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A vida mentirosa dos adultos e as dificuldades de adaptação das protagonistas de Elena Ferrante

Já sabemos que toda adaptação de uma obra literária é uma obra autônoma em si. A própria Elena Ferrante fala isso em entrevistas sobre as várias adaptações de seus romances: que respeita as decisões do autor da adaptação e que fica feliz que sua obra deu origem a algo novo, através da perspectiva de um leitor. Contudo, é impossível não criarmos expectativas e não compararmos a adaptação à obra original — e é isso o que vou fazer sobre a adaptação feita pela Netflix do último romance publicado da autora, A Vida Mentirosa dos Adultos.

Atenção: este texto contém spoilers!

A Vida Mentirosa dos Adultos trata-se de um romance de formação, subgênero romanesco que surge no século XIX no qual a formação da personalidade, da subjetividade do protagonista é o mais importante no enredo. Nesse tipo de romance, o protagonista se forma no mundo histórico e social, incorporando suas experiências e transformações e cultivando a sua personalidade. Esse processo se inicia quando o protagonista parte da sua origem social em busca dessas experiências e passa pela sociabilidade com outros personagens, pelos primeiros amores, pela formação da sua capacidade de auto reflexão. A mobilidade social é também uma característica marcante do romance de formação: esse herói ou heroína é pertencente a um grupo social mediano e, no final do enredo, consegue ascender socialmente através de um casamento. Essas são as características do romance de formação canônico do gênero, Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, publicado em 1795 pelo alemão Goethe.

A vida mentirosa dos adultos

A protagonista Giovanna de A Vida Mentirosa dos Adultos parece realizar uma formação absolutamente contrária ao processo de cultivo positivo da personalidade que acompanhamos no protagonista de Goethe. A história de formação de Giovanna (Giordana Marengo) é narrada por ela mesma já mais velha, contando sobre alguns anos críticos do seu processo de amadurecimento na juventude. Giovanna é filha de Andrea (Alessandro Preziosi) e Nella (Pina Turco), um casal intelectual e bem sucedido, moradores de uma região nobre do norte de Nápoles. Nascida e criada em um ambiente culto e progressista, Giovanna ia mal na escola e escuta atrás da porta seu pai compará-la a sua tia Vittoria (Valeria Golino). Vittoria, irmã de Andrea, é a tia que Giovanna não conhece, mas que representa tudo de ruim, segundo o próprio pai. Não é somente feia e pobre, é algo que ninguém gostaria de se tornar.

É a partir dessa escuta que se inicia o processo de formação de Giovanna que se assemelha mais a um processo de deformação, de decomposição, se comparado aos tropos do romance de formação clássico. Se no exemplo canônico de Goethe, Wilhelm sai de casa intencionalmente, no romance de Ferrante, Giovanna é expulsa da sua configuração familiar ao ser comparada com a tia que não era culta e bela como eles. Giovanna, então, passa a ficar obcecada pelo seu corpo, sua aparência e quer conhecer a tia Vittoria.

A aproximação com a tia Vittoria e o seu mundo pobre de Nápoles coloca em xeque tudo o que Giovanna sabia até então: se seus pais representavam o bem e tia Vittoria o mal, como seu pai sempre colocou, não é isso que Giovanna vê na tia. A narradora se encanta com a efusividade, a grosseria, a impulsividade de Vittoria, mas também com sua amabilidade, seu anseio de cuidar de filhos que não eram nem seus. Vittoria torna-se para Giovanna uma espécie de bruxa, bonita e feia ao mesmo tempo, e que possui uma inteligência sobre afetos e relacionamentos que seus pais, tão cultos, não possuíam. Vittoria é responsável também por alertar Giovanna sobre a hipocrisia do mundo dos adultos e faz com que a narradora retire um véu da frente dos olhos e passe a olhar mais atentamente para o mundo dos seus pais.

a vida mentirosa dos adultos

O arco narrativo de Giovanna no romance se inicia aos 12 anos, na transição da infância para a juventude. A representação da juventude é, também, característica dos romances de formação. É nesse período que o protagonista forma sua personalidade e seu processo de formação se completa quando ele alcança a maturidade. O processo de formação de Giovanna é entender que a vida não é uma separação entre o bem e o mal, que há zonas cinzentas muito mais complexas do que uma separação estanque entre vilões e mocinhos.

As adaptações têm liberdade para mudar elementos do enredo, dar ênfase em um arco narrativo ou em outro, mas o que mais senti falta foi a questão da sexualidade de Giovanna. A comparação com a sua tia Vittoria no início do enredo, leva Giovana a questionar sua aparência e refletir sobre a sua sexualidade, já que tia Vittoria falava abertamente e de forma vulgar sobre sexo, algo impensado pelos seus pais. Na série, Vittoria também faz seus relatos sobre o sexo, mas não vemos a conexão que Giovanna faz ao lembrar de seus momentos de descoberta de sexualidade com sua amiga Angela. Uma passagem importante na formação de Giovanna que, somente com Angela (Rossella Gamba), alcança o prazer. Ida (Azzurra Mennella), a irmã escritora de Angela, projeta um amor não necessariamente com homens e, sim, com mulheres, afirmando que não tinha interesse em relacionar-se com meninos. Na série não acontece esse enfoque e acredito que empobreça essa temática que Ferrante traz mais abertamente pela primeira vez em sua obra.

O processo de degradação de Giovanna não começa somente porque ela conhece Vittoria, mas também porque, instruída pela tia, a protagonista começa a perceber a hipocrisia da sua família e descobre um segredo familiar que abala toda a falsa estabilidade construída pelos seus pais. Seus processo de deformação se intensifica, mas as descobertas sexuais de Giovanna na série acabam ficando muito mecânicas, meio vazias, sem representar o objetivo de Giovanna de se degradar. Se no romance acompanhamos suas reflexões sobre a repulsa que sentia, a falta de prazer, na série fica mais difícil de identificar os motivos da personagem.

a vida mentirosa dos adultos

O arco narrativo sobre o encantamento de Giovanna por Roberto é também interessante, mas não fica tão marcado a mistura de paixão adolescente com a fé religiosa que ocorre no romance, já que Giovanna, uma jovem criada no ceticismo e na racionalidade, se vê pensando até mesmo em se batizar por amor a Roberto (Giovanni Buselli). Mas a cena com a discussão sobre religião e política entre Giovanna e Roberto é bonita.

A série tem elementos criativos como a cena final do primeiro episódio, na qual Giovanna e tia Vittoria flutuam com a cidade ao fundo e a entrada com a busca pela pulseira no mar. Também as atrizes, especialmente Vittoria. A trilha sonora também mostra uma originalidade da direção e a série me entreteve ao longo de seus seis episódios. Fora isso, se no romance, às vezes o drama adolescente é exagerado, mas significativo, na série, falta um pouco de sentido no processo de degradação de Giovanna que nos deixa sem entender seus motivos.