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Saga Fundação: quando o conhecimento é a melhor arma

Isaac Asimov (1920-1992) é considerado um dos nomes mais importantes do gênero ficção científica na atualidade. O escritor e bioquímico norte-americano, nascido na Rússia, é a mente por trás de diversos livros e contos renomados, como O fim da Eternidade — uma história que mistura romance e viagem no tempo, considerada a sua melhor obra —, O Cair da Noite — passado em um planeta alienígena com sete sóis onde sempre é dia, até que a noite aparece pela primeira vez e a loucura toma conta de tudo —, e Eu, Robô — famosa história em que as três leis da robótica foram criadas, mais conhecida por sua adaptação cinematográfica lançada em 2004, com o ator Will Smith.

De toda a obra do autor, os livros que têm chamado a atenção nos últimos tempos são os que compõem a Trilogia da Fundação. A série terá sua longa e complexa história adaptada para o formato audiovisual pela Apple TV+, com previsão de estreia para 2021. O trailer fantástico despertou em mim um grande interesse pela obra — que conta com três livros originais e mais quatro adições posteriores —, me levando a devorar em poucos dias as cerca de 530 páginas da Trilogia.

Além da escrita fantástica de Asimov e da história peculiar que se passa ao longo de gerações de personagens e em diversos planetas, o mais marcante para mim foi a mensagem transmitida do começo ao fim da obra: “A violência é o último refúgio do incompetente.”

É difícil explicar de forma curta e simples a temática da Trilogia da Fundação, por ser uma história bastante complexa. Apesar da complexidade, entretanto, não se trata de uma trama de difícil compreensão. A história se passa em um futuro muito distante, em que a civilização humana saiu da Terra há tanto tempo que nem se lembra mais qual dos planetas então existentes é a antiga “Terra”. Através de viagens interestelares, nós dominamos o espaço e colonizamos incontáveis planetas pela galáxia, que passaram a formar uma organização estável e pacífica, sob o controle do chamado Império Galático. No entanto, a força política, militar, tecnológica e cientifica do Império está em decadência, e apenas um homem sabe disso: Hari Seldon.

Seldon é o gênio por trás de uma ciência chamada psico-história, uma mistura de sociologia, psicologia e matemática, que permite prever o futuro da civilização. Essa ciência utiliza análises estatísticas para determinar o que irá ocorrer com a “massa” populacional, não sendo capaz de prever ações individuais.

É com o auxílio da psico-história que Hari Seldon faz uma descoberta assustadora: o Império Galático não só irá cair, como a humanidade viverá 30 mil anos de barbárie em toda a galáxia e o conhecimento científico será perdido. Apesar do futuro sombrio, Seldon cria um plano para diminuir esse tempo para apenas mil anos, através do desenvolvimento de uma Enciclopédia que conterá todo o conhecimento cultural e científico da galáxia e o preservará até o surgimento de um Segundo Império. Para que isso possa ser posto em prática, é criada a chamada Fundação, uma organização que deve proteger a enciclopédia e o plano de Seldon, localizada em um planeta específico, e uma segunda Fundação, localizada no extremo oposto da galáxia.

Conhecimento: a arma mais poderosa já criada pela humanidade

Apesar de a Trilogia da Fundação ter sido publicada originalmente a partir de 1942, ela possui uma narrativa fluida, instigante, fácil de ler e, acima de tudo, atual. São abordados, através de gerações de protagonistas — cada passagem de tempo tem um protagonista diferente —, questões relevantes até os dias de hoje, que nos levam a refletir sobre política, religião, ciência, humanidade, e a tão falha noção de moralidade, consolidada na oposição entre o bem e o mal.

A Fundação, no início da história, é desacreditada, inferiorizada e subestimada por ser um planeta de cientistas e enciclopédicos — o que remete muito ao contexto sociopolítico do nosso ano de 2020 e a pandemia que vivemos. Entretanto, ela utiliza o conhecimento de todos os tipos de ciências (história, psicologia, matemática, sociologia, física, astronomia etc.) para se manter viva e segura, enquanto seus inimigos utilizam armas, guerras e derramamento de sangue para tentar destruí-la, sem sucesso.

Não pense que você encontrará nessa obra batalhas de naves especiais, tiros de canhão e raios laser, ou lutas físicas. Na Trilogia da Fundação, as guerras são lutadas e vencidas por meio de estratégia e conhecimento. Isso pode ser facilmente entendido logo no começo da trilogia, quando somos apresentados ao lema da Fundação: “A violência é o último refúgio do incompetente.”

Logo, a infalível Fundação começa a se tornar temida e cada vez mais poderosa e influente. Por possuir conhecimentos que outros planetas não possuem, ela passa a controlar os governos e populações também através desse conhecimento. Imagine viver em um planeta muito frio e inóspito, e que o conhecimento para criar uma máquina de aquecimento que facilitará a vida da população está concentrado em uma única fonte. Não é difícil entender o motivo de muitos planetas decadentes, e até mesmo planetas poderosos, mas sem certos tipos de cientistas, se dobrarem perante a Fundação.

Capas dos livros da Trilogia da Fundação

Aqui chegamos em um outro trunfo fantástico da obra: já que nem sempre acompanhamos a visão de um personagem de dentro da Fundação, ou que concorde com o plano Seldon, também enxergamos outros pontos de vista sobre a “Fundação salvadora da humanidade”. Foram esses outros pontos de vista que me fizeram questionar o quão ética é a forma como a Fundação age. O controle dessa organização tem o objetivo de autoproteção e da manutenção do plano de Seldon, o que a princípio pode parecer algo bom. Entretanto, será uma troca justa, quando a contrapartida é a perda da liberdade individual, o controle da educação e das crenças? É aceitável que alguém decida por você o que deve fazer de sua vida, e além disso, se sua vida é mais ou menos importante para que a sociedade continue funcionando?

Para proteger o plano e diminuir o tempo de barbárie da história humana, essa organização tem o poder de interferir e manipular a vida de planetas inteiros. Um dos melhores exemplos disso ocorre logo no início da história, quando a Fundação cria uma religião para controlar as populações ao redor de si. E nós sabemos muito bem do que as pessoas são capazes de fazer, ou não fazer, por causa de uma crença religiosa cega.

A Fundação lança mão do monopólio dos conhecimentos científicos para manter os outros povos submissos e garantir sua dominação. Não pense que ela compartilha sua ciência por aí — ela apenas disponibiliza seus aparelhos, máquinas e objetos tecnológicos, mas o conhecimento para fazê-los e os profissionais para construí-los pertencem somente a ela. Ela detém também o controle da educação, e quem já estudou sobre ditadura sabe o enorme perigo que isso representa.

Além disso, a Fundação é formada por pessoas, e tudo que envolve pessoas é cercado de intrigas, tensões internas, opiniões contrárias e disputas de poder. Seus líderes podem ser depostos e outros assumirem seu lugar. Apesar de todos sempre terem o desejo de manter o plano de Seldon funcionando, cada grupo pode ter uma ideia diferente sobre como fazer isso. Com base nisso, a forma como a Fundação age muda ao longo das décadas. Em determinado momento ela utiliza a religião como controle; em outro, o comércio; depois, o conhecimento tecnológico — e quem sabe até mesmo o controle mental? Até mesmo seu lema pode ser flexibilizado. Sempre é bom lembrar que violência física não é a única forma de violência.

Onde estão as mulheres na Trilogia da Fundação?

O único ponto negativo desta obra é a falta de representatividade — infelizmente, algo não muito inesperado se tratando de um livro de 1942. Há muito poucas personagens femininas e, no quesito protagonismo, eu diria que só existem duas. Apesar de ambas serem personagens fantásticas, muito inteligentes e que movimentam a história, participando ativamente da ação, elas ainda parecem estar dentro do padrão “moça recatada do lar”. Sim, esta história se passa no futuro, em dezenas de planetas e com naves espaciais, mas ainda se espera que uma moça se porte adequadamente.

Ainda assim, é difícil dizer exatamente como é este mundo galático para as mulheres, já que há muito poucos exemplos para que possamos entender qual o papel feminino nesse universo de forma geral. Em uma breve cena, é dado a entender que há mundos em que as mulheres têm mais liberdade e independência e outros, menos. Uma questão que seria muito interessante de se explorar, mas que não passa de um comentário de uma única linha na obra. Quanto às duas mulheres protagonistas, além de dividirem seu protagonismo com homens, não costumam interagir com outras mulheres ou com muitos outros personagem que não sejam seus familiares, o que nos deixa com uma pulga atrás da orelha sobre como elas realmente são tratadas no mundo de Asimov.

Se há algo para nos consolar neste quesito é que, aparentemente, a adaptação televisiva irá trazer mais protagonismo feminino para a saga. Agora, é esperar para contemplamos essa obra na tela e torcer para ser uma produção tão reflexiva quanto o original.


** A arte em destaque é de autoria da editora Paloma.

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1 comentário

  1. Tenho que admitir que saber dos abusos de Asimov contra mulheres em convenções e encontros de ficção científica e o fato de ele achar que mulher não tinha lugar dentro da ficção científica mataram meu gosto pelo autor. Reconheço a importância dele e tal, mas é como uma bofetada na cara de cada leitora dele saber que ele era conhecido como O Beliscador, de tanto que ele apalpava e passava a mão em mulheres. 😕

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