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Ligue Djá e o Mercado da Astrologia

Em julho de 2020, a Netflix lançou o seu documentário original Ligue Djá. O longa narra a história de Walter Mercado, também conhecido como Shanti Ananda, um ator, personalidade televisiva e astrólogo de Porto Rico, que fez sucesso em todo o mundo por conta de suas habilidades de vidência. Walter, que faleceu em 2019, manifestava seu talento principalmente através da astrologia, e sua fama começou, justamente, ao entoar, despretensiosamente, mensagens sobre os doze signos do zodíaco em um programa da Telemundo, na TV porto-riquenha, enquanto divulgava a peça O Tríptico de Amor, Dor e Morte, na qual ele fazia o papel de um príncipe hindu.

O sucesso desse pequeno ato, ainda nos anos 1960, foi tanto que o produtor do programa, Elin Ortiz, o convidou para apresentar um quadro sobre astrologia diariamente, declamando os horóscopos e previsões para o público. Em pouco tempo, Walter Mercado se tornou uma sensação esotérica, uma verdadeira celebridade, e logo os serviços atrelados ao seu nome e aos seus poderes começaram a surgir. No entanto, a fama e a influência não ficaram contidas apenas em Porto Rico, tendo se estendido para toda a comunidade latino-americana, dos Estados Unidos ao Chile, e, por óbvio, o Brasil não ficou de fora.

Se você já estava atenta à TV brasileira no fim dos anos 90, talvez se lembre deste personagem. Com suas vestes e capas extravagantes, o programa de Walter Mercado era exibido nas madrugadas da Band, SBT e da extinta TV Manchete. Além disso, ele também anunciava os serviços de “televidencia” de sua rede de videntes brasileiros. Bastava ligar para o número na tela, que você entraria em contato com conselheiros sensitivos prontos para te ajudar, seja qual fosse o seu problema. Esses comerciais de Walter Mercado eram finalizados com o bordão “Ligue já!”, que com o sotaque hispânico, se tornava um charmoso “Ligue djá!”.

Ligue Djá para o grande Walter Mercado

Com o bordão conhecido dando nome à produção, a obra da Netflix foca na história de Walter Mercado, desde sua infância nos anos 1930 em Porto Rico, já cercada de misticismo, ao seu desaparecimento da mídia após anos de sucesso trabalhando como personalidade televisiva e astrólogo. O documentário, além disso, passa por pontos polêmicos que permearam a vida de Mercado, como as acusações de charlatanismo, grandes desafios judiciais, bem como a perda dos direitos sobre suas obras e até mesmo o uso de seu nome. Para compor a narrativa do documentário, Walter concede entrevistas, assim como seus familiares, seu assistente pessoal, antigos colegas de trabalho, e, até mesmo, seus fãs, figurando dentre eles o ator, cantor, produtor, músico e compositor Lin-Manuel Miranda, que, em um momento emocionante, chega a conhecer o astrólogo.

Muito se especula sobre o sucesso de Walter Mercado, sobre como ele se tornou um fenômeno tão grande, e em Ligue Djá!, isso também é abordado. Antes mesmo de começar no mundo da televisão como astrólogo, Mercado já era uma figura conhecida no mundo da atuação, sendo considerado um ator talentoso no teatro e também em telenovelas. Seus talentos também passavam por dança e canto, e no seu particular ele já mostrava ter muito interesse por diferentes culturas, principalmente de países orientais e sociedades consideradas tradicionais, estudando astrologia e yoga, por exemplo. Ainda, o documentário deixa claro que Walter possuía uma personalidade bondosa, que beirava a ingenuidade, e ao mesmo tempo forte e sem medo dos julgamentos. Inclusive, muitos dos entrevistados falam justamente sobre essa combinação, ressaltando o carisma e estilo de Walter Mercado. Suas vestes coloridas, com capas cobertas por pedrarias, chamavam atenção por onde ele passava, especialmente se levarmos em conta o contexto em que o ator estava inserido: a comunidade latina que, infelizmente, era e segue sendo extremamente machista, cobrando dos homens uma performance tóxica de masculinidade.

Walter Mercado, por sua vez, parecia não se importar e certamente nem se esforçava para seguir alguns padrões. Nessa esteira, até mesmo suas escolhas de corte de cabelo e procedimentos estéticos fugiam dessa expectativa, ressaltando traços tidos como “femininos”, bem como sua vaidade. Talvez por esse motivo aspectos de sua vida privada, como orientação sexual e, mais recentemente, identidade de gênero, foram muito questionados pela mídia. Perguntas a esse respeito foram feitas ao ator ao longo de toda a sua carreira — tampouco fugiram da pauta no documentário da Netflix —, apesar das respostas serem evasivas e não darem conta de revelar se Walter Mercado era mesmo um membro da comunidade LGBTQ+. Em Ligue Djá, Mercado se abre um pouco mais, se definindo pela primeira vez como andrógeno e mencionando a possibilidade de ser um homem virgem.

Uma resposta, porém, é constante e definitiva: o ator declara que o principal relacionamento de sua vida é com os fãs. E muitos destes veem com grande importância ambos estes lados de Mercado, tanto o de manter sua privacidade e não ceder aos questionamentos sobre sua vida pessoal, quanto o de se portar como alguém único, que subverte representações de gênero.

Outro fator que parece ter influenciado no sucesso do vidente está relacionado ao conteúdo produzido por ele, e não estamos falando necessariamente de astrologia e dos horóscopos, mas sim das mensagens positivas e amorosas envoltas nesse formato. Como é citado em Ligue Djá!, grande parte do público de Mercado, principalmente nos EUA, era formado por pessoas marginalizadas, imigrantes que passavam por diferentes dificuldades econômicas e sociais. Mensagens de carinho, paz e esperança são, para qualquer um, um alento em tempos difíceis, não sendo diferente para esses grupos sociais, que torciam para concretização das previsões positivas de Mercado com “mucho, mucho amor” — um outro bordão cunhado por Walter.

Mercado e a popularização da astrologia 

Logo, as mensagens calorosas em formato de horóscopo se tornaram populares. Diversos personagens do documentário citam que ouvir a previsão para seu signo solar era um momento importantíssimo, digno de silêncio em toda a casa para escutar tudo com clareza. Com a popularização de seu programa, a astrologia era consequentemente apresentada para os fãs de Mercado, tendo o assunto ganhando cada vez mais seguidores curiosos entre as décadas de 1960 e 1990. Como citado na reportagem “Ícone queer, Walter Mercado ajudou na valorização da astrologia no Brasil”, de Marie Declercq na TAB Uol, o ator foi um dos grandes responsáveis pela popularização dessa, até então, “arte mística” no país, bem como no resto do continente americano.

O filósofo Alexey Dosworth, pesquisador associado à Universidade Ca Foscari de Veneza e entrevistado pelo Uol, relaciona a popularidade de Walter Mercado à valorização do trabalho de astrólogos nos jornais e revistas brasileiros, muito embora o formato de horóscopos baseados no signo solar, típicos da Astrologia Moderna e popularizados por Mercado, não foram criadas pelo ator. Para a astróloga e jornalista Titi Vidal, foi o astrólogo Alan Leo um dos grandes responsáveis pela criação desse formato tão popular hoje em dia, que ocupa lugar não apenas nos jornais e revistas, mas também em blogs, sites, canais do YouTube e redes sociais. Foi Alan Leo quem ofereceu pela primeira vez horóscopos gratuitos para os assinantes de seu almanaque, o Astrologer’s Magazine, aproximadamente entre o ano de 1889 e o início do século XX. Se antes o horóscopo era uma previsão baseada em todo o mapa astral e extremamente individual, variando muito de pessoa para pessoa, o novo processo de Leo passou a massificar a astrologia. Para conseguir isso, Alan passou a considerar apenas o astro Sol na hora de fazer suas previsões nos horóscopos.

Bárbara Ariola, astróloga e historiadora da arte, explica em seu curso “Representações femininas da astrologia na história da arte” que a escolha de Alan pareceu levar em consideração a posição do Sol como o único “planeta” astrológico a possuir um ciclo mais regular seguindo o calendário gregoriano. E isto, em contrapartida com os horóscopos que se baseavam em todo o mapa astral, ornou, tendo em vista que muitas pessoas podem não saber exatamente o horário de seu nascimento (dado importantíssimo para definir o mapa astral), mas a grande maioria sabe o dia em que nasceu, e, consequentemente, o seu signo solar. “Dessa forma, Alan Leo conseguiu aperfeiçoar uma técnica de confecção maciça de horóscopos, graças a textos pré-fabricados para cada tipo de mapa e uma máquina copiadora”, escreve Vidal.

E é assim que começa a popularização dos horóscopos do signo solar, reproduzidos e ainda mais massificados por Mercado e vários outros astrólogos que trabalham ou, no caso de Walter, trabalharam, com esse tipo de produção e previsão.

A Astrologia de Walter Mercado x A Astrologia Tradicional

No entanto, ainda que horóscopos baseados em signos solares tenham ganhado força, essa forma de produção não foi, nem é, bem vista por todos os astrólogos. Por essa razão, mesmo no ápice do sucesso de Walter Mercado, suas previsões e serviços de teleatendimento eram amplamente criticados por colegas astrólogos, que o acusavam inclusive de charlatanismo. Não sendo, tampouco, a mistura de Walter Mercado com outros tipos de oráculos e símbolos de diferentes religiões, vista com bons olhos por uma parcela desses profissionais e estudiosos.

Dessa forma, o sucesso de Mercado e a popularização da Astrologia Moderna vieram acompanhados de inúmeras críticas. No livro Tratado das Esferas: Um Guia Prático da Tradução Astrológica, os autores Helena Avelar e Luís Ribeiro não chegam a falar especificamente de Mercado, mas há diversas críticas ao tipo de astrologia divulgada e exercida por ele:

“[…] O aumento da popularidade da Astrologia leva ao aparecimento de versões simplificadas. O ‘signo solar’ e os ‘horóscopos de revista’ são tristes consequências da mediocrização a que a Astrologia tem estado sujeita. Nas décadas de 60 e 70 floresce uma cultura pós-espiritual, consequência da ‘importação’ de filosofias orientais para Europa e Américas. É nesta fase que se popularizam temas como reencarnação, karma, meditação, etc. Na Astrologia, este influxo de novas ideias traduz-se em abordagens ‘kármicas’, espirituais e esotéricas. Estas abordagens, de qualidade muito variável, vão desde os estudos mais sérios à simples colagem de crenças pessoais ao sistema astrológico. Entretanto, as bases espirituais e metafísicas da Astrologia continuam ignoradas pela maioria dos praticantes”.

Mas, na contramão, as críticas direcionadas à Astrologia Moderna também foram alvos de críticas: muitos defensores de Mercado e da Astrologia Moderna acusam de elitismo, preconceito ou até mesmo inveja, os membros da vertente mais crítica e tradicional da Astrologia. Porém, independente dessas movimentações, é interessante observar como a Astrologia Moderna e a Tradicional se opõem, e como essa oposição pode ter auxiliado no sucesso de Walter Mercado.

Enquanto a Astrologia Tradicional tem um caráter mais preditivo e voltado para o todo, incluindo o eu, o social, as mudanças, o ambiente, os outros, o universo, etc., a Astrologia Moderna possui uma visão mais individualista e até mesmo personalista, sendo um reflexo claro de sua Era, considerando que o próprio conceito de personalidade, como temos hoje, surge apenas na modernidade. É com o foco no “eu” e, ao mesmo tempo, mais generalista, que faz com que a Astrologia Moderna seja considerada uma forma de astrologia “simplificada, acessível e viável para consumo”, como explica Bárbara Ariola em seu curso.

É em razão desse formato mais simplista e até mesmo mais positivo da astrologia que Walter Mercado construiu seu sucesso e que, até hoje, diversos astrólogos utilizam para seguir os seus passos, em diferentes plataformas, sejam online ou offline. Para além das diversas críticas, é inegável a relevância e a importância deste ator, vidente, astrólogo e personalidade — seja para a comunidade latino-americana em todo o continente, quanto para a popularização da Astrologia e outros oráculos.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!