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Reese Whiterspoon, Livre e por que não mulheres?

Recentemente, pessoas começaram a voltar sua atenção para um problema não tão recente: a falta de representatividade das mulheres no cinema. Ao falar sobre representatividade, estamos falando de diversos setores nos quais mulheres são excluídas até hoje, à frente e por trás das câmeras. Representatividade diz respeito a mais histórias de mulheres, sobre o maior número possível de mulheres. Mulheres de diferentes cores, nacionalidades e orientações sexuais, mulheres boas, más, valentes e esquisitas. Mulheres de verdade projetadas na tela do cinema por outras mulheres. Sim, essa última parte também é importante.

Estamos assistindo a mais histórias sobre mulheres, mas quantas delas são contadas por mulheres? Dentre os oito indicados ao Oscar de Melhor Filme em 2016, três tinham protagonistas femininas: Brooklyn (2015), O Quarto de Jack (2015) e Mad Max: Fury Road (2015). Se juntarmos Joy (2015) e Carol (2015), que aparecem nas categorias de Melhor Atriz e Melhor Roteiro Adaptado, temos cinco importantes histórias sobre mulheres no total. Parece pouco, ainda é pouco, mas, acredite, é extraordinário. Dentre esses cinco filmes, no entanto, apenas dois foram escritos por mulheres e um impressionante total de zero possui uma mulher por trás da direção. Enquanto que, em 88 anos de premiação, apenas quatro mulheres foram indicadas ao Oscar de Melhor Direção e apenas uma foi premiada: Kathryn Bigelow. Em 2010.

Sabemos que o Oscar já não possui o mesmo prestígio que teve em seus anos dourados e muito disso se deve ao fato de que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas é uma organização reconhecidamente retrógrada, racista, machista e todos os adjetivos que implicam preconceito e indiferença com relação às minorias que seja possível lembrar. Ainda assim, é o prêmio mais importante do cinema americano e aquele em que o espectador médio presta atenção. Ser indicada a um Oscar ainda quer dizer alguma coisa.

Para além do reconhecimento, ter mulheres ocupando cargos de diretoras, roteiristas e produtoras abre espaço para diferentes pontos de vista, modos de fazer e perspectivas de se contar uma história. São vivências diversas que mudam completamente a forma de se contar essa história. Quando uma indústria é comandada por homens e seus produtos são idealizados e realizados por homens, estamos levando em conta apenas os pontos de vista, modos de fazer e perspectivas dos homens ao contar uma história. Suas vivências podem, sim, ter algo a acrescentar, mas também deixam muito a desejar. Isso não quer dizer que um homem não seja capaz de contar — bem — uma história feminina, mas por que só eles têm o direito de fazê-lo e receber o reconhecimento por isso?

Para tentar agir sobre algumas dessas questões, Reese Whiterspoon se juntou à produtora australiana Bruna Papandrea para fundar a Pacific Standard, uma produtora independente, especializada em fazer acontecer filmes que oferecem às mulheres personagens interessantes e complexas. A ideia surgiu justamente porque Reese, enquanto atriz, estava cansada de receber propostas de filmes com personagens femininas que simplesmente não ofereciam tudo aquilo que uma mulher é capaz de viver e interpretar numa tela.

Em entrevista ao Indie Wire, a atriz (e agora produtora) contou como a empresa começou:

“Acho que eu estava lendo os materiais que chegavam até mim e eram oferecidos pra mim. Não que não houvesse ofertas, é só que o nível do material — eu não achei que estava melhorando, aliás, achei estava piorando. O tipo de filme que as pessoas estavam fazendo, os papéis para os quais cinco ou seis mulheres estavam competindo eram meio medíocres. Então eu pensei ‘Uau, temos um espaço vazio no mercado. Sei que existe interesse em filmes sobre mulheres. Sei que existe mercado pra isso. Definitivamente existe o público’. Mas eu não via nenhuma companhia mirando especificamente em filmes protagonizados por mulheres.”

Como projetos de destaque, a Pacific Standard foi responsável por lançar Garota Exemplar (2014), baseado no livro de mesmo nome de Gillian Flynn, com Rosamund Pike no papel principal, e Livre (2014), baseado na jornada pessoal de Cheryl Strayed, que tem a própria Reese Whiterspoon como protagonista. São dois filmes excelentes, adaptados de livros incríveis, com protagonistas intrigantes, complexas e estupendamente interpretadas (tanto Rosamund como Reese receberam indicações ao Oscar por seus papéis), mas algo me deixou incomodada: nenhum deles foi dirigido por uma mulher.

Isso me chamou atenção recentemente pois só agora assisti Livre, logo depois de ler o livro no qual ele foi baseado. Foi uma leitura que realmente mexeu comigo e que me surpreendeu bastante. Eu esperava um relato de viagem, a aventura de uma mulher na Pacific Crest Trail, uma trilha que passa por deserto, montanhas e neve, um percurso longo, intenso, que trilheiros passam a vida se preparando pra enfrentar e Cheryl Strayed encarou, sozinha, contando com a experiência de alguns verões acampando durante a infância.

O livro é um ótimo relato de viagem e aventura, mas é muito mais. O que Cheryl busca na trilha não é necessariamente a redenção depois de “se perder” numa espiral de autodestruição que incluiu drogas pesadas e traições sistemáticas ao marido. Sua jornada não se resume a uma superação ao luto da mãe, que ela perde de repente e muito jovem para um câncer violento. A história de Cheryl é sobre se fazer inteira depois de quase uma vida inteira aos pedaços e reunir todos juntos, o que inclui abraçar também suas falhas e seus desvios de percurso como partes de uma trajetória que a fizeram quem ela é. É sobre se sentir forte e segura no mundo sendo sua própria pessoa.

A adaptação do filme ficou a cargo de Nick Hornby, que assina o roteiro, e do diretor canadense Jean-Marc Vallée. O trabalho deles é realmente muito bom, principalmente quando se tem em mente que Livre é um trabalho realmente difícil de ser adaptado: a personagem passa a maior parte do tempo sozinha, andando, e traduzir de modo cinematográfico sua jornada emocional é uma tarefa auspiciosa. Achei o resultado muito bom, honestíssimo e a estrutura meio quebrada da história, todas as associações emocionais envolvendo lembranças, momentos na trilha e insights pessoais foram transformados em imagens de um jeito que não é óbvio e didático, mas que não deixa de fora o espectador que não leu o livro antes. No papel principal, Reese Whiterspoon está maravilhosa e Laura Dern foi a coadjuvante que a personagem merecia. Deu tudo certo, mas ainda assim cheguei no final curiosa: por que não uma mulher?

Nick Hornby, curiosamente, tem feito carreira adaptando para o cinema histórias femininas: além de Livre, ele assina os roteiros de Brooklyn (2015) e Educação (2009), dois filmes coming-of-age focados na experiência de amadurecimento feminina. Embora o arco dramático da história de Cheryl Strayed possua um apelo universal, existe algo de especificamente feminino em sua história e também na de sua mãe, Bobbi. São duas mulheres tentando transcender aquilo que era esperado delas enquanto mulheres, sobrevivendo ao abuso, à violência e à pobreza, no caso da mãe de Cheryl, e buscando mais do que a vida normalmente reservaria para uma garota pobre e sem pai do interior de Minnesota, no caso de Cheryl.

Em determinado momento, já bem doente, Bobbi desabafa que nunca teve a oportunidade de ser sua própria pessoa, tendo passado a vida sendo filha, esposa, mãe de alguém. “Como você se sente tendo uma filha tão mais sofisticada do que você era na minha idade?”, questiona Cheryl, cheia de arrogância. “Esse era o plano”, é o que a mãe responde.

Existem nessa história aspectos profunda e exclusivamente femininos, ligados ao nível de transgressão que representa a jornada de Cheryl. Ela vai além do que era esperado dela, rejeita aquilo que era esperado, aborta, usa drogas e trai o marido. Para se curar, ela encara uma trilha que, para além de todos os perigos naturais, a expõe à vulnerabilidade de estar sozinha num ambiente completamente hostil, dependendo da gentileza de estranhos e da própria coragem. Só uma mulher consegue entender com todas as nuances a dimensão de sua coragem e também do seu medo.

Como já disse, Livre não é um filme ruim. Longe disso, é um excelente filme. No entanto, fico pensando em todas as visões, perspectivas e modos de se contar uma história que estamos perdendo ao, novamente, entregar o filme nas mãos de dois homens (será que a gente precisava mesmo de toda a nudez e as cenas de sexo bem eróticas?). O que uma vivência feminina poderia acrescentar a essa realização? É um mundo de possibilidades que só descobriremos quando as mulheres tiverem seu espaço como realizadoras e não apenas atrizes. Aos poucos estamos trilhando novos caminhos e iniciativas como a Pacific Standard — que já está com 26 projetos em andamento, 16 deles baseados em livros — são importantes. Contudo, não podemos parar de exigir mais, forçando com o pé todas as portas, se necessário for.

Não sou cineasta e nem tenho dinheiro para bancar um filme, mas enquanto espectadora que dá muito dinheiro para indústria do entretenimento, o que posso fazer é questionar. Te convido a fazer o mesmo. Quando assistir a um filme, principalmente se for um filme sobre mulheres, vá além da tela e pergunte: por que não uma mulher?

1 comentário

  1. Vi esse filme um dia desses, e não pude deixar de lembrar de outro que é um dos meus favoritos, Na Natureza Selvagem.
    Não pude deixar de pensar tb que Supertramp had it easy, sem medo de ter sido estuprado 😔

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