidente responsável por colocar Tonya nos jornais muito mais do que seus feitos de patinadora: a agressão responsável por quebrar o joelho de Nancy Kerrigan (Caitlin Carver), colega de patinação de Tonya, durante os treinamentos para o Campeonato dos Estados Unidos, na Detroit de 1994. A agressão teria sido encomendada por Jeff e seu amigo, Shawn (Paul Walter Hauser), mas sem o conhecimento de Tonya.

Eu, Tonya

Ainda que Tonya Harding não faça parte do nosso imaginário popular da mesma forma como o dos norte-americanos, não é difícil entender o motivo pelo qual sua história nunca é esquecida. Tonya veio de uma realidade de pobreza e abusos e se tornou uma das poucas mulheres a executar, durante uma competição oficial de patinação no gelo, o salto Triplo Axel, uma das manobras mais difíceis do esporte. Além de Tonya, em 1991, apenas as patinadoras Midori Ito, em 1988, Kimmie Meissner em 2005 e Mirai Nagasu, nos Jogos Olímpicos de Inverno na Coreia do Sul, conseguiram executar a manobra com perfeição. Tonya possuía a técnica e a coragem necessária para ousar durante suas apresentações, mas tamanha ousadia também a repelia, visto que os jurados tinham em mente um outro modelo de atleta para representar o país. A imagem de Tonya, com seus cabelos rebeldes, unhas azuis e músicas rock and roll escolhidas para as apresentações, a afastava da perfeição que eles idealizavam; era Nancy quem os juízes queriam para representar o país nas competições no exterior, com seus modos delicados e femininos, cabelos e roupas “corretas”. Eles não queriam uma menina que costurava as próprias fantasias e se apresentava ao som de ZZ Top, que era o que Tonya fazia. O mundo da patinação no gelo só passou a encarar Tonya de outra maneira quando ela executou o salto perfeito e conseguiu entrar para a equipe olímpica do país, em 1994. Mas até esse momento, muito aconteceria na vida de Tonya.

A patinadora se casou com seu primeiro namorado, ainda da época do colégio, e acreditou que tudo seria perfeito entre eles. Jeff Gillooly, mesmo com seu bigode bizarro, era atraente para Tonya, e a união entre eles foi o que retirou a moça da casa da mãe, que nunca deixou de agredi-la com punhos ou palavras. LaVona (Allison Janney) não passava um dia sem lembrar Tonya do quanto ela era uma menina ingrata, visto que todo o dinheiro que ela recebia como garçonete, assim ela dizia, ia para os treinos de patinação. Para LaVona, nada do que Tonya fazia era suficiente, mesmo que ela tentasse e treinasse duro para ser bem sucedida. O que pareceu a Tonya uma saída brilhante, se mostrou uma escolha desastrosa em uma série de julgamentos ruins: Jeff, que já a agredia durante o namoro, continuou a tratá-la da mesma forma durante o casamento — e Eu, Tonya peca mais do que nunca ao tratar um relacionamento abusivo e violência doméstica como alívio cômico.

São diversas as cenas em que, durante as agressões, os personagens rompem a quarta parede e olham diretamente para a câmera, fazendo algum comentário que se pretende espirituoso, mas só funciona para deixar quem assiste ao filme desconfortável. Em um dos momentos, Tonya, após ser agredida por Jeff, olha diretamente para a câmera e diz que ele deve amá-la, da mesma forma que a mãe a ama, já que ele também a espanca diariamente. Tonya não recebe as agressões passivamente e revida, mas todas as vezes em que Eu, Tonya fala sobre abuso e mostra a violência doméstica, é com a tentativa de arrancar risos de seu telespectador. A manobra não funciona e ainda afunda um enredo já precariamente equilibrado em personagens caricatos, ainda que Margot Robbie se esforce para mostrar a verdade de sua Tonya, uma mulher que pretendia mudar de vida por meio de sua determinação, tentando quebrar o ciclo de abusos que sofria, mas vê seus sonhos e suas ambições se desmancharem em uma série de desventuras.

Eu, Tonya

Tonya, desde muito nova, sabia que era boa no que fazia e se segurou a isso o mais firme que pode. Treinava duro e praticava, sempre pensando que essa seria sua passagem para uma vida melhor e longe da pobreza e violência a que estava confinada. As engrenagens demoram a girar para Tonya, e ela precisa se mostrar muito mais capaz e completa do que suas colegas, e mesmo isso quase não é suficiente para colocá-la no lugar mais alto do pódio. Somente com a conquista do primeiro lugar no Campeonato dos Estados Unidos, em 1990, é que Tonya pode começar a sentir o gostinho de ser amada e aclamada pelo público, uma sensação que ela nunca experimentou anteriormente, e nem mesmo em sua família. Suas glórias, no entanto, não duram. A partir do plano estúpido criado por Jeff e Shawn, sua rival nos patins, Nancy, é agredida, e logo Tonya é levada para o olho do furacão durante as investigações.

Não se sabe com certeza até que ponto Tonya estava ciente das manobras de Jeff e Shawn na vida real, mas Eu, Tonya, nos mostra uma mulher perdida em uma série de escolhas ruins. O que começou com uma ideia tola — enviar cartas anônimas com ameaças para Nancy, com o intuito de desestabilizá-la emocionalmente, facilitando a vida de Tonya na disputa por uma vaga na equipe norte-americana de patinação — terminou em uma agressão que poderia ter encerrado a carreira da patinadora para sempre. A personagem de Nancy em Eu, Tonya é apenas o delineado de uma mulher e não sabemos nada sobre ela além do fato de se sair melhor do que Tonya nas competições. Mesmo que o filme seja sobre Tonya, ele peca mais uma vez ao usar a personagem de Nancy apenas como meio para um fim, que é chegar no ponto da história em que todos os sonhos de Tonya são estilhaçados pela estupidez do marido.

Utilizando-se de um humor depreciativo e emulando o estilo de documentário, Eu, Tonya é o retrato de como narrativas podem ser manipuladas pelo prazer da mídia. Tonya estava longe de ter a vida perfeita — e de ser perfeita —, e sua história é de superação apenas até certo ponto, mas a própria ferramenta capaz de alçá-la ao estrelato, também foi utilizada para destrui-la. Mesmo sem envolvimento direto com o esquema de Jeff e Shawn, quem mais saiu perdendo em toda a história do incidente com Nancy foi a própria Tonya. Amada e idolatrada em um momento, odiada e execrada no outro, Tonya viu sua carreira desmanchar-se diante de seus olhos quando foi banida do esporte que amava por estar associada aos mentores do crime. Enquanto Jeff e Shawn saíram do processo com dezoito meses de prisão — dos quais cumpriram apenas seis — e uma multa, Tonya nunca mais poderia patinar profissionalmente.

Eu, Tonya

Em determinado momento do filme, Tonya diz: “I’m a real person” (“Eu sou uma pessoa real”, em tradução livre). Ainda que repleta de falhas, que meta os pés pelas mãos em mais de uma situação e que não tome as melhores decisões quando se sente injustiçada, Tonya é real. Ser idolatrada, acreditando ter conquistado seu lugar ao sol para, no momento seguinte, ser odiada por todos aqueles que até então pediam seus autógrafos, é muito para alguém suportar. Eu, Tonya não deixa de expor o lado menos lisonjeiro da atleta, mas nem por isso se redime dos erros de roteiro. Ao relatar todos os abusos pelos quais Tonya passa, não sobra muito tempo de tela para a construção da atleta que Tonya foi. Muito se fala sobre seu feito inédito, o salto Triplo Axel, mas o filme não vai além disso e parece se preocupar muito mais com o alívio cômico saído das cenas de agressão do que qualquer outra coisa.

Tonya sofreu abusos físicos e psicológicos tanto de sua mãe quanto de seu marido, fez o possível para se sobressair no esporte em que era fabulosa, mas foi vítima das circunstâncias. Não era levada a sério pelos jurados das competições até que conseguiu fazer o impossível, sua ascensão e queda foi acompanhada por todos ao redor do mundo em uma era sem redes sociais, e tentou o quanto pôde mudar sua vida por meio de seu próprio esforço. Após ser banida da patinação no gelo, Tonya entrou para o boxe e saiu vitoriosa de quatro de seus sete combates profissionais, mas logo deixou o esporte. A vida não foi das mais fáceis para Tonya, mas nem por isso ela deixou de persistir, mesmo quando todas as evidências eram desfavoráveis. Eu, Tonya não faz justiça à trajetória de sua protagonista real, mas encontra algum alívio nas interpretações de Margot Robbie, uma Tonya incansável, e Allison Janney, a pior melhor personagem que você verá em filme cheio deles. Talvez Tonya não tenha tido mesmo nada além de má sorte e uma porção de escolhas ruins, mas nunca iremos saber.

“What kind of friggin’ person bashes in their friend’s knee?
Who would do that to a friend?”

“Que tipo de doido golpeia o joelho da amiga?
Quem faria isso com uma amiga?”

Eu, Tonya recebeu 3 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Atriz (Margot Robbie), Melhor Atriz Coadjuvante (Allison Janney) e Melhor Edição. 


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.

4 comentários

  1. Uma vida marcada de desventuras. Que solidão interior!! Pensar que nem toda mãe é mãe, no amar. Tantos desencontros e desilusões da vida. Pena que associou a má sorte a um gato, preconceito! Se há um ser iluminado e sem pecados neste mundo de horrores, este ser é o animal.

  2. Adorei o desempenho de Margot Robbie, que com apenas dois trabalhos foi capaz de tomar Hollywood de assalto. Quando leio que um filme será baseado em fatos reais, automaticamente chama a minha atenção, adoro ver como os adaptam para a tela grande. Tambem recomendo assistir Dunkirk, adorei este filme, é um dos melhores filmes baseadas em fatos reais 2017.A história é impactante, sempre falei que a realidade supera a ficção. É interessante ver um filme que está baseado em fatos reais, acho que são as melhores historias, porque não necessita da ficção para fazer uma boa produção.

  3. Discordo, as cenas de abuso no filme em que se quebrou a quarta parede não buscavam alívio cômico. Os comentários da tonia servem justamente pra entrar na cabeça da personagem. Quando ela diz que o jeff bate assim como a mãe batia é pra justamente mostrar que se todo o “amor” que você conhece veio da violência, tu nao vai estranhar quando continuarem te tratando assim. Não é porque há ironia na fala que ela passa a ser alívio cômico.

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