Categorias: CINEMA

Noites Brutais e uma defesa do absurdo no cinema de horror

Existe uma ideia equivocada sobre a abordagem de questões políticas e psicológicas no cinema de horror. Segundo essa lógica, alguns filmes recentes discutem essas pautas enquanto outros, mais antigos, são vazios nesse sentido. Essa noção surgiu em 2017 e foi criada a partir de uma crítica de Ao Cair da Noite, escrita por Steve Rose. Segundo o autor, o longa possui um aprofundamento que não se viu em momentos anteriores do gênero, de modo que ele — e outras produções que seguem caminhos similares — representam uma inovação. Contudo, isso é uma falácia porque a origem do horror está ligada ao Expressionismo, estilo usado para abordar as angústias alemãs no período pós-Primeira Guerra Mundial. Assim, o horror sempre esteve próximo do político e do psicológico, de maneira que desmontar esse raciocínio é algo simples: basta compreender o elitismo no comentário, bem como o desrespeito pelo cânone.

O elitismo, porém, ataca diretamente o absurdo, um elemento central para o cinema de horror desde o seu nascimento. Se observarmos o sentido desse termo no dicionário, encontramos as seguintes definições:

“O que é destituído de sentido, de racionalidade;

Aquilo que é contrário à sensatez e ao bom senso.”

Noites Brutais

Portanto, quando se fala em absurdo, se fala de tudo aquilo que não pode ser explicado. Monstros, cenas demasiadamente sangrentas de morte, espíritos, possessão demoníaca… Ou seja, elementos que estão presentes em filmes importantes para sedimentar o gênero como o conhecemos atualmente, mas que foram desprezados no comentário de Rose em prol de uma visão higienizada do que seria um bom filme de horror. Porém, o próprio gênero se encarregou de mostrar para o crítico, apenas alguns meses depois, o quanto as suas afirmações eram rasas. Isso foi feito com o lançamento de Corra! (Get Out, 2017).

Quando se fala em comentário social e cinema de horror, este é um dos primeiros longa-metragens lembrados na atualidade. Por meio do estranhamento, Jordan Peele tece uma trama incômoda, mas que inicialmente não tira os pés do realismo: tem-se Chris (Daniel Kaluuya), um rapaz negro, visitando a família de Rose (Alison Williams), a sua namorada branca, durante uma comemoração. Nessa ocasião, ele lida com comentários pretensamente progressistas, mas que servem para escancarar que ele é visto como exótico e estrangeiro pela cor da sua pele. Entretanto, o que amplifica a discussão racial dentro de Corra! é a última meia hora, na qual se descobre que a família de Rose realiza transplantes de partes do cérebro de pessoas negras para pessoas brancas. Não é preciso muito embasamento científico para saber que isso não é uma possibilidade na realidade. Então, o que o último ato do longa-metragem serve para demonstrar é que Jordan Peele não tem medo de abraçar o absurdo se isso servir à sua proposta — e porque ele deveria sendo este um elemento central do gênero que ele escolheu para trabalhar os seus temas?

Assim, o que Corra! nos mostra é que o cinema de Peele, embora crítico e político, se apodera das características do horror como um todo, desprezando a ideia de que quanto mais polido melhor, bastante em voga na atualidade. E o resultado dessa visão distorcida a respeito do gênero é uma produção cada vez mais sisuda, que deprecia o entretenimento e submete os filmes à “ditadura do verossímil”, ou seja, à ideia de que aquilo que é apresentado precisa ser plausível para ser considerado digno de ser consumido e elogiado. Um exemplo disso é o fato de que Maligno (Malignant, 2021) dividiu público e crítica por não ter medo de sujar as mãos. Enquanto alguns gostariam que James Wan tivesse aproveitado determinadas oportunidades para discutir questões como a violência doméstica, outros aplaudem a completa falta de compromisso com a realidade e abraçam a releitura dos giallos, bem como as referências ao trash. Assim, mesmo que Maligno seja um filme de estúdio, se inscreveu sobre ele um aspecto de “cult instantâneo”: o longa se tornou o tipo de produção que provavelmente será resgatada em alguns anos com um outro olhar, possivelmente mais carinhoso.

Noites Brutais

A “ditadura do verossímil” também impacta produções que se pautam pelo entretenimento, como se a cultura de massa não merecesse respeito somente porque atinge números mais expressivos. Um filme que sofreu bastante com essa questão foi Halloween Kills (Halloween Kills, 2021). Ele dividiu opiniões por transformar Michael Myers em uma máquina de matar. Entretanto, o vilão da franquia sempre foi “indestrutível” e isso faz parte do que sustenta a sua mitologia, daquilo que o firma como uma “encarnação do mal”, ideia que está presente em Halloween desde o clássico de 1978. Além disso, Kills também foi atacado por supostamente ser um filme que segue a lógica de mercado e é pensado para lucrar, algo que não é completamente verdadeiro porque ele desafia algumas convenções da própria franquia, algo que incomodou o público conquistado ao longo dos anos.

E os casos em questão não são incidentes isolados, visto que anualmente surge uma produção para desafiar a ideia de que o horror precisa manter os pés na realidade — e estes exemplos sempre são divisivos. E 2022 é o ano de Noites Brutais (Barbarian), dirigido pelo estreante Zach Cregger. Apontado por alguns críticos como o grande lançamento do gênero, o longa sequer recebeu uma estreia nos cinemas brasileiros e não é preciso fazer uma reflexão muito aprofundada para saber os motivos: o risco do fracasso. Apesar disso, a decisão soa estranha, visto que o cinema de horror é o único que consegue se sustentar com base no boca a boca, sem depender de grandes estrelas ou de uma divulgação massiva — a bilheteria expressiva de Sorria (Smile, 2022) é a prova definitiva disso. Mas, no caso de Noites Brutais, trata-se de um filme absurdo demais para agradar à “ditadura do verossímil” e crítico demais para agradar ao público médio, de modo que ele acabou permanecendo em uma espécie de “limbo das vendas” e ficando restrito ao nicho no cenário nacional.

Dividido em três atos extremamente bem definidos, Noites Brutais parte de uma premissa simples, que Zach Cregger retirou de um livro de autoajuda: a necessidade das mulheres de estarem sempre em estado de alerta em situações diversas, que podem leva-las a cenários de violência. Entretanto, essa lógica se sustenta por 40 minutos e o que acontece daí para frente deixa o público completamente desamparado. Isso porque estamos diante de uma produção sobre a qual é possível fazer diversas previsões de desdobramento, mas acertar alguma coisa é quase impossível. Em um determinado ponto, resta abraçar a proposta e seguir até o fim sem tentar antecipar o próximo passo de Noites Brutais — e essa é exatamente a beleza da produção.

Noites Brutais

Além de ser extremamente imprevisível e absurdo por natureza, o filme possui uma veia crítica que vai muito além das questões de misoginia do seu primeiro ato. Ao observarmos o flashback sobre o passado da região onde a casa se localiza, percebemos que aquela área já foi promissora. As residências com gramados bem cuidados nos remetem diretamente a um subúrbio de sonho americano. Entretanto, no tempo presente, desde o primeiro momento em que Tess (Georgina Campbell) deixa a casa à luz do dia, podemos notar que a região está em ruínas. Posteriormente, no diálogo entre ela e a sua potencial empregadora, descobrimos que o processo de gentrificação de outros espaços de Detroit foi o responsável por isso. Então, o que favorece os acontecimentos macabros naquele bairro está ligado ao descaso que se inscreveu sobre a área uma vez que ela parou de ser vista como lucrativa. Nesse ponto, é interessante lembrar que a cidade de Detroit chegou a decretar a falência há alguns anos devido à má administração e à corrupção política, algo que também é visto no filme através da maneira como a polícia lida com as situações nas quais a sua presença é requerida.

Ainda sobre a polícia, um aspecto interessante em Noites Brutais se revela quanto Tess escapa pela primeira vez do porão da casa. Sem querer deixar AJ (Justin Long) entregue à própria sorte, ela procura pelas autoridades para retornar ao local e resgata-lo. Nesse momento, a primeira coisa que ela precisa dizer à polícia devido à sua aparência — e ao local no qual está — é que ela não é uma viciada. Porém, mesmo que eles voltem a casa com ela, se recusam a entrar por não acreditar na sua narrativa. Isso nos leva a pensar sobre questões como o casting de Georgina Campbell, uma atriz negra. Embora alguns possam alegar que isso se deu ao acaso, este momento do filme perderia a potência caso uma atriz branca fosse escalada. Todos nós sabemos que o tratamento dispensado a brancos e negros por parte da polícia é bastante diferente, de modo que o filme pediria mais em termos de suspensão de crença nessa cena do que em todo o seu desfecho.

Considerando todas essas questões, é possível afirmar que Noites Brutais abraça o absurdo na mesma medida em que tece comentários sociais. Ao se construir dessa maneira, o longa reafirma o que Corra! já havia dito em alto e bom som: não existe uma divisão dentro do cinema de horror. O fantástico e as críticas coexistem de maneira simétrica e servem para potencializar um ao outro. Da mesma forma como os monstros já foram usados para discutir questões ligadas à comunidade LGBTQIA+, uma casa em uma região desolada pode ser usada para elaborar comentários sobre o espaço urbano e as consequências do abandono. E tudo isso pode ser feito sem abrir mão dos jumpscares e do medo em estado bruto, já que Noites Brutais usa o escuro e a figura da sua vilã para provocar este tipo de sensação a todo o tempo.

Assim, o status de grande lançamento de horror do ano não é um exagero. Noites Brutais é aquilo que o cinema do gênero deveria ser sempre: imprevisível, assustador e muito absurdo. Ele prova que estes elementos sempre serão o cerne de um bom filme, ainda que muitas tentativas de criar novos “movimentos” e visões higienistas do horror continuem emergindo e ganhando espaço entre aqueles que precisam “gourmetizar” o gênero para admitir que foram impactados por uma produção.

1 comentário

  1. Pra mim um dos melhores se nao o melhor de 2022… conserteza não deixou a desejar , e fez com que ficassemos atentos a cada cena por que não podiamos imaginar oque podia acontecer. Oque parecia ser não era kkkkkk .. foi oque mais gostei, por que oque mais me enrrita é eu olhar um filme logo ja saber oque vai acontecer ou quem é o vilao…. normal hoje endia filmes assim. Não sei se por olhar muitos filmes desse gênero e ate outros gêneros ja me deixaram um pouco a frente. Mas resumindo pra mim o melhor ate agora e se tiver continuação (que se deus quiser vai ter) vou olhar sem ter receio se vai ser bom , o filme em si ja é uma certeza.

Fechado para novos comentários.