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III: Os ciclos como forma de construção e libertação na música de BANKS

Uma das vozes mais marcantes do cenário indie pop, Jillian Rose Banks, popularmente conhecida apenas por BANKS, trouxe em seu mais recente álbum, III, as marcas de uma experimentação intensa com novas sonoridades. São as batidas e os ritmos que carregam a profundidade característica da artista, mas que agora contribuem, ainda, para tornar as músicas — já com letras intrinsecamente confessionais — cada vez mais íntimas.

E é nessas letras que BANKS muitas vezes nos revela uma franqueza como as entradas de um diário, como ela descreve algumas de suas músicas. Sempre carregadas de temáticas como relacionamentos, sentimentos, sexualidade e autoestima, as composições da cantora falam de forma nua e crua de tabus e elementos delicados. E um dos aspectos mais recorrentes e marcantes dentro de suas músicas são os relacionamentos — nem todos sendo exemplares dos mais saudáveis.

A primeira vez que tive contato com BANKS foi através de “Gemini Feed”, um dos singles de seu álbum anterior, The Altar. O tom de confissão que a cantora despeja dentro da canção foi suficiente para conquistar meu coração relutante em ceder para um estilo com o qual eu, na época, ainda não era acostumada. O refrão ecoante traz elementos com os quais eu ainda não tinha sido confrontada até então. A primeira frase retoma a temática divina ressonante em seus álbuns anteriores, Goddess e The Altar, mas é com o elemento do casamento que o choque acontece: um relacionamento que já era intenso e avançado a ponto de falar-se em casamento, mas que revela, também, uma tentativa de diminuir o outro. Quando BANKS canta “convinced me other people they don’t care about me” [“me convenceu de que outras pessoas não se importam comigo”], artifícios como a manipulação e o controle das relações interpessoais tornam-se visíveis. “Gemini Feed”, tornou-se, para mim, uma música que discute de forma didática um relacionamento abusivo logo após o seu fim.

Quando, em III, BANKS finalmente abraça o empoderamento que tanto tenta alcançar e sobre o qual discute tanto em The Altar, a sensação é a de encontrar uma tranquilidade muito maior dentro da tormenta que são os graves intensos e o pop eletrônico e experimental da artista. Suas letras, no entanto, apesar de menos escurecidas, ainda carregam uma melancolia e profundidade, como os resquícios de um naufrágio após a descida da maré baixa. The Altar é a tempestade, mas III é a avaliação do que restou depois dela.

A presença de relacionamentos tóxicos se mostra ainda muito evidente na batida lo-fi de abertura do CD. “Till Now”, que abre os trabalhos do álbum, condensa diversos sentimentos, e BANKS nos traz a contraposição do grave e do agudo preenchendo a música antes da entrada da percussão e um vocal que une fúria e melancolia. “Você mexeu comigo até agora”, ela repete, como um aviso de que dali para a frente aquilo não vai mais acontecer — apesar de ainda sentir falta de diversos aspectos da relação danosa, abrindo espaço para uma percussão que entra como uma forte declaração de guerra a esses sentimentos. Uma das marcas mais evidentes dessa declaração de independência está presente, inclusive, no primeiro single do CD, a canção “Gimme”. Com batidas muito características de seu estilo, BANKS declara o que quer que seja feito e o que deseja que esteja presente. Se em The Altar ela já falava sobre tomar as rédeas e empoderar-se, a música de abertura dessa nova era retoma isso de maneira ainda mais efusiva.

Muitas vezes, quando o assunto “término de relacionamento” entra em pauta, muito se fala sobre corações partidos, superação e “o próximo passo”. O que pouco se discute — mas BANKS aborda de diversas formas — é o quanto cada uma dessas pequenas quebras pode ser responsável por marolas mais significativas nos aspectos psicológicos das pessoas envolvidas. E é em “Contaminated”, a balada principal do seu último álbum, que a exaustão, a dor e o arrependimento se manifestam de forma mais visceral, destacados pela leve rouquidão do timbre da cantora. Na música, ela discute um amor que já nasceu contaminado, uma relação que envolvia promessas e expectativas que não poderiam ser cumpridas. “Você subestimou a escuridão”, ela canta, evocando com a vocalização carregada de elementos eletrônicos a dor desse tipo de construção.

“And to think you would get me to the altar
Like I follow you around like a dog that needs water
But admit it that you wanted me smaller
If you would have let me grow
You could have kept my love”

“E em pensar que você me levaria até o altar
Como se eu fosse te seguir como um cachorro que precisa de água
Mas admita que você me queria menor
Se você tivesse me deixado crescer
Você teria mantido meu amor”

O que precisa, todavia, ser destacado fortemente, são as sobreposições de conflitos utilizadas por BANKS: ao mesmo tempo em que discute coisas que já passaram, discute, também, a saudade que lembrar traz, ao mesmo tempo que ainda deixa claro que não irá mais voltar a esse tipo de relação que, ao que todas as suas letras indicam, fazia mais mal do que bem. É dentro deste âmbito de relações interpessoais que se encontra a canção “Sawzall”, que serve como uma outra lente sobre um relacionamento passado. Na canção BANKS fala que, talvez, ela tenha rompido com este par não porque não devessem mais estar juntos, mas sim porque a pessoa estava deprimida — e ela não sabia e não pôde, à época, fornecer as ferramentas para ajudar. Nesta canção ela reflete sobre os problemas de não enxergar os sinais, contudo em momento algum ela deposita o fardo da culpa sobre si mesma.

Em vez disso, a cantora recorre a uma batida mais delicada e sobreposições de vozes infantis, que emulam a ausência do julgamento que as crianças têm sobre as próprias atitudes. “Eu te disse que sinto muito.” “Eu sei que você sente”, ecoam as vozes de criança. Ao fim, pede perdão por não ter sido capaz de ver o que estava acontecendo na época.

Apesar de ter seus graves como uma característica tão marcante de sua estética, em III BANKS traz novos elementos de delicadeza em suas músicas, como acontece nas canções “Look What You’re Doing to Me” e “Hawaiian Mazes”, por exemplo. “Look What You’re Doing to Me”, o segundo single do álbum, contrasta fortemente com o primeiro (“Gimme”) ao trazer uma melodia mais alegre, como uma forma mais leve de olhar para relações, uma experimentação sonora que também acontece em “Alaska”.

Quando em “Hawaiian Mazes” a sonoridade é ainda mais delicada, temos uma música que transporta o ouvinte para uma tarde quente e introspectiva. Essa música, em especial, traz os reflexos da necessidade que a cantora teve de tirar um tempo para si após a turnê de The Altar. Os elementos naturais como pano de fundo, uma batida mais leve e a exploração eletrônicas típica do trabalho da cantora aparecem, também, em “If We Were Made of Water”. Nesta canção, BANKS declara o seu remorso sobre como findou um relacionamento: não há apenas a tristeza e a frustração, mas também o desgaste e a exaustão de lidar com uma relação que demandava mais energia do que ela conseguiria lidar naquele momento.

Em diversos momentos ao longo do álbum é possível perceber os elementos de exaustão que são comuns ao fim de relações. A artista explora as dinâmicas desgastantes decorrentes da incerteza desses momentos. São nas músicas que retomam os graves fortes que observamos os momentos mais explosivos dessas construções temporais. Em “Stroke”, por exemplo, BANKS fala sobre sua relação com um narcisista, e como o papel relegado a ela dentro dessa dinâmica era de suprir o ego dessa pessoa. Logo em seguida, temos as fortes batidas de “Godless”, que retoma a recorrente temática do que é divino, mas, agora, desvirtuado. O “deus” da música é o próprio amor, e a pessoa para quem BANKS “ora” é, segundo a própria música, ateia.

“Propaganda”, a décima faixa do CD, conta com uma das letras mais fortes de todo o álbum e fala sobre situações em que o envolvimento é tão grande que não é possível se desvencilhar sem ajuda. “Propaganda” é um pedido de socorro que ecoa por todos os refrões; com baixos associados às vocalizações ao fundo, há o reflexo de uma mente barulhenta que não tem paz. A faixa seguinte, “The Fall”, é uma continuação dessa situação de desespero, mas com uma autorreflexão da própria situação: o eu-lírico atua como uma voz que se dirige a si mesma, mas observa de um ponto de vista mais distante. São destacados elementos de amadurecimento contínuo ao longo da música, onde ela percebe no que errou e onde cresceu, a pressão que esse florescer carrega, bem como as cicatrizes. Para fechar o álbum, “What About Love?” é o desenrolar de uma linda balada que carrega, ao mesmo tempo, melancolia e esperança. Dentro de todas as dores, dentro de todos os ciclos de sofrimento e renascimento, fica a pergunta daquilo que realmente impacta mais: E o amor? Com a gravação da voz de sua sobrinha falando “eu te amo”, BANKS conclui III com uma mensagem de esperança e experimentação de novas formas de amar, fechando o ciclo dessas lutas internas e também dessa fase de sua vida.

O álbum, como um todo, carrega uma visão bem diferente de suas gravações anteriores. Neste, somos apresentados a uma Jillian Banks mais velha, agora com 30 anos, que analisa e observa tudo o que aconteceu consigo de um ponto de vista mais afastado. Mais do que superar, este álbum destaca a necessidade de reavaliar as coisas que talvez não tenham dado tão certo, mas que foram marcantes para que algumas conclusões fossem realizadas, e, assim, chegar a certas situações com olhares diferentes. Mais do que apenas cantar sobre a necessidade de ver-se livre das amarras de relacionamentos tóxicos, III nos apresenta o fim de um ciclo de amadurecimento e o entendimento do espaço que é ocupado e o que é necessário para ultrapassar essas barreiras. Com esse álbum, BANKS evoca a necessidade de encarar esses fantasmas do passado e as ruínas do naufrágio para entender como reconstruir e seguir em frente.


** A imagem em destaque é de autoria da editora Ana Vieira