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Kim Jiyoung, Nascida em 1982: uma história cortada pelo machismo

O “ser mulher” é talvez uma das coisas mais difíceis de serem definidas no mundo. Não é possível descartar a pluralidade do feminino para o bem de uma definição precisa e está longe dos objetivos deste texto realizar tal façanha. Contudo, existe algo que é indissociável dessa condição: a desigualdade de gênero. Por mais que seja atravessada por raça, classe e diferenças culturais, não existe uma só mulher no mundo que não tenha vivido uma situação pautada pelo machismo estrutural.

É com essa premissa em mãos que a escritora Cho Nam-Joo constrói Kim Jiyoung, Nascida em 1982, seu terceiro romance. Traduzido por Alessandra Esteche e publicado pela editora Intrínseca em março deste ano, a obra chega ao Brasil com status de best-seller internacional e traz consigo todo o debate fomentado pelo texto acerca da disparidade entre mulheres e homens, em especial na sociedade da Coreia do Sul, país de origem da autora.

Uma entre muitas

A protagonista que nomeia o livro é uma mulher comum, mais uma millennial entre tantas sendo engolida pela vida normal. No outono de 2015, quando a narrativa inicia, ela já era casada com Jung Daehyun havia três anos e era mãe de uma garotinha chamada Jung Jiwon fazia um. A família morava nos arredores de Seul, capital sul-coreana. Jiyoung havia largado seu emprego numa agência de marketing pouco antes de sua filha nascer, passando a dedicar-se inteiramente a cuidar da casa e da criança.

Tudo corria como sempre até o dia 8 de setembro, quando seu esposo notou seu comportamento estranho pela primeira vez. Era como se Kim Jiyoung não fosse mais ela mesma: ela era sua mãe, ou sua colega de faculdade, ou qualquer outra mulher viva ou morta que já havia cruzado seu caminho. Pouco tempo depois, a mulher não se lembrava de nada e agia como se sempre estivesse presente. E talvez estivesse, de alguma outra forma. Depois de mais uma ausência/personificação de Jiyoung num feriado que o casal passava com os familiares de Daehyun (e que deixou todos pasmos e assustados), o marido resolve então marcar um psiquiatra para a esposa.

Tornando-se Kim Jiyoung: da infância à vida adulta

O romance cria então um histórico da protagonista, desde sua família até o momento presente da narrativa. Os capítulos, que se dividem pelas etapas da vida, funcionam como um arquivo de memórias, mesclando a história da jovem com dados reais fundamentais para entendermos mais da sociedade coreana e como o machismo se projeta nela.

Uma das primeiras lembranças de Jiyoung era da diferença de tratamento que ocorria entre as duas meninas da casa, sua irmã e ela, e o menino, seu irmão caçula. Se houvesse apenas dois objetos necessários para os três filhos, fossem eles cobertores, guarda-chuvas ou doces, eram as garotas que dividiriam um, enquanto o mais novo teria o seu próprio. Apesar disso, ela não tinha ciúmes do garoto ou reclamava das injustiças que vivia junto de Eunyoung, a mais velha dos irmãos.

Quem também morava na casa onde Jiyoung cresceu era sua avó paterna Koh Boonsoon. Ela foi uma mulher que trabalhou a vida toda, dentro e fora de casa, sustentando sozinha os filhos e o marido durante um período difícil cercado por guerras e fome. A idosa atribuía ao filho os cuidados que recebia na residência, por mais que quem realizasse todo o trabalho doméstico fosse a esposa dele, Oh Misook. A mãe de Jiyoung é a personagem que mais teve o desenvolvimento pleno prejudicado pela desigualdade de gênero, deixando de lado seus sonhos para financiar os estudos de seus irmãos homens.

“Em 1999, quando Kim Eunyoung completou vinte anos, foi aprovada uma nova legislação contra a discriminação de gênero e, em 2001, quando Kim Jiyoung completou vinte anos, foi formado o Ministério da Igualdade de Gênero. Mas, em momentos cruciais da vida das mulheres, o estigma de “ser mulher” se erguia, obscurecendo-lhes a visão, atando-lhes as mãos e impedindo que avançassem. Os sinais eram contraditórios e inquietantes.”

Na escola, o cenário não era muito diferente. Durante a infância, os meninos tinham prioridade na fila do almoço, enquanto as meninas só poderiam pegar a comida depois que todos eles já haviam se servido. Já na adolescência, os problemas começam relativamente simples, com a diferença entre o uniforme masculino e feminino, e terminam envolvendo punições depois que as estudantes foram assediadas. O assédio também perpassa o momento em que Kim Jiyoung entra no mercado de trabalho. Por mais que ela tentasse fugir das situações abusivas e desconfortáveis, parecia quase impossível e no final, a culpa recaía sobre ela.

Atenção: este texto contém spoilers!

Muito além de um diagnóstico

O leitor não tem uma resolução a respeito do que acontece com Kim Jiyoung pois o livro ganha novos contornos no seu último capítulo. Com a descoberta de quem é o verdadeiro narrador do romance, percebemos que um diagnóstico pouco importa a esse personagem. Tudo que a jovem passou, consequências de um machismo (não tão) latente, não faz diferença para um homem que não consegue olhar um palmo a frente.

São essas imagens de pequenos e grandes sofrimentos que reverberaram em Kim Jiyoung e provavelmente provocam sua fragmentação em várias mulheres que passaram por sua vida. O romance ganha força em sua conclusão, justificando o ar de artigo científico que pode incomodar em alguns momentos. Com um relato curto e uma virada inteligente, Cho Nam-Joo cria uma personagem que recebe empatia facilmente e revela a face daquilo que nós mulheres já conhecemos, mas que é sempre importante ressaltar: o machismo.


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