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Forte, mas amarga: a poesia de Louise Glück em Receitas de Inverno da Comunidade

Após quatorze livros publicados, um prêmio Pulitzer e um Nobel de Literatura, Louise Glück finalmente chega ao Brasil com quatro títulos publicados pela editora Companhia das Letras. Averno (2006), Uma Vida no Interior (2009) e Noite Fiel e Virtuosa (2014) foram reunidos num único volume, traduzidos cada um por uma poeta brasileira: Heloisa Jahn, Bruna Beber e Marília Garcia, respectivamente. Nas páginas dessa coletânea, reflexões acerca da morte, do envelhecimento, da linguagem e da memória adiantam meditações centrais do novo livro da poeta, Receitas de Inverno da Comunidade (2022). Os já familiarizados com sua poesia, porém, reconhecem esses e outros temas, já dispersos por todo o seu corpo de trabalho, assim como identificam a seriedade e a objetividade que caracterizam sua voz poética.

Em poemas como “Nostos” — um dos mais famosos da poeta, presente em Meadowlands (1996) — Glück demonstra a riqueza expressiva dos seus versos, que equilibram relatos sóbrios e observações afiadas com apreciações altamente sensíveis e fervorosas sobre questões que a perseguem enquanto artista e pensadora. Atraída pela natureza como matéria poética — as estações, as plantas e as paisagens servem como objetos representativos dos rearranjos, das mudanças inevitáveis da vida — Glück começa, “Havia uma macieira no quintal —/ isso deve ter sido/ há uns quarenta anos — atrás,/ apenas prado.” Sua descrição continua e encadeia as lembranças fragmentadas do eu-lírico. “Quantas vezes, realmente, a árvore floresceu no meu aniversário, no dia exato, nem antes, nem depois?”, questiona. “O que eu sei desse lugar,/ a função da árvore por décadas/ tomada por um bonsai, vozes/ emergindo das quadras de tênis —” O poema conclui com um dos versos mais potentes de Glück, “Olhamos para o mundo uma vez, na infância./ O resto é memória.”*

Versos como esse — sintéticos, mas expansivos; repletos de circularidade — se repetem pelas obras de Glück. E em Receitas de Inverno da Comunidade não é diferente. No curto espaço de 68 páginas, Glück surge implacável, num tom cético, mas franco e firme. Nada inclinada a amenizar os vazios, os percalços e as impermanências do tempo e da distância. Diante de um vocabulário simples e de ideias precisas, a impressão que fica é de um livro realmente duro na abordagem de seus temas. É marcante, porém, enxergar as rachaduras por onde a luz escapa no seu trabalho.

Louise Glück

E nesse novo título, a rachadura existe entre as lembranças remotas da infância, as trocas de estação, a recorrência de “belos dias dourados”, apesar da iminência de múltiplos fins, e muitos outros momentos prazerosos e auspiciosos em andamento. O impulso lúcido e os sinais de resistência ao lamento absoluto são visíveis, apesar de muitos críticos e resenhistas discordarem que Glück, de alguma forma, deixe graus de expectativa ou ideação positiva nos poemas em Receitas de Inverno. De certo, o otimismo não está amplamente presente ou qualifica o tratamento que Glück dá ao seu material.

E talvez a maior expressão disso seja o poema “Dia do Presidente”. Nele, a beleza de um sol ameno e uma neve cintilante é logo substituído por nuvens pesadas e um céu escuro. Fruto de uma faceta claramente melancólica da poeta, a desconfiança do próprio eu-lírico é escolhido como estopim dessa sequência de eventos. Algum princípio está em ação, pensei:/ louvável, dando um apoio/ à vida humana, mas por cautela/ joguei um pouco de neve por cima do ombro,/ não tendo sal. E não deu outra,/ as nuvens voltaram, e não deu outra,/ o céu ficou escuro e ameaçador,/ tudo como antes, sem contar que as perdas se amontoavam —/ momentos antes, porém,/ o sol brilhava”.

Em outro poema — nomeado Uma “Frase” — o eu-lírico, em primeira pessoa, é intransigente e discute com a irmã sobre a chegada do fim de um “tudo” indefinido, mas absoluto. “Está tudo acabado, digo./ Por que você diz isso? perguntou minha irmã./ É que, eu digo, se não acabou, vai acabar logo,/ o que dá no mesmo. E se for assim,/ não há razão para começar/ uma frase que seja./ Mas não é a mesma coisa, disse minha irmã, isso de acabar logo./ Fica uma pergunta./ É uma pergunta boba, respondi.” É recorrente e significativa, aqui e em outros poemas, a presença fraterna como uma voz dissidente em espírito e perspectiva. Ela funciona exatamente como uma articuladora da tensão, o tipo corajoso e sábio. Logo, é significativa porque, na realidade, essa irmã reverbera uma figura cuja existência é verdadeira. Glück perdeu a irmã mais velha antes dela própria nascer e ganhou uma irmã mais nova anos mais tarde. E nas palavras da autora, expressas num ensaio do livro Proofs and Theories (Provas e Teorias)*, apesar de não ter experienciado a morte da irmã, ela viveu a sua ausência, uma falta dominada pelos sentimentos que a restaram de culpa e insuficiência, diz a poeta. Pela escrita, então, Glück parece manter contato com essa irmã, transformando seu silêncio em voz, sua ausência em presença.

Logo, por mais penosas que sejam as escolhas poéticas de Glück, no geral, seus poemas são resilientes. Além disso, sua força lírica e autoral reside na sua natureza realista; na sua capacidade de abrir novos caminhos investigativos ao fugir do encorajamento cego e da imagem de uma vida continuamente feliz e eternamente juvenil. “Você precisa firmar o pé/ antes de soltar o peso em cima”, conclui ela em Outono. “— O livro contém/ só receitas de inverno, quando a vida é dura. Na primavera,/ qualquer um pode fazer uma boa refeição”, sustenta no poema homônimo “Receitas de inverno da Comunidade”.

No fim, “toda esperança está perdida./ Precisamos voltar para o lugar onde a perdemos/ se quisermos encontrá-la outra vez”, adverte Glück nos versos finais de “História de Criança”, poema cuja estrutura narrativa se assemelha a de um conto de fadas. Um conto infantil com reis e rainhas que, ao invés de viajarem de volta ao reino de carruagem, “voltam para a cidade com todas as princesinhas bagunçando no banco de trás do carro, cantando a canção de ser: Eu sou, tu és, ele é —”

A brincadeira aparentemente inocente, entretanto, torna a existência palpável demais. As palavras transformam o tempo em algo sólido, denso e inevitável. “Mas não haverá/ conjugação no carro, ah, isso não./ Quem pode falar no futuro¿ Ninguém sabe coisa alguma sobre o futuro,/ nem os planetas sabem./ Mas as princesas terão de viver nele.” “História de Criança” traz à tona, mais diretamente, não só o talento e o interesse de Glück pela escrita e pela linguagem, mas faz referência ao desenho familiar da autora. Uma família de imigrantes judeus — húngaros por parte de pai, russos por parte de mãe — que, segundo Louise Elisabeth Glück, valorizava as artes e as incentivava — Louise e a irmã mais nova, Tereze Glück — a desenvolver múltiplas habilidades intelectuais e artísticas: ballet, pintura, música. Louise resolveu ficar com a poesia, e vice-versa. E não por acaso seu ensaio “Education of the Poet” (Educação do poeta)*, presente em Proofs and Theories (Provas e Teorias)*, retoma sua história com a escrita ao recuperar sua história familiar: de um pai que sonhava em ser escritor, mas tornou-se empresário, e de uma mãe dona de casa que, culta e exigente, era o carimbo de aprovação que Louise continuamente ansiava.

A partir daí, depois da infância burguesa, da descoberta obcecada pela literatura e da adolescência interrompida pela anorexia, Louise dá os passos determinantes em sua carreira como escritora, poeta e, mais tarde, professora universitária. Da Cidade de Nova York — onde nasceu — para Long Island — onde cresceu, do Estado de Nova York para Massachussets, de Massachussets para Vermont, sua vida foi uma trajetória de saltos; de altos e baixos pessoais que, ainda assim, solidificaram sua instigante criação literária e sensível voz poética, fundamentadas numa dinâmica de coexistência entre seu lado delicado e sua versão taciturna e severa.

Essa dinâmica é vista nos poemas mais próximos do final de Receitas de Inverno, onde os versos soam mais compreensivos, porém ainda ferozes, o que intensifica a nossa comoção por sua degustação de alegria. Algo que o eu-lírico declara abertamente estar sentindo no poema “Canção”, o último dos quinze. “E então eu digo que estou feliz porque sonho/ o fogo ainda está vivo”. No mesmo poema, a norte-americana não suspende sua relação complexa com a ideia do fim, mas novamente traz uma marca triunfante, quase apaixonada, ao assunto. “Fazemos planos/ de percorrer juntos as trilhas./ Quando, pergunto a ele,/ quando? Nunca mais:/ é isso o que não dizemos.// Ele está me ensinando/ a viver na imaginação:”

Os poemas em Receitas de Inverno — e a bibliografia de Glück como um todo —, dessa maneira, nascem, vivem e se reposicionam em função desses tipos de ambiguidade. Entre a alegria e a desolação, a beleza e o desencanto, nada é pura e simplesmente uma única coisa, mas estão num limiar. “Sem surpresas, os tipos de frase que me atraiam, das quais refletiam esses gostos e esse estado mental, eram os paradoxos (…)”, sustenta Glück em Education of the Poet (Educação do Poeta)*. Nesse sentido, a dor de um amor desmanchado, por exemplo, conduz às lembranças e às transformações necessárias para seguir em frente, assim como os passos em direção à velhice são acompanhados pela dúvida com relação ao grau de sabedoria e de convicção que acumulamos com as experiências.

Em “A Negação da Morte”, a história desse amor diluído é narrada com a primorosa habilidade narrativa de Glück. Aos modos da prosa e da ficção, a poeta reflete sobre o tempo e a memória, apontando seus gestos de avanço e retrocesso, resistência e impermanência. Temas que, sob a perspectiva do envelhecimento, ela vai tratar, dentre outros, em poemas como “Outono”, “Tardes” e “Inícios de Noite” e “Uma História Sem Fim”, títulos que despertam relações interessantes entre si.

Perguntas feitas em “Outono”“Como pesa a minha cabeça,/ cheia de passado./ Será que tem espaço/ para o mundo penetrar?/ Ele precisa ir para algum lugar,/ não pode simplesmente ficar na superfície —” localizam acenos de resposta em Tardes e inícios de noite“Os belos dias dourados quando você estava perto da morte/ mas ainda era capaz de participar de conversas aleatórias com estranhos,/ aleatórias mas também deliberadas, de modo que as impressões do mundo/ ainda se formavam, modificando você”. Assim como, num movimento parecido, esses versos de “Tardes” e “Inícios de Noite” esbarram com um irmão gêmeo mais carinhoso em “Uma História Sem Fim” “Os chineses tinham razão, ela disse, em reverenciar os velhos./ Olhem para nós, ela disse. Todos nós aqui nesta sala/ continuamos à espera de ser transformados. É por isso que buscamos amor./ Buscamos amor a vida inteira,/ mesmo depois de encontrá-lo.”

“Poema”, criação que abre Receitas de Inverno, é um desses outros títulos que, ante a aproximação microscópica de Glück com o tema do envelhecimento, estampa, logo de entrada, o coração poético da escritora. Nele, a poeta parece preocupada em entender os desfechos contidos na velhice, para então (tentar) compreender o que sobra e permanece dessas perdas. Assim, Glück coloca o eu-lírico e seu companheiro de frente com imagens de um passado, dois jovens, um menino e uma menina — talvez suas versões mais novas —, que como “dia e noite chegam/ mão na mão”. “Eles escalam a alta montanha coberta de gelo/ e voam para longe. Mas você e eu/ não fazemos esse tipo de coisa —”.

Nesse encontro entre supostos semelhantes, os dois percebem, paradoxalmente, que não podem alcançar aquelas versões. “Para baixo e para baixo e para baixo e para baixo/ é aonde o vento está nos levando;”. Tentam se comunicar uns com os outros, mas não conseguem: “Que rápido vocês vão, gritam para nós,/ mas não, é o vento nas nossas orelhas,/ é isso o que ouvimos —”. Apesar de melancólico, o “Poema” termina e demonstra que o ponto de vista de Glück não parece reconhecer a morte, o afastamento e as perdas apenas como fins, mas como fluxos, testemunhos da vida em constante trânsito. Os dois personagens podem estar caindo, sem palavras que o consolem, porém “o mundo passa,/ todos os mundos, cada um mais belo que o outro;”. E, em aberto, o último verso elogia a insistência do carinho, do cuidado diante (e apesar) da aceitação da inevitabilidade: “Toco sua face para protegê-lo —”

Como poeta, o compromisso de Glück nesse novo livro parece ser em entender o que sentimos quando estamos nos aproximando de um desfecho. Olhar para ele por trás, pelos lados e de frente é uma possibilidade que Glück não desconsidera em meio ao óbvio: não podemos escapar dele. Essa atitude da norte-americana é inquietante, corajosa e vislumbra uma maneira de como continuar vivendo. Vivendo fortes, mas amargos, como um despertador.


*Tradução livre. 

** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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