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O Mundo Sombrio de Sabrina – Parte 2: no caminho da escuridão

A segunda parte de O Mundo Sombrio de Sabrina chegou à Netflix seis meses após a estreia da primeira, próximo ao Dia das Bruxas de 2018. O universo em Greendale permaneceu praticamente estático e à nossa espera para continuar a história de Sabrina Spellman (Kiernan Shipka), a adolescente metade bruxa, metade mortal, que precisava decidir qual caminho trilhar ao completar dezesseis anos: assinar o Livro da Besta, entregando sua alma a Satã, ou viver como mortal, renegando sua parte bruxa.

Atenção: este texto contém spoilers!

Como assistimos ao final da primeira leva de episódios, manobrada por Lilith/Mary Wardell (Michelle Gomez), Sabrina assina seu nome no Livro da Besta de maneira a conquistar os poderes necessários para salvar seus amigos mortais. Ao concluir os rituais do Batismo das Trevas, Sabrina aceita os termos propostos por Satã o que, em um primeiro momento, significa que agora ela é uma das bruxas mais poderosas do coven. Suas novas habilidades a fazem aceitar seu lado bruxa, o que a leva a decidir dedicar mais tempo aos seus estudos na Academia de Artes Ocultas, deixando de frequentar a Baxter High e de conviver diariamente com seus amigos mortais, Rosalind Walker (Jaz Sinclair), Susie Putnam (Lachlan Watson) e seu agora ex-namorado, Harvey Kinkle (Ross Lynch).

Na Academia de Artes Ocultas, Sabrina passa cada vez mais tempo na companhia de Nicholas Scratch (Gavin Leatherwood) e bate de frente sempre que possível com Padre Faustus Blackwood (Richard Coyle). Ao abraçar, sem reservas, seu lado bruxa, Sabrina decide que não baixará a cabeça para as tradições machistas da Igreja da Noite, principalmente os mandos e desmandos de Padre Blackwood, e mergulha cada vez mais fundo em sua magia. Aceitando sua herança bruxa, ela participa com mais interesse dos ritos da Igreja da Noite e da Academia de Artes Ocultas enquanto tenta mudá-las por dentro, a começar por sua candidatura ao prestigiado cargo de “Top Boy”, posto destinado apenas aos rapazes da Academia e que ela não vê motivos para que não seja colocado também à disposição das moças que lá estudam. Sabrina, mais poderosa e confiante do que nunca, está pronta para desafiar o status quo a respeito de como as coisas são feitas na Academia e na Igreja da Noite, e isso coloca o Padre Blackwood em alerta visto que a última coisa que ele deseja é ver seu poder e cargo desafiados por uma adolescente.

O Mundo Sombrio de Sabrina

Desde a sua estreia, O Mundo Sombrio de Sabrina vem costurando ao seu enredo temas conhecidos por nós, mulheres do mundo real, com facilidade. Desde ter que abrir mão de quem se é em detrimento de outra pessoa — no caso de Sabrina, assinando seu nome no Livro da Besta para acessar os poderes que salvariam seus amigos — a lidar com o domínio do patriarcado sobre suas vidas, a série não poupa paralelos com assuntos que conhecemos tão bem. As maneiras como as bruxas são tratadas na Igreja da Noite, os dogmas escritos pelo Padre Blackwood que colocam as mulheres em posição servil diante os homens e todas as formas como Lilith deve ser subserviente à Satã, são espelhos da sociedade patriarcal em que vivemos. Com uma linguagem simples e adequada ao público alvo da série, O Mundo Sombrio de Sabrina consegue mostrar que não há nada mais mágico do que uma mulher lutando pelo direito de ser livre e dona de seu próprio nariz.

É dessa maneira que seguimos acompanhando os novos episódios e a trajetória de Sabrina Spellman enquanto ela aprende mais sobre si mesma, o mundo das bruxas, as vontades de Satã e seu papel nisso tudo. A parte dois de O Mundo Sombrio de Sabrina demora a engrenar e antes que a trama maior se revele para o telespectador precisamos passar por pelo menos quatro episódios que parecem muito com fillers, aqueles capítulos que não acrescentam verdadeiramente à trama a não ser por pontos muito específicos. Os capítulos 12, 13, 14 e 15 — “The Epiphany”, “The Passion of Sabrina Spellman”, “Lupercalia” e “Doctor Cerberus’s House of Horror” — nos entrega momentos interessantes mas, no geral, são episódios cansativos de se acompanhar. Se em “The Epiphany” vemos Susie recomeçando sua vida como Theo, um momento poderoso, em “Lupercalia” temos que assistir os adolescentes da Baxter High se preparando para um baile de Dia dos Namorados enquanto sua contraparte mágica na Academia de Artes Ocultas está em polvorosa devido ao ritual que coloca moças e rapazes para correr na floresta usando lingerie e capas vermelhas em uma versão bizarra, e sexual, de Chapéuzinho Vermelho e o Lobo Mal — tal episódio, e ritual, é apenas uma desculpa calculada para que todos façam sexo na floresta. Não que exista algo de errado com fazer sexo na floresta se todos estão de acordo com isso, mas a Lupercalia mostrada em O Mundo Sombrio de Sabrina é exclusivamente heterossexual, e até mesmo Ambrose (Chance Perdomo), descrito como pansexual no site oficial da série, é pareado de maneira óbvia com Prudence (Tati Gabrielle) no ritual.

Ainda falando sobre casais, é no mínimo estranha a maneira como os roteiristas da série decidiram trabalhar os relacionamentos amorosos na parte dois — principalmente levando em consideração as peças publicitárias que nos levaram a crer que haveria muita tensão em um triângulo amoroso com Sabrina, Harvey e Nicholas. Após se separar de Harvey, Sabrina deixa se envolver pelos encantos de Nicholas Scratch, um feiticeiro com ares de bad boy mas que, no fundo, é romântico e devotado a ela de uma maneira quase suspeita. O relacionamento entre Sabrina e Nicholas funciona porque já os vimos interagir nos episódios anteriores, logo a intimidade vai crescendo aos poucos, algo que não foi feito com Roz e Harvey. Após ter uma visão em que está beijando Harvey nos corredores da Baxter High, Roz parece ficar imediatamente apaixonada pelo ex da melhor amiga, o que não faz muito sentido. Ainda que eles sejam amigos antes de interesse amoroso um do outro, a construção do novo relacionamento acontece de maneira apressada e não há, de fato, muita verossimilhança no que está em desenvolvimento ali: é fato que ninguém precisa ficar nutrindo sentimentos pelo ex quando o namoro acaba, mas não há nada que justifique o romance instantâneo entre Roz e Harvey a não ser que se grite plot device.

O Mundo Sombrio de Sabrina

Toda a situação é bem estranha, principalmente se levarmos em consideração que Roz é uma personagem muito mais interessante do que o pobre Harvey, o que cai na conta da atriz Jaz Sinclair que dá vida à personagem e consegue ser muito mais carismática do que seu par. Dona do “tino”, um poder vindo de uma maldição bruxa que a faz ter visões do futuro e do passado, Roz merece um interesse amoroso mais cativante do que Harvey e sua eterna expressão de tristeza. Visto que introduzir personagens novos na trama de O Mundo Sombrio de Sabrina não é um problema — podemos mencionar a ótima adição de Dorian Gray (Jedidiah Goodacre), do romance O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e sua Sala Dorian, por exemplo —, por que não dar a Roz um par digno da personagem e com uma história que faça sentido? Rosalind é legal demais para ficar com Harvey Kinkle. E outra personagem cuja trama é bem mais interessante do que a de Harvey, é Susie e sua aceitação como Theo. Na parte um de O Mundo Sombrio de Sabrina a personagem já trilhava um caminho em busca de saber quem era de verdade, embora naqueles episódios ela se identificasse como não-binária, uma pessoa cuja identidade ou expressão de gênero não se limita às categorias de masculino e feminino, assim como sua intérprete, Lachlan Watson. A jornada de Susie continua e nos novos episódios ela se veste de coragem para se assumir como Theo não apenas para seus amigos, mas para toda a Baxter High quando faz os testes para entrar no time de basquete masculino do colégio, e para seu pai. A conversa entre Theo e Farmer Putnam (Adrian Hough) acontece de maneira tão simples e delicada, sem rompantes dramáticos ou sofrimento, que pode ser capaz de acalentar os corações das pessoas que passam pelo mesmo que Theo e ainda não se abriram para os pais.

Com Sabrina frequentando a Academia de Artes Ocultas e dedicando seu tempo a aprender bruxaria, seu amigos mortais ficam de lado por algum tempo durante parte dos episódios. O lado sombrio e mágico de O Mundo Sombrio de Sabrina, de fato, é muito mais interessante do que o lado comum e mortal, principalmente quando a grande trama dos novos episódios começa a ser revelada. No Capítulo 16, “Blackwood”, descobrimos mais a respeito de tia Zelda (Miranda Otto) e suas verdadeiras intenções ao aceitar o pedido de casamento do Padre Blackwood, e como tia Hilda (Lucy Davis) é uma verdadeira fortaleza embrulhada em uma aparência doce e ingênua quando faz de tudo para defender a irmã — inclusive assassinar uma professora da Academia de Artes Ocultas chamada Shirley Jackson (Rochelle Greenwood), possivelmente nomeada em homenagem à grande escritora de livros de terror. As tias de Sabrina, inclusive, junto de Lilith/Mary Wardell, são algumas das melhores personagens da série, sempre abrindo seu caminho com determinação e força. Ao aceitar se tornar Lady Blackwood, Zelda Spellman fica mais próxima de ser a Sacerdotisa da Igreja da Noite, usurpando o posto de Faustus, mostrando que sua subserviência ao noivo não passa de encenação e que ela tem o foco em um prêmio muito maior.

Os plot twists não param de acontecer quando a série atinge o Capítulo 16 e na sequência, no Capítulo 17 de nome “The Missionaries”, novas figuras da mitologia judaico-cristã são inseridas na trama de O Mundo Sombrio de Sabrina. Os caçadores de bruxas que aparecem em Greendale, e que foram responsáveis pela morte de Luke (Darren Mann), namorado de Ambrose, não são mortais comuns, mas anjos. Como boa fã de Supernatural, foi simples notar que o missionário que se apresentou à porta da Funerária Spellman usando um crachá com o nome Jerathmiel (Spencer Treat Clark) era um anjo e que isso não poderia significar algo de bom para Sabrina e seu coven. É durante a execução de seus colegas que Sabrina é morta apenas para voltar à vida na sequência, possuída por uma força nova e implacável, se autodenominando a Espada do Senhor das Trevas. Essa nova versão de Sabrina não hesita em queimar os anjos, mostrando que os novos episódios levam o quesito sombrio presente no nome da série bem a sério. A Sabrina que levita na Igreja da Noite, com olhos brancos e usando uma coroa de espinhos, é assustadora e poderosa, e mostra como a protagonista está se transformando naquilo que tanto lutou para não ser, se embrenhando cada vez mais no lado negro da força.

O Mundo Sombrio de Sabrina

É por meio de seus novos poderes e conhecendo a vontade de seu falecido pai, Edward Spellman (Georgie Daburas), de fazer da Igreja da Noite um ambiente sem preconceitos, acolhendo mortais e bruxas da mesma maneira, que Sabrina tenta converter seus colegas, apresentando os dogmas escritos por seu pai em oposição aos dogmas machistas e misóginos escritos por Faustus Blackwood. Somando-se a isso seu novo status como milagreira, conforme o Capítulo 18, “The Miracles of Sabrina Spellman”, após ter trazido a vida dois de seus colegas mortos pelos anjos, Sabrina sente que não há nada que sua magia não possa conquistar. Ainda que sua tia Hilda lembre-a de que toda magia vem com um preço, Sabrina não parece muito preocupada a respeito de suas novas habilidades — pelo menos não até a descoberta da profecia que conecta a bruxa adolescente ao Apocalipse.

A jornada de Sabrina em busca de independência, em seguir seu próprio nariz e não jurar obediência a Satã ou à Igreja da Noite, acabou colocando-a diretamente no caminho que o Diabo desejava. Ao cumprir cada um dos requisitos da profecia sem nem ao menos perceber o que estava fazendo, sempre com Lilith sussurrando em seu ouvido e puxando as cordas certas para fazê-la andar, Sabrina coloca todo o mundo em perigo com a iminência da abertura dos Portões do Inferno e da chegada de Satã à Greendale. É por conta das ações de Sabrina — trazendo pessoas de volta dos mortos, praticando exorcismo e devolvendo a visão de Roz — que Satã pode desprender-se de sua versão bestial e retomar seu corpo angelical, apresentando-se a todos como Lúcifer Estrela da Manhã (Luke Cook), o anjo caído. Com a chegada de Lúcifer à Greendale, o tempo começa a ficar curto para Sabrina, principalmente quando ela descobre o teor da profecia e seu papel na trama tecida pelo Rei do Inferno.

É nesse momento que Lilith também descobre que ela não se sentará ao lado de Lúcifer no trono do Inferno como ele a fez acreditar, mas que esse lugar está destinado à Sabrina. Ainda que tenha servido a Satã por todo sua vida, desde a expulsão do Jardim do Éden até encontrá-lo recém caído do Paraíso, curando-o dos machucados de suas asas arrancadas, Lilith foi apenas mais uma peça do jogo de Lúcifer; ele deseja coroar Sabrina e não a Mãe dos Demônios como Rainha. Descobrir o desfecho do plano de Satã motiva Lilith a, finalmente, romper os laços com ele e a tramar junto de Sabrina o aprisionamento de Lúcifer. O último episódio, “The Mephisto Waltz”, nos entrega uma season finale repleta de tensão, sacrifícios, planos diabólicos dando errado e outros, muito certo. Sabrina Spellman mostra-se corajosa e determinada mesmo quando tudo parece estar indo de mal a pior, e com o apoio de sua família e amigos é capaz de qualquer coisa.

Os episódios finais da segunda parte de O Mundo Sombrio de Sabrina conseguiram redimir os amigos mortais da bruxa adolescente, até então separados de seu lado obscuro, colocando-os na ação junto de sua família e colegas da Academia de Artes Ocultas. Em “The Mephisto Waltz”, Roz, Theo e Harvey ajudam Sabrina da mesma maneira que os Spellman, Nicholas e Prudence, unindo, finalmente, esses dois aspectos de sua vida. É empolgante vê-los, todos juntos, proferindo encantamentos com o intuito de prender Lúcifer em uma armadilha e, mesmo quando tudo dá errado, eles não fogem, e sim tentam mais uma vez. Talvez os dogmas de Edward Spellman possam vir a se realizar mais facilmente do que ele alguma vez imaginou, com bruxas e mortais convivendo com tranquilidade. Enquanto Lúcifer é afastado, aprisionado dentro do corpo de Nicholas, que se sacrifica por Sabrina, Zelda assume a posição de Sacerdotisa da Igreja da Noite após a fuga desesperada de Faustus Blackwood, enquanto Lilith coroa a si mesma como Rainha do Inferno — ao unir suas forças, as mulheres de O Mundo Sombrio de Sabrina conquistaram as posições de poder que ambicionavam e nós só podemos aguardar para ver o que esse matriarcado fará na próxima temporada, já confirmada pela Netflix.

Mesmo que os capítulos finais consigam redimir o início morno da segunda parte, algumas coisas ainda precisam ser trabalhadas de uma maneira melhor nas temporadas da série ainda por vir. Ainda que Ambrose tenha recebido uma trama maior nessa temporada de maneira a aproveitar o talento de seu intérprete, Chance Perdomo, fica a curiosidade para vê-lo em sua parceria com Prudence em busca do fugitivo Padre Faustus Blackwood. Prudence, também, continuou sub aproveitada na trama, apenas um peão no jogo de seu pai, Faustus, que a manipulava usando como base a ânsia que ela sentia por ter uma família. Ao final do Capítulo 20, “The Mephisto Waltz”, no entanto, vemos que Prudence fará cumprir sua promessa e caçará Faustus aonde quer que ele esteja — e terá Ambrose ao seu lado, desejando vingança por tudo o que passou quando foi acusado de assassinar o Antipapa (Ray Wise) ao ter sido enfeitiçado por Blackwood.

Kiernan Shipka continua ótima como Sabrina Spellman, interpretando a bruxa adolescente com as nuances necessárias, seja quando precisa incorporar uma doppelganger que é pura maldade e ingenuidade, seja quando bate de frente com Fausuts Blackwood ou o próprio Lúcifer. Os novos episódios são capazes de abrir novas possibilidades para as futuras temporadas e O Mundo Sombrio de Sabrina enquanto fecha alguns arcos narrativos. Com Nicholas no inferno contendo a alma de Lúcifer e Sabrina determinada a salvá-lo, podemos esperar alguns momentos empolgantes daqui pra frente. A equipe liderada pelo showrunner Roberto Aguirre-Sacasa, responsável também pelos quadrinhos Chilling Adventures of Sabrina em que a série se baseia, foi capaz de entregar uma boa temporada, ainda que ela tenha exigido um pouco de paciência de sua audiência no começo. Se a parte um focou na escolha de Sabrina entre seu lado mortal e o lado mágico, a parte dois é basicamente sobre abraçar o caminho escolhido. Sabrina assinou seu nome no Livro da Besta, mas nem por isso aceitou o julgo de Satã, e tal atitude se desdobrou nos acontecimentos que levaram a troca de liderança tanto na Igreja da Noite quanto no Inferno. A série permanece um bom entretenimento, principalmente por nos fazer torcer por seus personagens e seus destinos enquanto fica cada vez mais sombria, intercalando cenas completamente normais com rituais bizarros e levitação. O Mundo Sombrio de Sabrina ainda tem muito o que contar, e nós estaremos aqui a espera de mais histórias de terror com meninas que enxergam o futuro, outras que caçam um feiticeiro fugitivo e outras que flutuam e conjuram chamas e querem resgatar o namorado das profundezas do inferno.