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Quem tem medo de Lygia Fagundes Telles?

Dedicar a vida à arte pode ser apaixonante, transformador ou pode consumir a pessoa até sobrarem apenas caquinhos. Pode ser o segredo de longevidade, o que acredito ser o caso de Lygia Fagundes Telles. A escritora, que é formada em Direito, mas vive da escrita ainda hoje aos 96 anos; seu primeiro romance, Ciranda de Pedra, foi publicado em 1954. Se existe uma autora brasileira que consegue combinar todos as sensações — a sensibilidade, o extraordinário e o feminino — em poucas páginas, é Lygia.

A partir do segundo em que aceitamos todas as regras que seus textos apresentam, não existe escapatória: a mente e o corpo de quem lê já foram transportadas e são capazes de compartilhar os risos, as dúvidas, os nervosismos e os medos com as personagens da obra. Em Histórias de Mistério, a seleção de seis textos intriga, tensiona os ombros, acelera o coração, arrepia os pelos dos braços. Apesar dos temas ordinários, Lygia é capaz de proporcionar a total imersão com sua literatura fantástica, infiltrada com pequenas doses de horror e suspense.

Histórias de Mistério pode ser visto como uma edição reduzida do volume bem mais longo intitulado apenas Mistérios, publicado em 1981. Os cinco contos encontrados em Histórias também estão no primeiro livro. Logo no prefácio da edição mais recente, a proposta fica bem definida: a intenção não é limitada a provocar medo nos espectadores, uma característica clara do terror. A relação com o mesmo não é negada, mas questionada. Segundo o filósofo Noël Carroll, o horror tem o receptor como alvo, seja no cinema, nas artes plásticas ou no cânone literário, como Frankenstein de Mary Shelley ou os contos de Edgar Allan Poe. É um gênero físico em todas as suas subdivisões, que além de assustar também busca a aversão, a repulsa ou a perplexidade. O horror é como andar sozinho no escuro, dá frio na barriga e cria hipóteses na mente e, por isso, se aproxima tanto do suspense e do mistério. Mas não quer dizer que são indissociáveis, o que responde à proposição do livro — o horror está presente, mas não representa o conjunto integralmente.

Nos dois primeiros contos, “A Caçada” e “As Formigas”, respectivamente, ocorre a materialização do suspense em objetos. O inanimado eleva o fator de mistério a outro patamar, pela impossibilidade de previsão. “A Caçada” funciona muito mais na linha do surreal. Um homem entra em uma loja de antiguidades e fica fascinado por uma grande tapeçaria empoeirada. Aos seus olhos, os elementos movem-se, deixam-o nauseado. Imerso na gravura, a paranoia o faz acreditar que ele é parte da busca. Escolhido para a abertura do livro, as poucas páginas são um convite para entrar, assim como o indivíduo no antigo tapete, na obra à frente. No célebre “As Formigas”, duas moças, primas e universitárias, mudam-se para um quarto apertado e com um estranho baú contendo o esqueleto de um anão. No início, a ossada desperta a curiosidade de uma delas, mas logo a tensão chega quando a noite cai e os insetos do título e os vetores do objeto fantástico tentam remontar a estrutura. Se o primeiro conto firma o terreno e apresenta um gostinho do que será o livro, “As Formigas” é que planta a semente. Lygia aponta os limites da racionalidade e deixa, apenas sugerido, o que poderia ter acontecido — de fantástico ou de horrível — com as jovens caso ficassem mais tempo presas em um cubículo mal cheiroso com o esqueleto de um anão, independente de sua materialidade ser real ou não.

“Natal na Barca” desloca o eixo fantástico para a figura humana, mas ainda se utiliza do realismo dúbio deixado por seus antecessores. O enredo coloca o leitor dentro de uma barca inóspita com apenas quatro passageiros na noite de 24 de dezembro. Além da narradora, estão na barca um homem bêbado que cochila nos bancos e uma jovem que leva seu bebê envolvido em um xale preto. É uma conversa com a jovem mãe que faz a história caminhar, o que pode parecer até banal demais. No entanto, o tema do papo é bastante trágico e constantemente a narradora remonta o clima mórbido do ambiente — sempre lembrando que estão todos vivos. Quando o diálogo as aproxima o suficiente para um contato físico, a mulher é surpreendida: o neném no colo da moça aparenta estar morto. O estado do bebê condensa todos os medos e ansiedades da personagem, assim como os de quem lê.

“Jardim Selvagem” é o que traz a tona questões do feminino ao contar com o estereótipo da femme fatale — ou a desconstrução dele. É característico da literatura de Lygia a presença do protagonismo de mulheres, desde de seu romance mais conhecido, As Meninas (1973), até as várias narradoras nos contos de Histórias de Mistério. Ducha é uma garota que ouve muito, fala muito e pergunta bastante. Vivendo com a puritana Tia Pombinha, a notícia importante que rodeia a casa é o súbito casamento de Tio Ed, irmão mais novo de Pombinha, com a misteriosa Daniela. A marca da nova esposa é uma luva na mão direita, que não a tira por nada neste mundo, além da postura arrojada. Apesar de cativante, a mulher levanta desconfiança após matar o cachorro que vive na chácara da família. Seus motivos não ficam claros e, como é esperado, o final é aberto: não sabemos se Daniela é uma viúva negra ou apenas uma mulher de posicionamento progressista e os acontecimentos funestos são de ordem natural.

É “Lua Crescente em Amsterdã” o que mobiliza mais fantasia. O linguista búlgaro Tzvetan Todorov, em seu estudo Introdução à Literatura Fantástica (1992), separou a categoria em três eixos: o maravilhoso, o estranho e o fantástico. Se os contos anteriores apoiam-se no fantástico, mantendo as explicações possíveis em uma corda bamba entre o naturalismo e o sobrenatural, “Lua Crescente” é de todo maravilhoso, aproximando-se de um conto de fadas, mas sem aposentar as características anteriores da obra. Contado em diálogos, a trama contém apenas dois personagens, um jovem casal divagando sobre o fim do amor entre eles numa noite de fome na capital da Holanda. Mais uma vez o final fica incerto: seria esse mais um conto de Lygia que trabalha com a noção de metamorfose? Teria o casal virado um pássaro azul e uma borboleta ou nunca foram humanos? A linguagem confunde e ajuda a manter a coerência do livro com referências constantes a características animalescas, como garras e olhos escurecidos, que endossam as sugestões.

O último da coletânea mobiliza um conjunto de sensações distintas de seus antecessores. No único não-conto, “Onde Estivestes de Noite?”, Lygia introduz-se em cena e narra quando e como recebeu a notícia do falecimento da amiga Clarice Lispector, enquanto relembra uma viagem com a escritora. A crônica é densa e delicada simultaneamente. Já era claro que Lygia escreve sobre temas soturnos como em “Jardim Selvagem” e “Natal na Barca” com grande destreza. Entretanto, como se trata de um acontecimento não ficcional e pessoal, a crônica alcança um nível íntimo muito mais profundo. A sensibilização é ainda maior pelo toque excepcional que a autora dá a crônica, justificando sua escolha. Seu final é triste, como não poderia deixar de ser, mas um tanto quanto acalentador.

A obra de Lygia é extensa e alguns contos renomados como “Venha ver o Pôr-do-Sol” e “Seminário dos Ratos” ficaram de fora. Explicada a seleção para Histórias de Mistério, o principal é reunir o que a autora tem de melhor em sua forma extraordinária. A capacidade de fazer o leitor perder-se no suspense é exaltada e Lygia vem para encantar, impressionar, emocionar. E assustar também. Mas só um pouquinho.