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Disobedience: somos as escolhas que fazemos

Em determinado momento de Disobedience, o narrador do livro diz que o homem e a mulher são seres com o poder de desobedecer. Junto de todas as outras criaturas a quem Deus deu a vida, o homem e a mulher são os únicos com o livre arbítrio e a liberdade de escolher o que desejam fazer de sua existência e destino. “We do not hear simply the pure voice of the Almighty as the angels do. We are not ruled by blind instinct like the beasts” [“Nós simplesmente não ouvimos a pura voz do Todo Poderoso como os anjos fazem. Nós não somos governados pelo instinto cego como os animais.”]. Nós podemos ouvir os comandos de Deus, compreendê-los e, ainda assim, escolher a desobediência. É isso, e apenas isso, que dá à nossa obediência, em contraparte, o seu valor.

Atenção: este texto contém spoilers

Disobedience, livro escrito por Naomi Alderman, foi publicado em 2006, mas voltou a ser assunto após sua adaptação chegar às telas de cinema. Protagonizado por Rachel Weisz e Rachel McAdams, Disobedience, o filme, chega ao Brasil apenas no dia 21 de junho, mas tem dado o que falar por contar a história de amor proibido entre duas mulheres que cresceram no judaísmo ortodoxo. Ronit deixou sua restrita comunidade em Hendon, no subúrbio de Londres, para viver em Nova York e, aos 32 anos de idade, é uma mulher completamente diferente daquela que saiu da casa do pai: construiu uma carreira para si mesma, deixou de seguir os costumes judaicos e é amante de um homem casado. Quando seu pai falece, Ronit precisa retornar a Hendon, um mundo que pensou ter deixado para trás para sempre, e lidar com memórias de uma infância e adolescência conturbadas e controladas por costumes e práticas que ela nunca compreendeu ou aceitou por completo.

Dessa dificuldade em aceitar os termos pelos quais deveria nortear sua vida, nasceu também o difícil relacionamento entre Ronit e seu pai, o rabino responsável pela sinagoga de Hendon. Ronit perdeu a mãe aos quatro anos de idade e, além das poucas lembranças recortadas na memória, tudo o que restou a ela é o nome de batismo, um nome pouco usual na comunidade de Hendon, mas do qual a mãe gostava e Ronit não quer abrir mão. Crescendo sozinha com o pai, um homem que preferia o silêncio a discutir qualquer questão com ela, que esperava que sua única filha seguisse as normas e regras de sua comunidade, Ronit não se vê como parte daquele lugar.

“My mother gave me my name. Ronit. It’s not a usual name for where I come from, not typical. (…) But my mother liked the name. Ronit. The joyful song of angels. I think about that sometimes; I could have changed my name when I moved to New York and changed everything else, but I didn’t. Ronit: a song of joy, a voice raised in delight. The name my mother gave me”.

“Minha mãe me deu meu nome. Ronit. Não é um nome comum de onde eu venho, não é típico. […] Mas minha mãe gostou do nome. Ronit. O alegre canto dos anjos. Eu penso nisso algumas vezes; Eu poderia ter mudado meu nome quando me mudei para Nova York e mudado todo o resto, mas não mudei. Ronit: uma canção de alegria, uma voz erguida em deleite. O nome que minha mãe me deu”.

A comunidade de judeus ortodoxos que vive em Hendon sente-se ultrajada com o retorno de Ronit e sua maneira diferente de agir e ser, mas ela tem coisas mais urgentes com as quais se preocupar, principalmente quando precisa confrontar seu passado e o desejo adormecido que retorna quando Esti, sua antiga melhor amiga, reaparece casada com o primo de Ronit, Dovid. A partir de então, Disobedience seguirá as vidas dos três — Ronit, Esti e Dovid —, o que significa fazer parte de uma comunidade tão restrita quanto a de Hendon, e como a fé e o judaísmo ortodoxo moldaram suas vidas para sempre. Naomi Alderman consegue mesclar as narrativas dos três personagens com pequenas passagens a respeito da fé judaica, fazendo sempre um contraponto com algum texto sagrado e o que veremos no capítulo que se inicia.

O judaísmo ortodoxo faz parte de um dos três grandes ramos do judaísmo e se caracteriza por ser aquele com a prática mais rigorosa e tradicional, sempre prezando pelas regras estabelecidas em seus livros sagrados, a Torá e o Talmud. Durante a narrativa de Disobedience nos deparamos com algumas de suas práticas mais antigas, como o período de luto guardado em honra à memória de um rabino, quando um ritual de cuidado e respeito é colocado em curso por Dovid e alguns membros da sinagoga, ou o momento em que os judeus se preparam para o shabat, o dia de descanso semanal observado a partir do pôr-do-sol da sexta-feira até o pôr-do-sol do sábado. Não é raro, durante a narrativa de Disobedience, acompanharmos os personagens preparando a comida para o shabat, chamada de kosher, própria para o consumo judeu, entre outros aspectos intrínsecos a sua fé. Esse, inclusive, é um ponto muito interessante da narrativa para quem tem curiosidade a respeito de como é viver em uma comunidade judaica e compreender os pequenos detalhes de seu estilo de vida.

Tanto quanto contar sobre os laços que envolvem as vidas de Ronit, Esti e Dovid, Disobedience também brilha ao desvelar os costumes judaicos e sua cultura, e é mérito de Naomi Alderman conseguir costurar dois tipos de história em apenas um livro: as relações entre os três personagens centrais da trama, com todos os seus medos, anseios, desejos e angústias, e as práticas ortodoxas, seus livros sagrados e rituais pouco conhecidos de quem, como nós, vive em um país de maioria cristã. É interessante lançar o olhar sobre uma cultura que é, ao mesmo tempo, tão rica e restritiva, e como esse tipo de amarra pode fazer sofrer aqueles que nasceram em seu meio, mas não conseguem encontrar a paz e a felicidade necessária para ali permanecer.

“Sometimes I think that if she’d asked me, even once, to stay, I would have stayed forever. The Rabbis teach that we each hold worlds within us. Maybe both these things are true. But she never asked. And so I had to leave.”

“Às vezes eu acho que se ela tivesse me pedido, mesmo uma vez, para ficar, eu teria ficado para sempre. Os rabinos ensinam que cada um de nós tem mundos dentro de nós. Talvez ambas as coisas sejam verdadeiras. Mas ela nunca perguntou. E eu tive que ir embora.”

Esse é o caso de Ronit. Desde muito jovem ela desafiou seu pai, o rabino, e os ensinamentos judaicos, algo que ela não conseguia entender ou aceitar por completo. Quando, ainda adolescente, cede ao desejo que sente por Esti, sua melhor amiga, ela entende que não há como ser feliz vivendo em Hendon; Ronit não teria tido a permissão de ser quem verdadeiramente era em uma comunidade que a sufocava, e quando surge a oportunidade de sair de Heandon na forma de uma vaga em uma universidade nos Estados Unidos, ela deixa Londres — e Esti — para trás. Enquanto Ronit parte para buscar sua liberdade do outro lado do Atlântico, cabe a Esti ficar em Hendon e lidar com o vazio deixado pela amiga, além das vozes e olhos de uma comunidade que não aceita o diferente — comunidade que, vale apontar, atua quase como outro personagem, uma entidade que ronda as mentes dos protagonistas a todo tempo, sempre pontuando suas falhas e inadequações.

A delicadeza da narrativa de Naomi Alderman consegue expor todas as dores de Ronit, Esti e Dovid tentando se encaixar em um mundo restrito, enquanto soa, ao mesmo tempo, extremamente respeitosa com a comunidade de judeus ortodoxos. A autora não se coloca na posição de apontar o dedo para o erro que é impedir alguém de ser sexualmente livre, mas deixa o leitor com a tarefa ao expor os dois lados de uma mesma moeda. Um dos momentos mais interessantes do livro, inclusive, é quando Esti utiliza a história do grande amor que o Rei David sentia por seu melhor amigo, Jonathan, filho do Rei Saul, para explicar a Ronit o motivo pelo qual se casou com Dovid mesmo ainda nutrindo sentimentos pela amiga. As histórias contadas pelo narrador de Disobedience servem muito mais como um guia para as tramas de Ronit, Esti e Dovid do que para apontar o certo e o errado em suas vidas.

A leitura de Disobedience nos coloca a refletir como é ser homossexual em uma comunidade tão rígida quanto a judaica, principalmente a ortodoxa, e o que isso faz às vidas de Ronit, Esti e Dovid. Ainda que Ronit tenha fugido para os Estados Unidos, as memórias do que viveu em Hendon ainda permanecem com ela e são assunto de suas consultas com uma terapeuta em Nova York. Ronit pode ser uma mulher irritante em alguns momentos, mas como a própria diz em uma passagem do livro, ninguém mais diria a ela quando falar e quando permanecer em silêncio agora que nada mais a prende. E isso se relaciona muito de perto com a maneira como Ronit se comporta em Hendon em um primeiro momento, agindo intempestivamente pelo simples prazer de chocar a comunidade que a feriu. Mas a personagem cresce com o decorrer do livro e é possível ver que a Ronit que começa a narrativa em Nova York não é a mesma que chega ao final dela.

“I’ve spent a long time proving that this isn’t so. I’ve spent a long time insisting that no one else can tell me when to speak and when to remain silent. So much so that it’s hard for me to tell when I want to be quiet”.

“Eu passei muito tempo provando que isso não é verdade. Eu passei muito tempo insistindo que ninguém mais poderia me dizer quando falar e quando calar. Tanto que é difícil dizer quando quero ficar quieta ”.

O mesmo pode ser dito a respeito de Esti e Dovid. Esti age passivamente diante de boa parte dos acontecimentos, até que decide tomar a iniciativa de se comunicar com Ronit a respeito de seus sentimentos. É Esti, também, quem precisa lidar com outra reviravolta na narrativa, e como isso mudará sua vida para sempre, além de colocar às claras para Dovit o que aconteceu entre ela e Ronit. Dovit, ainda que possa parecer um empecilho para o relacionamento de Ronit e Esti em um primeiro momento, é construído de maneira delicada e sensível e também tem os próprios demônios com os quais lidar. O filme em que o livro é baseado não parece perder muito tempo com Dovid, mas sua presença na trama é de suma importância para o desfecho de Esti e mostra que mesmo um homem de destaque em uma comunidade pode estar lutando uma batalha de quem ninguém tem a menor ideia.

Um ponto negativo da história é que em nenhum momento a autora fala especificamente sobre o fato de Esti ser lésbica e Ronit, bissexual — teria sido muito mais valioso em termos de representatividade se isso tivesse ficado explícito em algum momento e não deixado apenas nas entrelinhas. Tal fato acaba por comprometer o sentimento de veracidade ao final do livro. Disobedience soa muito mais como uma história sobre deixar para trás tudo aquilo que lhe é familiar em nome da liberdade de ser quem se verdadeiramente é do que uma trama sobre o relacionamento proibido entre duas mulheres criadas na fé judaica como o filme a ser lançado dá a entender. É uma história construída com delicadeza e sensibilidade sobre religião, amor e identidade, e sobre como é difícil sentir-se diferente e inadequado dentro do lugar que você conhece como lar. Em Ronit podemos ver aquela que teve coragem de quebrar as correntes e voar para longe em busca de sua própria felicidade, Esti e Dovid decidiram ficar e tentar. Disobedience é uma história tocante sobre as escolhas que fazemos e como elas interferirão em nossas vidas de maneira permanente, cabendo a cada um entender e aceitar o tamanho da batalha que está escolhendo lutar.

“And all we have, in the end, are the choices we make.”

“E tudo o que temos, no final, são as escolhas que fazemos.”


*A arte em destaque é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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