Categorias: CINEMA

Porque filmes de horror não são indicados ao Oscar?

Durante uma entrevista a Jake Hamilton para promover o filme Infinity Pool, a atriz Mia Goth foi questionada sobre a sua não indicação ao Oscar de Melhor Atriz em 2023 por Pearl, algo surpreendente para muitas pessoas devido à aclamação que ela recebeu. Em resposta, Goth afirmou que considera as nomeações da Academia algo “muito político e não totalmente baseado na qualidade de um projeto em si”. Além disso, ela destacou que existe muita coisa acontecendo nos bastidores quando se trata de indicações e pontuou que, quando o assunto é o horror, a principal premiação de cinema do mundo precisa de uma mudança necessária para conseguir realmente se envolver com o público.

O primeiro ponto que chama a atenção na fala da atriz está relacionado à questão da qualidade que, em geral, é medida por dois aspectos: a aclamação da crítica especializada e o sucesso em premiações que antecedem o Oscar, geralmente promovidas por sindicatos. No que se refere às críticas, é interessante observar que Pearl possui 91% de aprovação no agregador Rotten Tomatoes com base em 161 avaliações. No Metacritic, o bom desempenho se mantém e considerando 31 críticas, tem-se a nota 73 de 100. Partindo para o segundo critério, o IMDb registra nomeações em prêmios como o Spirit Awards, o Fangoria Chainsaw e o Boston Society of Film Critic Awards, totalizando 45 indicações para Pearl, sendo 25 delas para a performance de Mia Goth, que foi descrita por Bobby LePire do Film Threat como “sutil e exagerada ao mesmo tempo” e por Sarah Jane do The Austin Chronicle como “uma vitrine da potência” que é a atriz.

Isso nos leva diretamente para o segundo aspecto chamativo da fala: o que está acontecendo nos bastidores. Se não falta à atuação de Goth a qualidade necessária para que ela seja reconhecida pela Academia, o que falta? Para responder a essa pergunta é preciso falar a respeito de questões como lobby e campanha, dois pontos de muita influência na lista final de indicados ao Oscar.

Porque filmes de horror não são indicados ao Oscar?
Pearl (2022), de Ti West.

A palavra lobby está diretamente ligada ao exercício da influência. Ou seja, trata-se de um tipo de pressão feita por um determinado grupo em busca de moldar os rumos em um processo que envolve a tomada de decisões, conseguindo que os seus interesses sejam favorecidos. Em fevereiro de 2020, a Folha publicou uma matéria a respeito dessa questão destacando que os valores desembolsados pelos estúdios com festas para os votantes têm tanto impacto na lista da Academia quanto a qualidade de um filme — talvez mais.

Neste texto, o diretor Fernando Meirelles, na ocasião indicado por Dois Papas, chegou a afirmar que as indicações não são de graça. Para ilustrar a sua fala, ele relatou que cancelou quatro meses da sua agenda de compromissos para comparecer a festas e debates relacionados ao Oscar, provando que o seu filme merecia ser lembrado. Outro brasileiro a corroborar essas afirmações foi José Padilha, que citou as diferenças entre o prêmio da Academia e festivais como Cannes e Berlim, menos controlados pela política devido ao tamanho do júri, de forma que os filmes conseguem emplacar indicações mesmo sem um marketing pesado.

Diante disso, é preciso falar a respeito de questões orçamentárias do horror. Levando em consideração dados do Box Office Mojo, Pearl teve bilheteria doméstica de 9,4 milhões de dólares. Em uma época de cifras bilionárias, isso pode não soar tão impressionante, mas certamente se torna mais expressivo quando é adicionada a informação de que o filme custou apenas 1 milhão de dólares — ou seja, o lucro foi multiplicado por 9. É importante destacar que esse orçamento inclui apenas os aspectos que vão da pré a pós produção, não englobando o marketing do longa, que foi bastante modesto: quando X – A Marca da Morte foi exibido no Festival de Cinema SXSW, um teaser da prequel acompanhou a cópia. Três meses depois, um trailer de Pearl foi divulgado, vinculando-o diretamente ao primeiro capítulo lançado da trilogia através da frase “An X-traordinary Origin Story”.

Sem entrar em méritos como qualidade e para manter as coisas “em casa”, é interessante traçar uma comparação com Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, longa que, assim como Pearl, foi produzido pela A24 e conseguiu emplacar 11 indicações ao Oscar, incluindo Melhor Atriz para Michelle Yeoh. O longa teve um orçamento de 14,3 milhões de dólares e arrecadação doméstica de 72,5 milhões de dólares. Esses números também podem ser considerados modestos em comparação com títulos como Top Gun: Maverick, mas a diferença de arrecadação está no maior empenho em vender Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo. Para encurtar um caminho que foi bastante longo, o filme contou com mais exibições em festivais, capas de revista e um buzz on-line que contribuiu para criar expectativas no público. Por fim, os próprios diretores chegaram a afirmar que desenharam o longa para se parecer com um blockbuster de Hollywood.

Porque filmes de horror não são indicados ao Oscar?
Nope (2022), de Jordan Peele.

Não é um problema pensar um filme de acordo com o seu potencial viralizável. Mas isso serve para esclarecer os motivos pelos quais a A24 preferiu investir na campanha de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo e porque ele tinha mais chances de sucesso em termos de indicações ao Oscar do que Pearl. Aqui, é preciso lembrar que, embora muitas pessoas associem a produtora a um cinema independente e que abre portas para novatos exibirem o seu potencial, ela ainda está inserida dentro de uma lógica de mercado. Portanto, é guiada pelo lucro tanto quanto qualquer outro estúdio, de modo que não havia motivos para investir em uma produção que, quando muito, renderia uma indicação na categoria de Melhor Atriz, e desviar recursos de outra que poderia trazer — e trouxe — números mais expressivos nesse sentido.

Nesse ponto, já é possível compreender que o horror não recebe o mesmo investimento que outros gêneros em vários casos. Jordan Peele, o último diretor a conseguir emplacar uma produção na categoria de Melhor Filme, recebeu apenas 4,5 milhões de dólares para fazer Corra! e 20 milhões de dólares para o seu segundo filme, Nós. No ano passado, ele retornou às salas de cinema com o elogiado Não! Não Olhe, cujo orçamento foi de 68 milhões de dólares — um salto expressivo, mas ainda distante de oponentes como Avatar: O Caminho da Água. Além disso, embora o nome de Peele seja hoje o bastante para que estúdios desembolsem mais dinheiro, ele ainda é incapaz de superar questões históricas que estão na base do que sustenta o desprezo da Academia pelo cinema de horror.  

A primeira cerimônia do Oscar aconteceu em maio de 1929, em um hotel em Los Angeles, e foi bem mais modesta do que estamos acostumados a ver. Entretanto, com o tempo a premiação foi firmando o seu nome até se tornar o que conhecemos atualmente. O que favoreceu esse cenário está ligado à consolidação do cinema enquanto uma forma de fazer arte, o que aconteceu nos primeiros anos do século XX. Logo, os prêmios eram uma forma de valorizar aqueles que se dedicavam à produção cinematográfica e passaram a funcionar como “termômetros de qualidade”. Desde esse contexto, filmes de gêneros como o drama eram favorecidos. Se nos debruçarmos sobre Asas, o primeiro vencedor da história na categoria de Melhor Filme, é capaz de percebermos elementos recorrentes até os dias de hoje: romance, guerra e luta por sobrevivência.

Também foi nesse contexto que começou a tomar forma a mentalidade de indústria. A partir disso, foi criada uma hierarquia que colocava os filmes em patamares diferentes de acordo com o gênero. Essa visão foi se tornando cada vez mais nítida durante as décadas de 1930 e 1940. Neste período surgiu a separação entre “filmes A” e “filmes B”. Em um primeiro momento, os conceitos em questão estavam ligados à distribuição, mas acabaram influenciando a percepção do cinema de gênero — o horror, a ficção científica e o faroeste foram alguns dos impactados. Assim, as produções desses estilos eram vendidas como “filmes B” para os donos de cinemas devido ao sistema de venda casada (ou block booking), de modo que, caso eles quisessem ter acesso aos “filmes A”, como E O Vento Levou, precisavam comprar e exibir os “filmes B”, ainda que muitas vezes tivessem prejuízos.

Porque filmes de horror não são indicados ao Oscar?
O Exorcista (1973), de William Friedkin.

Com o tempo, e devido ao surgimento de nomes como Alfred Hitchcock e Sergio Leone, essa percepção começou a mudar, mas somente para quem se chamava Alfred Hitchcock e Sergio Leone. Posteriormente, nos anos finais da década de 1940, o block booking foi derrubado por uma lei antitruste, o que desobrigou os donos de cinema de adquirir filmes que não fossem do seu interesse. Ainda nesse contexto, aconteceu a popularização dos drive-ins, que se tornaram a nova casa do horror e da ficção científica. Isso aconteceu uma vez que esse modelo de exibição era mais barato do que os cinemas convencionas e atraía jovens, de forma que, para conseguir manter o lucro, os proprietários precisavam comprar os “filmes B”.

A partir disso, foi criada dentro do cinema a noção de alta e baixa cultura. Por alta cultura entendia-se tudo aquilo que se pautava por um discurso academicista e atingia o status de clássico. A baixa cultura, por sua vez, servia para designar o que era popular, de modo que é desnecessário dizer de que lado estava um gênero associado a espaços que exibem filmes para jovens a preços baixos. Tudo isso serve para escancarar o elitismo presente na forma como o horror é visto até os dias de hoje — algo que impacta a visão dos críticos, fazendo com que não seja incomum continuar criando cisões dentro do gênero, como a própria falácia do “pós-horror”. Inclusive, o cinema brinca com essas noções ao colocar na boca de uma personagem de Pânico (2022) falas como “eu só gosto de horror elevado”.

Embora essa linha de diálogo esteja presente no filme para ser questionada, em uma busca bastante breve é possível encontrar diretores que já se valeram do horror em suas carreiras compartilhando de uma perspectiva similar. Um exemplo disso é William Friedkin, que chegou a afirmar que O Exorcista não era um filme do gênero, ainda que ele trate de uma garota possuída por um demônio. Para trazer uma ilustração mais recente, vale destacar a fala de Valdimar Jóhansson, de Lamb (também produzido pela A24). O diretor afirmou que se surpreendeu quando as pessoas classificaram a produção como horror, visto que ele pensava ter dirigido um “filme de arte”.

Esse tipo de visão não faz muito pelo gênero em termos de remover estigmas. Na verdade, ele dá a liberdade para que crítica e público continuem tratando o horror como um gênero menor e distante da arte — ainda que as suas origens estejam ligadas a um estilo de pintura, poesia e cinema de influência significativa, o Expressionismo Alemão. Ele também contribui para a manutenção da ideia de que o horror sempre esteve confinado à precariedade estética e de ideias, fortalecendo discursos rasos e equivocados como os de Steve Rose no The Guardian. A questão da falta de ideias também pode ser ilustrada por uma fala de Roger Ebert, que se referiu ao slasher como dead teenager movies”, ainda que o subgênero tenha se reinventado e se provado capaz de trazer discussões sobre o próprio cinema ao longo dos anos.

Porque filmes de horror não são indicados ao Oscar?
Scream (1996), de Wes Craven.

Devido a essas questões, o horror seguiu relegado ao segundo plano — quando muito — do primeiro ano do Oscar até 1973, ocasião na qual O Exorcista conseguiu emplacar uma indicação na categoria principal. Antes disso, somente quatro filmes foram lembrados, em sua maioria em prêmios técnicos ou de atuação. Este é o caso, por exemplo, de O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, que foi indicado a seis Oscars e venceu somente o de Melhor Figurino. E, embora 1973 tenha sido um ano significativo, O Exorcista amargou a derrota em Melhor Filme. Em partes, isso aconteceu devido a uma campanha do diretor George Cuckor, que chegou a afirmar que o longa não estava de acordo com os padrões da premiação, mas sem apresentar uma justificativa plausível, já que era praticamente impossível atacar a produção por qualquer coisa ligada aos aspectos técnicos e de roteiro.

Desde a indicação de O Exorcista, 50 anos se passaram. Entretanto, a visão da Academia a respeito do horror persiste. Somente outros cinco filmes do gênero foram lembrados: Tubarão (1975), O Silêncio dos Inocentes (1991), O Sexto Sentido (1999), Cisne Negro (2010) e Corra! (2017). Em todos os casos existe alguma particularidade, além dos óbvios méritos dos longas, que fez com que fosse impossível ignorar estes títulos. Tubarão, por exemplo, foi o filme responsável por consolidar o conceito de blockbuster como o conhecemos hoje.

O mais interessante quando se pensa nas produções restantes é discutir o caso de O Silêncio dos Inocentes, o único que se consagrou como vencedor a Melhor Filme. O longa conseguiu outro feito naquela noite: se tornar pertencente a um seleto grupo de vencedores do “Big Five” (Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro, Melhor Ator e Melhor Atriz). Para isso, entretanto, ele precisou se vendido como um thriller, “gênero” híbrido e bastante abrangente, cujas definições frequentemente esbarram no que se espera de um filme de horror, especialmente na vertente psicológica, que se pauta pela construção da tensão. Um padrão similar foi seguido anos mais tarde, com Cisne Negro, que alguns ainda categorizam como drama, como se este componente servisse para colocá-lo acima dos demais.

Dessa forma, quando Corra! conseguiu a sua indicação em 2018, a impressão de que uma mudança estava no horizonte foi inevitável. Ao contrário de outros diretores, Jordan Peele fazia questão de aproximar o seu filme do horror, o que poderia abrir espaço para que outras vozes tivessem a mesma chance que ele na premiação. Entretanto, as coisas não aconteceram dessa maneira e desde que Corra! conquistou o seu lugar ao sol, o horror continuou a ser ignorado pela Academia mesmo em “categorias menores”.

Us (2019), de Jordan Peele.

Uma delas, a de Melhor Atriz, contribuiu bastante para que o preconceito dos votantes começasse a ser escancarado nas redes sociais. Isso aconteceu quando, em 2019, Toni Collette foi esnobada pela sua performance em Hereditário e posteriormente se repetiu quando Lupita N’yongo também não foi nomeada por Nós. Assim, embora algumas pessoas tenham se surpreendido com Mia Goth sendo ignorada em 2023, na verdade, a atriz é mais uma na linhagem de grandes nomes do gênero a não receberem o reconhecimento que merecem devido ao fato de que o seu veículo é alvo de um preconceito infundado, mas bastante enraizado. Outro nome que teve um destino similar foi Florence Pugh por Midsommar.

É importante ressaltar que ninguém espera que filmes extremamente nichados, como Noites Brutais, recebam indicações ao Oscar. Para isso os fãs de horror têm o Fangoria Chainsaw — e posso garantir que nós estamos bem satisfeitos. Porém, produções como O Homem Invisível (2020) mereciam ser lembradas porque a sua qualidade é fácil de ser reconhecida até por quem não acompanha de perto o gênero — algo que também pode ser dito de títulos como A Casa Sombria (2021). Reconhecer títulos como estes seria uma forma de dar mais relevância cultural ao Oscar e abrir mais diálogo com o público, conforme Mia Goth ressaltou na sua fala. Porém, os votantes da Academia permanecem ignorantes ao poder do gênero e à sua capacidade de ultrapassar limites e desafiar expectativas, o que torna o horror progressista por natureza.

E o progresso parece distante dos interesses do Oscar, infelizmente. Na verdade, se a lista desse ano mostra alguma coisa, é que mais do que nunca eles estão inclinados a olhar para o passado, seja através da nostalgia evocada por Top Gun: Maverick ou por nomear Nada de Novo no Front, mais um filme de guerra. Isso não deixa de ser um reflexo do fato de que, em sua maioria, os votantes são homens brancos de certa idade, que se deleitam com o seu reflexo no espelho. A familiaridade gera um senso de segurança, algo que parece bastante desejado pelos membros do júri da Academia. Afirmar isso não é desmerecer a qualidade das produções citadas, visto que grandes obras foram forjadas exatamente em cima dos mesmos elementos. É, na verdade, apontar como o desconhecido e o desafiador não têm espaço justamente porque, com o perdão do trocadilho, assustam e apontam para um futuro que seja menos masculino, branco e heterossexual.

1 comentário

Fechado para novos comentários.