Estrelado por Heath Ledger, Julia Styles, Larisa Oleynik e Joseph Gordon-Levitt, e dirigido por Gil Junger, o filme 10 Coisas que Eu Odeio em Você se tornou um clássico da comédia romântica — e não podia ser diferente. Vinte anos após o lançamento, a produção é queridinha até por quem ainda engatinhava na época. A protagonista, Kat (Styles), é a garota que “costumava ser muito popular”, como aponta sua irmã Bianca (Oleynik), mas muda completamente — e sem ninguém entender muito bem o porquê. Feminista convicta, ela se recusa a cair nas armadilhas da adolescência, onde considera que a aparência é mais importante do que o real, e faz da sua missão na vida não ser assim.
No meio dessa cruzada está Bianca que, pelas regras estranhas de seu pai, não pode sair ou sequer se relacionar com garotos. Contando com a personalidade explosiva e seletiva de Kat, o pai às propõe uma regra: Bianca só vai poder namorar quando Kat começar a namorar. Bianca, uma adolescente que não foge do padrão esperado, busca uma brecha nessa situação. Cameron (Gordon-Levitt) que cai de amores por Bianca desde o primeiro momento em que a vê, com a ajuda do novo amigo Michael (David Krumholtz), traça um plano para ajudar a amada. Eles decidem contratar Patrick Verona (Ledger), um rapaz de má fama e cara de poucos amigos, para quebrar o gelo ao redor do coração de Kat visto que ele seria o único corajoso o bastante para a tarefa.
Apesar de ser baseado na história A Megera Domada de William Shakespeare, um de seus primeiros sucessos, de 1596, o texto do longa é tão moderno quanto um filme da década de 1990 pode ser. É sagaz, possui tiradas dinâmicas sobre feminismo, estereótipos da adolescência e as pressões que a sociedade impõe. É uma comédia sobre esses sentimentos, claro, mas ao mesmo tempo é honesto sobre a essência da sua protagonista — algo que é diferente da obra de Shakespeare. A peça conta a história de Katherina e Bianca, filhas do senhor Baptista, um pai bastante rígido. A mais nova, Bianca, doce e solícita, possuía uma fila de pretendentes interessados em pedi-la em casamento. A mais velha, apelidada de megera, afastava todos com sua acidez. Baptista cria então a regra de só permitir que a filha mais nova se casasse depois da mais velha tê-lo feito.
A trama se desenrola com a chegada de Lucentio à cidade de Pádua, que se apaixona logo de cara por Bianca. A moça, entretanto, também é desejada por Hortencio e Gremio. Petrucchio, grande amigo de Hortencio e vindo da cidade de Verona, faz uma visita a seu amigo e ouve a história sobre a “megera” Kate. Milionário e em busca de um bom dote, vê Katherina ao mesmo tempo como um desafio e uma oportunidade e faz uma proposta de casamento ao pai da moça. Ela se opõe, mas o pai aceita e a obriga a se casar com o rapaz.
Assim que o casamento é finalizado ele a leva para Verona. Bianca se casa com Lucentio após uma série de tramas entre os três pretendentes. Apesar de Katherina se opor às atitudes do marido, Petrucchio passa a treinar sua esposa para obedecer, negando a ela desde roupas e qualquer forma de luxo até coisas básicas como comida. Eventualmente, ela se torna uma esposa obediente. Por pior que seja, a história patriarcal e carregada de machismo não foge muito do que esperamos de um romance escrito no século XVI. Casamentos arranjados, a dominação masculina e a submissão da mulher não eram um problema para essa sociedade. O que não significa que devemos ignorar essas questões dentro da obra. E é esse um dos maiores desafios ao transportar para o mundo contemporâneo uma trama escrita há quase cinco séculos.
No caso de 10 Coisas que Eu Odeio em Você, as referências à trama original permeiam todo filme. Os nomes de Kat e Bianca, os mesmos das protagonistas de A Megera Domada, possuem como sobrenome Stratford, nome semelhante a cidade de nascimento do Bardo, Stratford-upon-Avon. Petrucchio de Verona se torna Patrick Verona, e ainda que história aconteça em Seatle, a Pádua High School é também uma referência. Ao ver Bianca pela primeira vez, no filme, Cameron diz “I burn, I pine, I perish!”, citação direta da fala de Lucentio na obra de Shakespeare.
Mas, seria bastante estranho se, no final do século XX, em meio a teorias da terceira onda do movimento feminista nos Estados Unidos, um filme adolescente trouxesse como trama a impossibilidade de uma filha se casar enquanto a mais velha não se casasse. Não que obras dessa época não fossem carregadas de machismo, mas existe um limite razoável de credibilidade, principalmente em uma obra destinada a um público mais jovem. Faz mais sentido a escolha feita pela trama de usar o recurso do “pai superprotetor com as filhas adolescentes num mundo de sexo e drogas”, agravado pelo trabalho como obstetra que não só o mantém com “placenta até os cotovelos” mas também o torna um pai ausente, que está sempre trabalhando — algo cada vez mais comum.
É também preocupante a ideia de “domar a megera” que a peça carrega. A mulher que fala o que quer, responde de forma que os homens consideram agressiva e age de uma forma diferente daquela que é esperada é vista como megera e precisa ser controlada por um homem. Homens decidem sua vida e ela, então, se torna uma esposa maravilhosa, como deve ser.
A adaptação foi escrita também em formato de peça teatral por Karen McCullah Lutz e Kristen Smith em 1997 e, logo no início apresenta Kat: “dezoito anos, bonita — mas tentando muito não ser — usando um vestido largo de vovó e óculos”. No filme, logo nas primeiras cenas a vemos ouvindo “Bad Reputation” de Joan Jett & The Blackhearts e arrancando o pôster do Baile de Formatura. A megera agora é uma feminista badass e não muito diferente da Kate shakespeariana. Kat, até então, entendia que o seu feminismo — e a própria feminilidade, em certa medida — funcionavam pela aversão. Ela queria agir de acordo com o que quisesse fazer e isso era fazer o que não queriam que ela fizesse. Para não ser o que a sociedade impunha, precisava ir contra tudo que representasse qualquer parte dessa imposição. Seja o pai, a irmã, os babacas do colégio, os bailes, as normas, tudo. Insistentemente. Entretanto, é da relação com Verona que surge uma grande autodescoberta.
Uma crítica constantemente levantada sobre o filme é a de Kat, a grande feminista, é facilmente “domada” por Patrick. Ela se apaixona e esquece suas posições e sua personalidade. Em uma resenha publicada no The New York Times quando o filme foi lançado, em 1999, Stephen Holden diz que “a megera orgulhosa e inconformada é domada pelo Patrick Verona de Heath Ledger” e, ainda, “sua doma é tão facilmente realizada que é quase um pedaço de bolo” (“piece of cake”, no original, que significa algo fácil demais). Primeiro, precisamos lembrar da melhor cena do filme, Patrick cantando “Can’t Take My Eyes Off You”. Em geral, a cena é vista como uma declaração de amor de Patrick, se pensarmos no refrão “I love you, baby”. Mas Verona não faz toda essa cena por amor, mas por algo que Cameron disse antes.
Depois da festa de Bogey Lowensteins, Patrick leva Kat pra casa e, quando eles conversam no carro, ela se inclina para beijá-lo. Ele recusa, e diz que seria melhor fazer isso em outra hora. Até agora, ela havia desviado de todas as investidas de Patrick e, quando finalmente baixa a guarda, ele recusa. Kat Stratford não é o tipo de pessoa que demonstra interesse ou que demonstra sentimentos por alguém. Nesse momento, ela se sente envergonhada e rejeitada. E responde a isso com a raiva, odiando Patrick “com o fogo de mil sóis”. Cameron então diz, “Você envergonhou a garota! Sacrifique-se no altar da dignidade e empate o placar!”. E é por isso que ao fazer a declaração, ele mostra que está interessado em Kat o suficiente para igualar o placar. Ao fazer o que ninguém esperava que ele fizesse, Patrick mostra um outro lado seu e a deixa mais segura. Em uma parte do filme ela pede para que ele conte alguma coisa real: em um mundo onde as aparências são tudo, ela quer o que é real.
O relacionamento de Kat e Patrick é construído por gestos que, ainda que em um primeiro momento sejam vistos como revelações de amor, servem principalmente para reforçar a confiança que eles podem ter um pelo outro. É algo formado por sair da zona de conforto e fazer algo que diga: confia em mim, estou na sua retaguarda. É por isso que o “amansamento” da personagem não foi feito por Verona, mas por ela mesma. Apesar de odiar a situação em que se encontra e ter descoberto todo plano de Joey, Kat, ao escrever e ler o poema na frente da classe, demonstra que aceita o que sente. Ela se deixa parecer vulnerável, e está tudo bem, porque ela aceita o que descobre sobre si mesma. Ela apenas é.
E, com isso, se mantém o que ela disse desde o início: Kat não quer, nunca mais, fazer o que os outros esperam que ela faça, mas sim agir por si mesma, tomando as decisões de acordo com o que quer e o que sente. Ela também não precisa provar nada para ninguém, muito menos justificar seus sentimentos.
Amo esse filme… Um dos meus preferidos de adolescência <3 Adorei o texto!
Parabéns pelo ótimo texto! Sempre vi algumas críticas direcionada a isso de “apesar de ela ser durona, feminista, ela cai nas garras de um macho”, e você explicou perfeitamente que não foi assim que aconteceu.
Adorei mesmo que alguém colocou em palavras tudo que eu sempre vi nesse filme que amo! ^^
AmoooO esse filme! Texto sensacional, parabéns!