Categorias: CINEMA

O tempo da mulher é outro? Por que histórias de amadurecimento de meninas tem protagonistas tão jovens?

Você já é uma mocinha?

A temporada de premiações cinematográficas de 2023 trouxe, entre suas indicações, três filmes que acompanham o amadurecimento de três jovens garotas, que ainda têm uma adolescência inteira para atravessar, mas já alcançaram uma maturidade que não se vê nas artes quando se trata de garotos, que vão encontrar seu crescimento pessoal muito mais tarde, no final da adolescência.

“Acho legal que a gente compartilhe o mesmo céu.” 

Aftersun se tornou o filme mais assistido da plataforma de cinema alternativo MUBI e colecionou indicações na temporada de premiações. No entanto, no Oscar — a grande premiação do cinema estadunidense — o longa do Reino Unido só recebeu uma indicação, na categoria Melhor Ator. Embora Paul Mescal tenha um atuação impressionante justamente por retratar uma paternidade e uma masculinidade dissonantes da tradicional, grande parte de seu trabalho é mérito do roteiro, assinado por Charlotte Wells. A trama é construída de modo a nos apresentar um pai aberto ao diálogo, carinhoso, compreensivo e sem preconceitos ou conflitos aparentes em sua relação com a filha e a ex-esposa. Também é mérito da direção de Charlotte em seu filme de estreia que a delicadeza da história — que tem muito em comum com a vida pessoal da diretora — abra frestas para enxergarmos nuances delicadas da relação entre pai e filha e as fragilidades e falhas do personagem adulto.

amadurecimento
Aftersun (2022)

A história acompanha as férias de Sophie, a garotinha vivida por Frankie Corio — que também não recebeu nenhuma indicação ao prêmio de Melhor Atriz —, e seu pai. Os dois têm uma relação amigável, próxima e companheira, embora aos poucos os registros com uma câmera feitos pela família, que se misturam ao próprio olhar das câmeras que fazem o filme, revelem que há algo acontecendo com o homem. Talvez, aos olhos da garota, ainda escapem algumas nuances, mas enquanto espectadores, podemos ver que há algo que o pai não deseja revelar para proporcionar boas férias à filha.

O que não consegue ser contido entre eles acaba escapando e gerando episódios de descoberta para a menina, como a convivência com adolescentes mais velhos, o primeiro beijo, o início do entendimento sobre a própria sexualidade — de forma sutil e natural. Com sensibilidade, calma e também doses intensas de emoção, o filme conta com o entendimento tardio também, defendendo a tese de que o crescimento é notado também em retrospecto. A jovem Sophie não entendia a importância dos eventos daquele verão, mas sua versão adulta, que revê aqueles registros das férias, relembra aquele período já com uma consciência maior dos conflitos e crescimentos da época, que ainda seguem e se potencializam quando ela também é adulta e entende um pouco melhor a perspectiva do pai.

“Onde há segredo, há vergonha.”

A Menina Silenciosa é o concorrente irlandês indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. A trama também acompanha um período limitado do final da infância da protagonista. Cáit, interpretada por Catherine Clinch, é a filha mais nova de uma família numerosa de meninas negligenciadas que vivem com medo do pai. Quando sua mãe está prestes a dar a luz a mais uma criança, a garota é enviada para passar um verão com parentes de seu pai até que o bebê nasça. O homem distante, grosseiro e rude deixa a filha sem nenhuma cerimônia aos cuidados de um casal, vivido por Carrie Crowley e Andrew Bennet. Na casa grande, limpa e silenciosa, onde condições econômicas são nitidamente bem melhores que as da família biológica da garota, Cáit convive durante o verão com uma rotina completamente diferente da sua.

Enquanto adultos espectadores, nossa tensão aumenta à medida que percebemos que a situação pode ser muito perigosa para uma criança, em especial porque ela é uma menina na casa de desconhecidos e está sujeita a todo tipo de abusos. No entanto, o filme vai por um caminho contrário: ao invés de mostrar um amadurecimento doloroso através de situações traumáticas e violentas, é naquele lar que a garota conhece o cuidado que nunca conheceu em família. Ao mesmo tempo que nós — ao observarmos os acontecimentos do roteiro co-escrito por Claire Keegan, autora do livro Foster, que inspirou o filme —, a pequena Cáit descobre na convivência com o casal Cinnsealach que há muito a ser entendido no não dito e nas vergonhas escondidas nos segredos que às vezes precisamos guardar. O aprendizado transformador da garota é saber o que de fato precisa para seguir a vida: cuidado, carinho, atenção. E, ainda assim, a história também é sobre os gritos ensurdecedores que existem nos silêncios, algo que só a maturidade ensina a ouvir.

amadurecimento
A Menina Silenciosa (2022)

“Todos temos uma fera dentro de nós.”

Red: Crescer é uma Fera é o nome brasileiro da animação da Disney/Pixar que está indicada na categoria de Melhor Animação. O roteiro de Sarah Streicher e Julia Cho é também co-escrito pela diretora Domee Shi, e o trabalho conjunto das três constrói de forma divertida, espirituosa e acolhedora a reaproximação entre uma garota e as mulheres de sua família.

Meilin é uma pré-adolescente, filha de imigrantes, que tem uma vida dupla: ao mesmo tempo que é uma boa aluna, dedicada aos estudos e ao trabalho que faz acompanhada da mãe no templo aos ancestrais, é, junto com as amigas, super fã de uma boyband chamada 4-town. Esse gosto não é muito bem visto pela mãe, uma mulher crítica, protetora e rígida, que considera futilidade gostar tanto dos meninos e acha uma bobagem vários comportamentos típicos da idade da menina, que, de acordo com ela, deveria se dedicar exclusivamente aos estudos.

É depois de passar por um grande constrangimento por causa da mãe, que resolve tirar satisfações com um garoto por quem Meilin e as amigas têm uma leve paixonite, que a menina acorda transformada em um panda vermelho, símbolo de Sun Yee, ancestral da família que se transformava na fera para proteger seus descendentes. Após alguns desastres, Meilin descobre que as mulheres de sua família passam por aquela transformação, mas também precisam se livrar dela, um dia já considerada uma bênção.

No entanto, ao ser acolhida pelas amigas, a garota fica dividida entre a tradição familiar de se desvencilhar da fera através de um ritual e a vontade de manter sua nova forma — a qual começa a controlar com a ajuda das amigas. Meilin também começa a secretamente usar sua fera interior para ganhar dinheiro na escola para que, junto com suas amigas, possam ir a um show da turnê de seus ídolos às escondidas da mãe. O amadurecimento de Meilin, portanto, tem a ver com deixar o controle da mãe e encontrar seu lugar entre as tradições e sua individualidade. Os acontecimentos são fantásticos e a animação abre a possibilidade para várias intervenções em tela que filmes live-action não teriam, mas, mesmo com os contornos sobrenaturais inspirados na tradição chinesa, o filme não deixa de ser sobre algo muito real: o amadurecimento da relação entre meninas e suas mães.

“Ele é só um garoto.”

Os três filmes citados são sobre amadurecimento. Ainda que existam marcos que representem a transição para a idade adulta, o processo nem sempre é linear e, definitivamente, não se conclui de uma hora para a outra. Qualquer história que trate deste ponto é mais complexa e ampla.

amadurecimento
Cidade de Deus (2002)

Na tradição narrativa, a literatura já apresentou inúmeros modelos de romances de formação, que acompanham o crescimento de um personagem em sua passagem da inocência adolescente à idade adulta. A obra considerada inaugural do gênero na literatura ocidental é Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (1795-1796) e, desde então, a sociedade produziu e consumiu inúmeras obras literárias, teatrais e cinematográficas com a mesma temática de rompimento interno e irreversível da ingenuidade. O Apanhador no Campo de Centeio e Demien são alguns exemplos clássicos do gênero, que muitas vezes tem um pé na autoficção ou na autobiografia e se tornou um tipo tão difundido de narrativa que engloba títulos diversos e com abordagens muito distintas.

Quando nos voltamos para a área cinematográfica, alguns exemplos do gênero figuraram constantemente na Sessão da Tarde, como Curtindo a Vida Adoidado. Há também outros mais cult, como A Primeira Noite de Um Homem ou Quase Famosos, e os consagrados no cinema mundial, mas classificados também em outros gêneros e, por isso, nem sempre facilmente identificados como um coming-of-age, como é o caso do sucesso de crítica e público do cinema nacional Cidade de Deus. Por mais que não pareça ser o ponto principal da trama, o fio condutor que liga todas as subtramas é a busca do narrador recém saído da adolescência, Buscapé (Alexandre Rodrigues), por uma vida adulta independente — e até mesmo existente —, já que, além dos desafios das primeiras relações amorosas e o aprendizado de um ofício, o jovem também tem que sobreviver em meio à violência onipresente na Cidade de Deus.

Quando se pensam os clássicos de amadurecimento, uma grande maioria tem como protagonistas (e quase sempre roteiristas e diretores também) homens brancos-cis-heterossexuais. Enquanto Cidade de Deus traz um garoto negro passando pela transição para a maioridade, Me Chame Pelo Seu Nome consegue desafiar o padrão ao contar a história de amadurecimento de Elio (Timothée Chalamet), um garoto que descobre que há possibilidades romântico-afetivas além da heterossexualidade. O recorte, no entanto, só contempla um padrão específico de pessoas: o protagonista (e todos os outros personagens) ainda são todos brancos e têm condições de passar as férias em família em um casarão no interior da Itália.

Outro ponto em comum é que, na maioria dessas histórias, os rapazes normalmente estão no final da adolescência e ainda carregam traços infantis em suas personalidades. O amadurecimento das protagonistas feministas no gênero, contudo, é bem diferente.

Meninas amadurecem mais cedo?

amadurecimento
De Repente 30 (2004)

De Repente 30, um clássico da Sessão da Tarde, pode passar como uma simples comédia romântica, mas fala principalmente sobre o amadurecimento de Jenna (Christa B. Allen/Jennifer Garner), a protagonista, que, embora esteja em um corpo de 30 anos, tem apenas 13. Ainda que existam exemplos com meninas um pouco mais velhas, como os recentes Lady Bird e Booksmart, é notável que muitos exemplos são de filmes que acompanham o começo da adolescência das meninas, e não o fim, como costuma acontecer com os garotos. Outro clássico da Sessão da Tarde, Meu Primeiro Amor (ainda que exista uma continuação), acompanha uma protagonista pré-adolescente. E, se levarmos em consideração obras destinadas a um público alvo mais jovem — como é o caso de Red —, Divertidamente, outra animação, explora emoções de uma protagonista também muito jovem, que precisa amadurecer após a mudança para uma nova escola.

Existe, na mitologia ocidental cristã, uma crença que define a idade adulta como aquela em que o indivíduo já tem plena consciência de tudo aquilo que seria necessário para a sua sobrevivência. Teoricamente, a fase também é uma época de maior produtividade e autonomia. Embora a ficção não seja a realidade, ela certamente reflete nosso entendimento sobre o mundo e expectativas a seu respeito. É de se respeitar, então, por que o amadurecimento de meninas seria tão prematuro, enquanto o dos meninos viria tão tardiamente nas obras que consumimos.

Ela já sabia o que estava fazendo?

Biologicamente, as pessoas com útero passam por um marco físico palpável: a primeira menstruação, que deveria ser apenas um indicativo de que o corpo está começando seu trajeto de desenvolvimento e é também apontada como uma das possíveis interpretações para o “Panda Vermelho” de Red. No entanto, historicamente, a menarca é considerada o ponto a partir do qual se passa a “ser” mulher. Esse entendimento vem de um marcador social antigo de que corpos que menstruam já estariam aptos à vida sexual e, consequentemente, à maternidade. Um tipo de produtividade esperado e reservado aos indivíduos classificados como femininos no sistema de divisão do trabalho capitalista. Embora hoje muitas pessoas tratem a infância das meninas como algo além do período anterior à menstruação, ainda há, ao mesmo tempo, uma cobrança desproporcional àquelas que possuem um útero que já sangra — principalmente quando se trata de responsabilidades.

Quantas vezes não se ouviu a frase “meninas amadurecem mais cedo”, enquanto homens, muitas vezes legalmente considerados adultos, são chamados de meninos quando cometem erros e até mesmo abusos e crimes? Por vezes, inclusive, os abusos e crimes perdoados tão facilmente por causa da suposta imaturidade dos homens se direcionam às mulheres. Por que razão a mulher não tem a mesma tolerância para ser infantilizada diante dos erros e é cobrada como adulta quando erram com ela? Se sofrem abuso, não se preservaram, se são aliciadas, já sabiam o que estavam fazendo. Mas, quando alguém quer decidir por elas, então — e apenas nesse caso — cabe a infantilização — um comportamento comum nas famílias e em outros ambientes, não para emancipá-las de suas obrigações, como acontece com os homens, mas para que as meninas sejam tuteladas.

O tempo da mulher é outro?

Florbela (2012)

Na cinebiografia da poeta portuguesa Florbela Espanca, a protagonista diz a seu irmão mais novo que já está velha. Estando ainda na casa dos 30, sua afirmação é questionada e ela então responde que “o tempo da mulher é outro”. O filme Florbela demonstra os efeitos danosos de um amadurecimento precoce: a escritora faleceu aos 36 anos, tendo passado por dois casamentos — um deles abusivo — e dois divórcios. A carga mental da pressão social sobre uma mulher tão cheia de desejos que perdeu muitas pessoas ao longo da vida, inclusive o irmão, era enorme para uma mulher tão jovem. Tamanho peso desencadeou em seu estado mental frágil, que a levou a algumas tentativas de suicídio — até uma que foi, de fato, bem sucedida em retirar cedo demais a vida de uma mulher tão talentosa.

No momento da fala no filme, Florbela sabia que o irmão ainda tinha uma vida inteira pela frente para crescer, enquanto ela já havia necessitado ter uma maturidade que nunca havia sido cobrada dele. Ela também estava ciente de que seu tempo era limitado. Assim como estão, teoricamente, prontas para a vida mais cedo, também é cedo demais que as mulheres estão muito velhas para certas atividades — e todos esses limites, obviamente, são definidos por uma sociedade dominada por homens. E desde os anos 30, quando viveu a poeta, pouco mudou.

Essa impressão de que o tempo da mulher é outro certamente se relaciona às expectativas de produtividade sobre corpos com útero: eles só são úteis ao capitalismo e ao patriarcado enquanto podem gerar criança: futuros trabalhadores cuidados e criados com uma generalização chamada amor que nada mais é do que trabalho gratuito — e pode até incluir amor, mas também é carregado de obrigações e exploração. Muitas discriminações contra vários grupos sociais se baseiam nessa imposição, direta e indireta, da utilidade do corpo tido como feminino para a reprodução. Todas as pessoas nesse contexto que não podem ou desejam se reproduzir ou cuidar de crianças é considerado menos mulher — que já é, pelo sistema vigente, uma categoria inferior e menos humana que a dos homens.

Meninos são assim mesmo?

Independente da disputa pela classificação enquanto mulher ou por definições do que é ser mulher que sejam mais abrangentes, a discussão aqui se volta para o que as histórias sobre amadurecimento nos contam sobre nossa sociedade. Afinal, a estrutura de nossas narrativas diz muito sobre nós, como sugere a edição sobre romances de formação e outras narrativas de amadurecimento da newsletter A Diletante, de Ariela K.

Lady Bird (2017)

Nossas narrações revelam muito da sociedade, é verdade, e escancaram a maneira como tratamos e a permissividade que direcionamos a indivíduos com base em uma divisão supostamente baseada na biologia, mas que é inteiramente social. Meninas não amadurecem mais cedo porque menstrual no começo do que se convencionou a chamar de adolescência: elas são forçadas a abandonarem suas infâncias e convocadas a assumir responsabilidades que homens, até mesmo adultos, não precisam, pois sempre serão meninos.

A crítica à essas histórias, no entanto, não pode ser simplista e meramente acusatória, porque a arte tem uma importância muito mais complexa.

Ainda que seja importante questionar porque as narrativas sobre amadurecimento de meninas as retrate tão jovens, também é importante dar espaço para que mais pessoas se vejam nessas histórias. E isto é algo que filmes como Aftersun, A Garota Silenciosa e Red: Crescer é Uma Fera fazem com bastante diversidade, inclusive. As histórias não tem um mesmo viés e permitem que várias pessoas se sintam contempladas.

O reconhecimento de si naquele tipo de história induz à reflexão mais profunda e a compreensões mais apuradas sobre os indivíduos e sobre a sociedade. E a consciência — que vem, no caso, através da sétima arte —  leva à transformações. Afinal, a arte não só sugere futuros, mas também reflete presentes. Talvez, ver histórias como as nossas nos faça ter desejo de deixar de vê-las daquela forma, o que ocasionaria em outras percepções e ações diante da realidade. Os três filmes, além de bom entretenimento, são ótimas tramas para, a partir de um olhar crítico, abrir a percepção de como a maturidade de nossas crianças é entendida a partir do viés do gênero, uma divisão não muito justa que retira a infância de alguns cedo demais e preserva a de outros muito além do necessário.