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A megera indomada de Walcyr Carrasco

No ano 2000, foi ao ar a primeira novela de Walcyr Carrasco na Rede Globo. Ele vinha do sucesso Xica da Silva (1996), da Rede Manchete, e seu primeiro folhetim, O Cravo e a Rosa, para o horário das 18h da emissora logo caiu nas graças do público e virou também sucesso. O Cravo e a Rosa deveria ter 90 capítulos, mas, quando chegou ao capítulo 60, a emissora percebeu o apego do público pela trama e pediu ao autor que esticasse a novela. Assim, a trama terminou com 221 capítulos, 20 a mais do que o previsto. Após 19 anos, tal sucesso repetiu-se na reprise da novela na íntegra no canal Viva, da Rede Globo. A novela foi a mais assistida em todos os 10 anos de existência do canal.

A história da rica herdeira feminista Catarina Batista (Adriana Esteves) e do sitiante pobretão Julião Petruchio (Eduardo Moscovis) é na verdade baseada na peça de teatro A Megera Domada, do dramaturgo inglês William Shakespeare. Transposta para a São Paulo de 1927, a trama bebe da fonte de Cyrano de Bérgerac, do dramaturgo francês Edmond Rostand, para contar a história da irmã de Catarina, Bianca (Leandra Leal) e seu romance com Professor Edmundo (Ângelo Antônio). A novela também traz como texto base a trama de O Machão, telenovela de 1974 da TV Tupi, na qual Antonio Fagundes e Maria Izabel de Lizandra interpretavam Petruchio e Catarina.

Na pauliceia desvairada dos modernistas, Catarina Batista é uma feminista inveterada que recusa todos os pretendentes que seu pai, o Banqueiro Batista (Luís Mello), lhe apresenta. Devido a uma promessa que fez no leito de morte de sua mãe, Catarina jura que jamais se casará e faz de tudo para afastar todos os homens que ousem beijar sua mão. Assim, ela recebe a alcunha de “A Fera”. Já Bianca, irmã mais nova de Catarina, é romântica e sonhadora, deslumbrada com a ideia de um casamento ideal com Heitor (Rodrigo Faro), rapaz com quem namora escondido.

A irmã de Heitor, Dinorá (Maria Padilha), pensando em entrar para a família de Batista, arma para que o primo de seu marido Cornélio (Ney Latorraca) despose Catarina. Um sitiante bronco, Julião Petruchio parece ser o único homem capaz de domar “A Fera”. Um galanteador, ele só aceita a proposta com a ideia de que o alto dote da moça possa salvar sua fazenda embargada. Já Catarina apenas o aceita depois de Dinorá forjar uma situação em que a feminista pensa que sua irmã tem a mesma doença que matou a mãe das duas. Assim, em um empurra e abraça, Catarina e Petruchio se vêem apaixonados um pelo outro.

Da peça de Shakespeare foi mudado o final. Na cidade italiana de Pádua, onde a peça A Megera Domada se passa, Petruchio engana Catarina se fingindo um homem gentil, um marido que faria todas as vontades da esposa. No entanto, após o casamento, ele passa a abusar psicologicamente da Megera, negando a ela até comida.

Na novela, antes de morrer, a mãe de Catarina a alerta que os homens são assim: “Antes são como anjos, mas depois viram verdadeiros demônios.” A mãe de Catarina sofreu em um casamento infeliz como tantas mulheres. Porém, a história de sua filha com Julião Petruchio tem um contexto um tanto diferente do que a dos italianos. Arrogante, a Catarina de O Cravo e a Rosa humilhou constantemente o noivo antes do casamento, colocando-se superior a ele a cada oportunidade. Depois de casado, Julião viu a oportunidade de uma vingança, ao contrário de Petruchio, de Shakespeare, que nega o básico a sua esposa para que ela se comporte do jeito que ele deseja. Catarina, em O Cravo e a Rosa, não deixa os abusos de Julião baratos e devolve sempre no mesmo tom, ao contrário da Megera, que aceita tudo calada.

Esse tipo de comportamento é no mínimo “estranho” se comparado às outras protagonistas de peças de comédia de Shakespeare. A comédia shakespeariana era usada como sátira para denunciar comportamentos da época que o dramaturgo discordava. Em três de suas comédias, as mulheres têm que se vestir de homem para resolver suas vidas ou a de outros, já que serem elas mesmas não era suficiente para a época. É o que acontece em O Mercador de Veneza, Noite de Reis e Como Gostais. Em outra obra, a potente fala, “Se eu fosse um homem! Comeria o coração dele em praça pública”, é proferida por Beatriz, que sofre por não poder defender a honra manchada de sua prima Hero contra Cláudio (Muito Barulho Por Nada, Ato 4 Cena 1, tradução livre).

Na primeira parte de A Megera Domada, Catarina se assemelha muito a Beatriz: é independente, fala e faz o que quer e não liga em ser “solteirona”. É o tipo de mulher que Shakespeare considerava uma protagonista para suas comédias. Suas personagens femininas eram nobres da realeza que tomavam os rumos das próprias vidas para si, ou batendo de frente com os outros — de forma agressiva, como Beatriz e Titânia (Sonho de uma Noite de Verão) ou de forma ingênua e virtuosa, como Miranda em A Tempestade, ou, ainda, burlando o sistema social da época (ao se vestir de homem, por exemplo).

Porém, na segunda parte, Catarina torna-se submissa, fazendo todas as vontades de Petruchio, por mais absurdas que sejam. Ela se anula em detrimento dele e perde sua personalidade, concordando com absolutamente tudo o que o marido fala, tomando para si as opiniões dele como suas. Ela faz isso por medo, como vítima de abuso psicológico. Essa mudança de comportamento não deve ser levada como a opinião do dramaturgo sobre as mulheres, mas talvez sua opinião sobre os maridos. Comparando Catarina de Pádua às outras protagonistas femininas, Shakespeare faz em A Megera Domada uma de suas maiores críticas sociais sobre o peso que o casamento tem para a mulher: a anulação que muitas mulheres vivem em função do marido.

Como a peça é uma comédia, todo o abuso é colocado como situações absurdas para causar o riso. Apenas recentemente o abuso psicológico vem sendo colocado no mesmo patamar do abuso físico pela população. Tanto no momento histórico em que a peça foi escrita quanto na época em que a novela foi exibida (400 anos de diferença) não se tinha o conhecimento de que, ao colocar uma cena de abuso psicológico como piada, toda a situação acaba sendo banalizada.

Ao contrário dos abusos cometidos por homens em tragédias, nas comédias esses abusos não são vistos como abusos. Quando falamos sobre tragédias, as mulheres quase sempre acabam mortas ou lado de seus agressores. Na tragédia, o abuso físico é mostrado sem figuras de linguagens e por isso é cruel e feroz. Todo tipo de abuso físico contra a mulher, justificado por tantas questões sociais, é usado nas tragédias para alertar de maneira chocante sobre comportamentos amorais e duvidosos que permeiam a sociedade (o ciúme excessivo de Otelo, a ingratidão de Lear, a insegurança duvidosa de Hamlet). Ao final de suas peças as mulheres trágicas de Shakespeare acabam mortas.

Está claro que a origem das referências do autor de O Cravo e a Rosa reside na dramaturgia teatral. Suas duas primeiras novelas na Rede Globo foram comédias baseadas fortemente em peças de teatro: além de O Cravo e a Rosa, o sucesso Chocolate com Pimenta (2003), traz como base tanto a opereta A Viúva Alegre, de Franz Lehár, como a peça A Visita da Velha Senhora, de Friedrich Dürrenmatt.

Talvez por isso as comédias do autor sejam comédias pastelão de ação física, com tortas na cara e tombos no chiqueiro, aos moldes da provocação de riso dos palhaços de circo. Já suas tragédias (ou dramas) são shakespearianas também ao máximo, com o que existe de pior nas entranhas da sociedade. No teatro, essas narrativas funcionam como algo crítico, mas o texto do autor não demonstra essa crítica, talvez passando completamente despercebida pelo público geral e caindo na absolvição de tais atos. O autor erra ainda mais ao insistir no uso do riso fácil por meio de uma comédia grotesca e um tanto medieval ao usar minorias para gerar humor (gays afeminados, pessoas com nanismo, mulheres abusivas etc).

De propósito ou não, Catarina Batista é uma leitura da Catarina de Shakespeare que acerta na liberdade feminina. Catarina é feminista até o fim, convicta e desavergonhada, sem se deixar levar pela opinião ou pressão psicológica de Julião Petruchio. Ela é uma mulher do tempo ambientado na trama (ano de 1927), do momento histórico em que a novela foi ao ar (ano 2000) e, por que não, de 20 anos depois.

A terceira onda do feminismo estava no auge no ano 2000. Um ano antes, nos EUA, a mesma peça de Shakespeare havia sido transformada em filme adolescente de grande sucesso, o agora clássico Dez Coisas que Eu Odeio em Você (1999). No filme, a trama da peça é transposta para uma escola de ensino médio de Seattle. A história paralela de Bianca (Larissa Oleynik) é baseada em Cyrano de Bérgerac. Kat (Julia Stiles) é uma moça de 18 anos que ouve bandas de rock feministas riot e chuta a virilha de garotos que tentam qualquer gracinha com ela. Ela não se importa com sua aparência e acha que o universo feminino deve ser rejeitado, como uma feminista típica do final dos anos 1990 e começo dos 2000.

Catarina, “A Fera” de Carrasco, também traz esse sentimento do feminismo estereotipado dos anos 2000. Apesar de ser ambientada no final da década de 1920, O Cravo e a Rosa se insere perfeitamente no movimento feminista da virada do século XX para o XXI, momento em que foi ao ar. Para Catarina, ser feminista é não se casar com um homem, não virar dona de casa e até mesmo não se apaixonar. Tanto para Kat como para “A Fera”, apaixonar-se por um homem é se deixar “domar”. E ambas terminam suas tramas “domadas”, em um entendimento raso dessas criações.

Porém, uma análise mais aprofundada nos dá uma interpretação mais certeira tanto de Catarina quanto de Kat. A paixão que sentem por Petruchio e Patrick (Heath Ledger) não é dominação de verdade. Ambos os homens não têm poder sobre suas protagonistas ao final da trama, e sim estão em patamar de igualdade em relação a elas. Na realidade, a paixão ou o amor não serve a nenhuma das tramas como controle sobre um dos lados, mas sim como um fator de igualdade que põe ambos sobre o mesmo patamar. Ao final, ambas as tramas acabam sendo exemplos perfeitos de histórias verdadeiramente feministas.

Carrasco, portanto, propositadamente ou não, cria em Catarina uma protagonista complexa, com qualidades e defeitos, que não se deixa rebaixar por seu marido ou por seu pai. Ao contrário, se coloca em pé de igualdade com os dois durante toda a trama. Catarina, assim, foge de sua contraparte shakespeariana, não aceitando ser moldada à vontade dos homens a sua volta. Termina sua trama feliz com uma família, mas ainda feminista, livre e indomada.

3 comentários

  1. Eu amei esse texto! Me fez ver a novela com outros olhos e ainda gostar. Fiquei com certo medo de acabar machucando a memória da novela que me cativou na infância. Mas foi perfeito, uma análise justa e inteligente. Parabéns! Longa vida ao Valkirias 🖤

  2. Assisti o Cravo e a Rosa quando tinha 12 anos, e desde então sempre falei que foi minha novela favorita, sem nem saber o pq. Recentemente revi a novela no Viva e aí sim entendi <3 Inclusive, já estou com saudades.
    Obrigada por esse texto!

  3. Eu amei o texto e adoro quando vocês falam sobre novelas, mas me incomodei um pouco com o seguinte comentário: “…acerta na liberdade feminina. Catarina é feminista até o fim, convicta e desavergonhada, sem se deixar levar pela opinião ou pressão psicológica de Julião Petruchio.” Isso soou como se a outra, vítima de um relacionamento abusivo, fosse mesmo feminista simplesmente por ser uma ´vítima dos abusos constantes do marido. Não quero criar caso, só comentar! Haha

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