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As bruxas ainda são queimadas em praça pública

Dona Iara era uma das senhoras mais antigas de sua rua e via a terceira geração de sua família crescer no pedaço de terra que ajudou a desbravar. Quando Matheus ardeu em febre, chamaram dona Iara para rezar por ele. Quando a casa de Ruan encheu de carrapato, foi dona Iara que deu jeito. Quando Thaís nasceu, dona Iara quem fez o trabalho de desamarrar a barriga. Só que ninguém podia falar sobre isso, ninguém podia falar com dona Iara, porque ela era macumbeira e macumba é coisa do diabo, como dizia a mãe de Matheus. 

A história de dona Iara, narrada no livro O Sol na Cabeça de Geovani Martins, fala de uma senhora que cuida das doenças e enfermidades de todos aqueles que batem à sua porta, mas a quem todos temem. Ninguém fala abertamente sobre sua ajuda. Praticante da umbanda ou do candomblé, dona Iara é tolerada em sua comunidade e procurada quando precisam. Não há reconhecimento público sobre o bem que ela faz. 

O papel de Iara em sua comunidade é muito parecido com aquele atribuído às mulheres, antes curandeiras e parteiras, mas que foram consideradas bruxas no século XV. Em geral eram mais velhas, de baixa condição financeira e que sabiam muito sobre plantas, chás e ervas. Por séculos elas existiram em suas comunidades, prestavam serviço a quem precisava, mas a elas não era dada a gratidão e benevolência servida aos sacerdotes e padres. 

Quando aprendemos sobre o período de caça às bruxas, há quase sempre uma grande ênfase no absurdo dessas condenações sob uma perspectiva científico-racional. Questiona-se como foi possível que, em um período de tamanha racionalidade e desenvolvimento científico, dogmas e crendices fossem capazes de ir tão longe, como a Igreja Católica pode incentivar tais movimentos e como eram absurdas as acusações utilizadas para determinar quem deveria ser queimada na fogueira. 

A reflexão que raramente é feita, contudo, é o caráter misógino que cerca esse período da história. Em Calibã e a Bruxa e em Mulheres e a Caça às Bruxas a escritora Silvia Federici lança luz sobre essa e outras motivações para a perseguição de mulheres nesse período. Quando as perseguições a essas mulheres começaram, a questão nunca foi sobre elas serem ou não bruxas de fato — e o que é que isso pudesse significar. Praticar o mal ou não, não fazia diferença. Assim como a ideia de que a macumba é do diabo, ser bruxa era uma condição socialmente definida, e quase impossível se livrar depois que absorvida. 

Um dos pontos que Federici aponta como centrais dessa perseguição foi a ocorrência dos cercamentos na Inglaterra. Cercamentos foram o processo pelo qual os trabalhadores rurais foram expulsos de suas terras e o que antes era propriedade comum, voltada para produção agrícola e sustento de várias famílias, torna-se propriedade privada de alguém. Em Calibã e a Bruxa, a autora argumenta que existia um caráter político-social na perseguição às bruxas que estava ligado a uma questão de bases econômicas, servindo de esteira para a construção do capitalismo. 

Na região de Essex, na Inglaterra, ocorreram a maior parte dos julgamentos por bruxaria e, como aponta Silvia, essa é a região em que a maior parte das terras foi cercada durante o século XVI. Já nas Ilhas Britânicas, onde não ocorreu a privatização de terras, não existem registros de caça às bruxas. Em Mulheres e a Caça às Bruxas, ela esclarece que as provas de que essas expulsões foram fundamentais na caça às bruxas é circunstancial. Contudo, não se pode negar que essa caçada foi um movimento predominantemente rural, afetando em maior nível os locais onde foi possível encontrar um maior número de registro de cercamentos.   

Além disso, é essa uma das respostas que Silvia Federici dá à pergunta de por que a perseguição de bruxas se dirigiu principalmente às mulheres: foram elas as mais afetadas no processo de reestruturação social do período de transição do feudalismo para o capitalismo — uma transição de mais de duzentos anos. Foram elas quem perderam qualquer poder social que ainda lhes restava. 

Contudo, essa questão não explica tudo. Para além da questão da terra, Federici também aponta que as mulheres chamadas de bruxas possuíam mais uma característica em comum: elas lutavam contra as condições que lhes eram impostas. Ela diz: 

“Eram mulheres que resistiam à própria pauperização e exclusão social. Ameaçavam, lançavam olhares reprovadores e amaldiçoavam quem se recusava a ajudá-las; algumas se tornavam inconvenientes, aparecendo de repente, sem serem convidadas, na soleira de vizinhas e vizinhos que viviam em melhor situação ou realizando tentativas inadequadas de se tornarem aceitas ao oferecer presentinhos para as crianças.[…] A ‘bruxa’ era uma mulher de ‘má reputação’, que na juventude apresentara comportamento ‘libertino’ e ‘promíscuo’ […] Às vezes era curandeira e praticante de várias formas de magia que a tornavam popular na comunidade […]” (Mulheres e a Caça às Bruxas, pág. 52-3). 

As bruxas eram mulheres que, em alguma medida, desafiaram o padrão que era colocado a elas como seu dever. Questionavam a conduta que diziam que elas deviam seguir. A perseguição, com um caráter marcadamente religioso, foi liderada pela ação da Igreja Católica que, como sabemos, não é uma grande fã de mulheres que agem fora do que lhes é determinado.

Há, então, uma intensificação de uma pressão social pela estrutura que se formava naquele período. A perseguição servia como uma forma de reafirmar a dominação de seus corpos e de sua vivência e dependia de afastar as mulheres “boas” daquelas cujo comportamento não atendia aos seus propósitos, as mulheres “más”. A retomada da narrativa de demonização, então, foi um dos caminhos adotados — e que obteve grande sucesso, afinal, encontrava solo fértil para ser propagado. 

A demonização da figura da mulher, entretanto, não surge nesse momento. Ela começa bem antes, como nos fala Bárbara Caldeira, doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, bruxa e pesquisadora: 

Isso começa antes, mas principalmente em uma narrativa cristã em que Eva é a responsável pela queda no Éden, responsável por tentar Adão, comer a maçã, é ela quem traz o mal pro mundo, é ela que provoca a queda. Existem equivalentes na Antiguidade Clássica como por exemplo a Pandora que é quem abre a caixa — ou o jarro — que solta os males do mundo. A mulher esteve constantemente nessa posição de figura demonizada.  

Eva, Pandora, Lilith, Medusa, Maria Madalena: a imagem da mulher demoníaca está repetida em dezenas de histórias. O Malleus Maleficarum — na tradução: Martelo das Feiticeiras —, a Bíblia do inquisidor, ao longo de três séculos foi amplamente usado pela igreja no processo de condenação das acusações de bruxaria. Ainda que cite bruxos e bruxas, é um manual direcionado às mulheres. Como explicou Bárbara, nele elas são descritas como fracas e pecadoras por natureza por serem filhas de Eva e afirma-se, ainda, que são seres imperfeitos por virem da costela de Adão, que é torta. 

Bárbara Caldeira, doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, bruxa e pesquisadora.

A tortura, a perseguição e as execuções foram uma forma de endireitar as mulheres, tanto quanto fosse possível. Buscava-se ensiná-las como a nova estrutura social esperava que se comportassem e era também uma maneira de garantir a dominação sobre seus direitos reprodutivos.  “A bruxa foi a comunista e a terrorista de sua época, quando foi necessário um mecanismo ‘civilizador’ para produzir uma nova ‘subjetividade’”, escreve Silvia Federici em Mulheres e a Caça às Bruxas.  

Ao realizar o estudo sobre o que foi, de fato, a caça às bruxas e sua repercussão na história, Federici traça um paralelo com a vivência das mulheres de hoje. De forma bastante semelhante aos séculos anteriores, em algumas regiões, elas continuam sendo acusadas e assassinadas em suas comunidades pela prática da “bruxaria”.  E, indo além em sua análise, aponta que a violência de gênero perpetuada de forma sistêmica, os feminicídios, a exploração da mão de obra doméstica, dá à caça às bruxas uma roupagem de caça às mulheres. 

Quando a pesquisadora Judith Butler veio ao Brasil, em 2017, para falar sobre os caminhos da democracia atual, ela foi recebida sob gritos de “Queimem a bruxa!”. Em frente ao Sesc Pompeia, em São Paulo, onde faria sua palestra, manifestantes queimaram uma boneca com uma foto de Butler no rosto e um chapéu de bruxa na cabeça. A mesma metáfora jamais seria usada contra um homem. 

No final de Calibã e a Bruxa, Federici cita o que disse Arthur Miller sobre os julgamentos de Salem “assim que despojamos de parafernália metafísica na perseguição às bruxas, começamos a reconhecer nela fenômenos que estão muito próximos de nós”. Sem toda a metafísica, encontramos o que vemos hoje: o ódio à mulheres a partir de motivações misóginas. 

Há um número crescente de feminicídios nas últimas décadas, o que Silvia atribui a uma tarefa útil para “os novos cercamentos”. A perseguição de mulheres ainda é fruto da ideia de humano imperfeito visto que essa mesma violência é atribuída como culpa delas, não de seu agressor. Em sua pesquisa, Bárbara Caldeira analisa como o jornalismo queima mulheres já mortas — muitas vezes sob os aplausos da sociedade:  

Quando dizemos em um caso de feminicídio, no próprio jornalismo, “olha o que ela fez ele fazer”, “ela deixou ele tão doido que ele foi lá e fez aquilo”, diz-se socialmente que a mulher é quem provocou esse acontecimento ruim. 

Em um campo simbólico, essa abordagem reafirma a violência já cometida. O merecimento ou não da morte, a roupa, a forma como a mulher se portava, como o crime ocorreu, como ela causou ciúmes, tudo isso é explorado nessas narrativas. “Quando o jornalismo faz isso, a forma como ele faz é um novo julgamento dessa mulher em uma praça pública imaterial que é o jornalismo”, diz Bárbara. 

A bruxa ganhou um novo significado. Apropriando-se desse termo, mulheres clamam para si esse posto. Como nos diz Bárbara, há uma importância política da ressignificação da bruxaria que ganha contornos ainda mais importantes e passa a fazer parte de uma narrativa contra a demonização da mulher. “É para dizer que Medusa não é monstro, e sim vítima, para situar Lilith na história do Éden, para repensar toda a ideia de mulher-bruxa-má que nos propuseram desde a infância.” 

Na cultura pop, estão por aí dezenas de referências de bruxas boas, más, responsáveis e irresponsáveis. Sabrina e Convenção das Bruxas são produções que já propunham uma nova versão de bruxas nos anos 90 e ganharam seus remakes recentemente. A lista é grande e, cada vez mais, a figura da bruxa tem assumido uma nova narrativa. 

Fora do mundo do audiovisual, Pam Ribeiro, a @abruxapreta no Instagram, se denomina bruxa umbandista e considera esse um ato político e uma libertação de antigos dogmas, dado todo o histórico que a nomeação carrega. Pam realiza atendimentos, lê cartas de tarô e busca respostas em seus guias. Ela diz: 

“o ser bruxa está para além do acender um vela e incensos pelos nossos altares, mas lutar para que nossas práticas sejam respeitadas. É como agimos para além dos nossos rituais mágicos, mas em saber que a bruxaria começou de uma pessoa marginalizada, colocada em condições de violência, que ainda podemos ver hoje, mas… de diferentes maneiras.”  

A mudança no que significa ser bruxa parte da transformação do que significa ser mulher para as próprias mulheres. A imagem da mulher dócil, frágil e que precisa ser protegida deixou de ser o norte. Ser mulher carrega uma infinidade de formas de ser, e ser bruxa carrega em si uma força, o rompimento com estruturas patriarcais ao mesmo tempo em que há o respeito com aquilo que cada mulher acredita para si. 

Pam Ribeiro
Pam Ribeiro, a @abruxapreta, se denomina bruxa umbandista.

Elas são fortes, mas fora de um ideal de força sem fim, já que também assumem suas fraquezas e demonstram o que há de bom e o que há de ruim em cada ser. Pam diz que a transformação da bruxa em um ícone pop está ligada “a essa força, não vemos elas como a figura patriarcal da mulher frágil, mas como uma figura que se impõe, ao mesmo tempo em que respeita e estipula limites.” 

“Uma infinidade de significados” é o que diz Bárbara sobre o ser bruxa. Algumas pessoas, como ela própria, entendem a bruxaria a partir de um aspecto antropológico que não se encerra no mundo material, mas um mundo que envolve o “sexto sentido, a intuição, o trabalho com ervas, uma prática grande de autoconhecimento e de conexão com energias que são muito maiores do que a gente”

Existem bruxas como Pam ou Bárbara, que assumem para si esse nome e são procuradas para prestar algum serviço, que realizam sua magia por meio do estudo, do autoconhecimento e da busca por seus guias. Mas existem aquelas cuja existência enquanto bruxa continua sendo socialmente definida e elas não deixaram de ser perseguidas. 

Bárbara ressalta, contudo, que ainda há uma disputa de narrativa sobre a bruxa: 

”Com produções mais recentes, como a Malévola, a bruxa que era assustadora entra com um novo papel, então acho que ainda existe esse jogo, muitas produções ressignificaram esse lugar da bruxa e outras colocando a mulher em um papel de vilania e que, mesmo que ela não seja chamada de bruxa ela está ocupando esse lugar como uma figura arquetípica.” 

Essa disputa de sentido está presente na compreensão social de quem são as bruxas. Ainda que a caça às bruxas como estudamos nas aulas de história tenha acabado, a perseguição e as fogueiras em praça pública continuam por aí, com ainda mais desdobramentos de raça, classe e intolerância. Como dona Iara, mencionada no início, existem outras e várias delas são perseguidas e tem seus terreiros queimados ainda nos dias de hoje.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!