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De scream queens a agentes da violência: uma análise da recepção do cinema de horror produzido por mulheres

A presença feminina no cinema de horror é quase tão antiga quanto o próprio gênero, inclusive quando se fala a respeito da cadeira de direção. Em 1903, Alice Guy-Blaché dirigiu o curta-metragem Faust et Méphistophélès, que reimaginava a narrativa de Goethe. Além dela, Lois Weber é autora de Suspense (Suspense, 1913), título que pode ser considerado um precursor do home invasion. Contudo, como a importância de ambas começou a ser comentada há pouco tempo, é comum a impressão de que a direção feminina é algo atual nesse estilo de cinema.

Apesar disso, é possível destacar exemplos diversos em múltiplos períodos da história. Na década de 1950, Ida Lupino filmou O Mundo Odeia-me (The Hitch-Hiker, 1950), um dos seis exemplares de horror que integra a lista da BBC dos 100 Melhores Filmes Dirigidos por Mulheres. Além dela, durante o boom do slasher, Amy Holden Jones e Rita Mae Brown uniram forças para levar às telas O Massacre (The Slumber Party Massacre, 1982), um longa que debocha abertamente dos lugares-comuns do subgênero e quebra diversas das suas regras. Se partimos para o exploitation, Stephanie Rothman tem no currículo dois filmes sobre vampiros, A Vampira de Veludo (The Velvet Vampire, 1971) e O Rastro do Vampiro (Blood Bath, 1966). E, mesmo no cinema mainstream, as produções femininas conseguiram destaque por meio de Quando Chega a Escuridão (Near Dark, 1987), de Kathryn Bigelow, Cemitério Maldito (Pet Sematery, 1989), de Mary Lambert e Psicopata Americano (American Psycho, 2000), de Mary Harron.

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Blood Bath, 1966

Entretanto, mesmo que alguns desses exemplos sejam populares, a sensação de surpresa do público ao descobrir que um longa-metragem do gênero tem a assinatura feminina persiste. De certa forma, isso pode ser explicado pelas temáticas abordadas na “nova safra” do horror feito por mulheres. Dos filmes citados, salvo O Massacre, os demais são estrelados por homens. Mesmo A Vampira de Veludo, que em um primeiro momento parece ser sobre Diane (Celeste Yarnall), acaba assumindo abertamente o ponto de vista de Lee (Michael Blodgett) no segundo ato. Desse modo, as questões femininas ficavam em segundo plano até um passado recente, algo que tem mudado conforme mais diretoras entendem que não se trata apenas de ocupar espaços. Mesmo que isso seja muito importante, a presença de mulheres no cinema de gênero precisa vir acompanhada de histórias que dialoguem com os seus receios e é exatamente isso que diversas produções feitas entre 2011 e 2023 se propõem a fazer.

Embora não seja possível determinar qual foi o primeiro longa a trazer esse tipo de enfoque, O Babadook (Babadook, 2014) e Precisamos Falar Sobre o Kevin (We Need To Talk About Kevin, 2011) podem ser apontados como exemplos deste movimento. Dirigidos, respectivamente, por Jennifer Kent e Lynne Ramsey, ambos discutem a maternidade e esbarram em questões como a culpa e a ideia de que mães deveriam passar por cima de todas as suas vontades em prol dos filhos. Porém, devido ao espaço que O Babadook e Precisamos Falar Sobre o Kevin dão para a exploração do psicológico das protagonistas, não é incomum que ambos sejam categorizados como drama ou suspense, ainda que caibam perfeitamente no que se entende como horror.

Primeiramente, é importante ressaltar que o suspense é um elemento do horror e não um gênero em si mesmo. Entretanto, diversas pessoas usam o termo como uma forma de afastar os longa-metragens que elas consideram ricos em conteúdo daqueles que, supostamente, seriam inferiores. Logo, trata-se de um nome gourmet e de uma separação elitista. Além disso, uma definição generalista do horror seria que ele usa medos primários para provocar respostas emocionais, se valendo da capacidade humana de temer o que desconhece. Portanto, é comum que a ameaça apresentada nos filmes não seja palpável, o que é notável em O Babadook. Isso acontece porque o horror utiliza elementos que são familiares, mas adiciona a eles a estranheza, transmitindo a sensação de que existe algo fora do lugar e criando a ansiedade — o tal suspense —, algo que Precisamos Falar Sobre o Kevin consegue fazer muito bem.

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Babadook, 2014

Outro aspecto que precisa ser considerado quando se fala sobre gênero é a ideia de que ele é algo fixo, uma visão que o cinema de horror rejeita abertamente. Isso pode ser ilustrado pelos seus diversos subgêneros, que frequentemente pegam emprestado elementos de outros tipos de narrativas. Por exemplo, a comédia de horror provoca estranhamento por usar símbolos normalmente associados ao pavor como elementos cômicos, proporcionando o riso ao invés do susto. Por outro lado, o horror cósmico se vale de elementos da ficção científica, como a ideia de que um monstro poderia destruir todo o universo em questão de segundos, o que dialoga com o medo da insignificância humana. Dessa maneira, a fluidez do horror permite que ele incorpore características de qualquer outro estilo se a história estiver pedindo isso, o que contribui para a confusão por parte do público e, em alguns casos, da própria crítica. Contudo, é preciso entender que a função do gênero é classificatória e voltada para as vendas, de modo que ele não deve ser entendido como uma prisão, mas sim como uma forma de deixar claro para os espectadores que tipo de temas eles podem encontrar em uma história e o cinema de horror feminino da década passada entende bem essas questões. Porém, muitas vezes essa percepção não se estende à crítica, em especial àquela feita por homens, que frequentemente questionam o valor dessas obras enquanto pertencentes ao estilo.

Nesse sentido, cabe destacar o longa Boa Noite, Mamãe (Ich seh, Ich seh, 2014), dirigido pela dupla Severin Fiala e Veronika Franz. Com 85% de aprovação no Rotten Tomatoes e popularidade suficiente para receber um remake estadunidense em 2023, o filme conta com o desejado selo de Certified Fresh, algo que para o público parece ser um atestado de qualidade. Entre os 31 top critics que analisaram Boa Noite, Mamãe, é possível encontrar duas críticas negativas, ambas escritas por homens. Uma delas, publicada na Slant Magazine, delimita uma imagem bastante equivocada da mãe (Susanne Wuest) devido ao seu trabalho como modelo, atribuindo inclusive a decoração da casa à sua necessidade de controle do envelhecimento e desejo pela perfeição, algo que não poderia estar mais distante da real motivação para as bandagens cobrindo o rosto da personagem. Esse tipo de julgamento, bem como o desejo expresso pelo crítico de que o longa abordasse os “efeitos corrosivos da preocupação com a aparência”, está ligado exclusivamente ao fato de que a protagonista é uma mulher. Assim, o texto ignora que o horror de Boa Noite, Mamãe não vem da figura da mãe, mas sim da ideia de maternidade compulsória e da relação conflituosa com os filhos, discussões que o filme traz com eficiência, ainda que elas não sejam expressas discursivamente. Portanto, não se trata de “falta de ambição”, como o autor sugere, mas sim de uma proposta diferente da que ele esperava. É importante pontuar que expectativas não devem ter lugar na análise fílmica, visto que as obras precisam ser discutidas pelo que efetivamente oferecem e não com base em especulações de como poderiam ser melhoradas caso os diretores tivessem outras visões do tema. Embora tudo isso possa parecer óbvio, quando se fala em filmes de horror que tratam de questões femininas, por vezes, predomina a sensação de que esses pontos precisam ser reafirmados porque as análises dão voz a argumentos dessa natureza.

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We Need To Talk About Kevin, 2011

Isso pode ser ilustrado por Nanny (Nanny, 2022), de Nikyatu Jusu. Após repercutir em festivais, o longa recebeu diversas avaliações de top critics no Rotten Tomatoes, o total de 41. Entre elas, é possível encontrar cinco críticas negativas e três delas foram escritas por homens, sendo as de maior destaque veiculadas no Daily Beast e no The Playlist. Primeiramente, cabe comentar que a do Daily Beast destaca que “Nanny finge ser um filme de horror de verdade, algo que ele definitivamente não é”. Diante dessa afirmação, vale retornar brevemente ao enredo do longa-metragem: Aisha (Anna Diop) é uma imigrante senegaleza contratada para cuidar da filha de um casal novaiorquino. Enquanto isso, o seu próprio filho precisou ficar no Senegal até que ela conseguisse dinheiro o suficiente para manter os dois nos Estados Unidos. Assim, Aisha é frequentemente assombrada por essa ausência e, gradualmente, uma entidade violenta começa a invadir os seus sonhos e a sua realidade. A partir desse resumo é possível perceber que Nanny se vale de um dos medos humanos mais básicos: a morte corporificada por criaturas místicas, algo presente no cinema de horror desde o lançamento de Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens, 1922). Porque, então, haveria a necessidade de fingir se os elementos que servem ao propósito classificativo estão presentes? Na verdade, o incômodo provocado por Nanny vem de outro lugar, muitas vezes não admitido abertamente, e, então, um suposto sacrifício da tensão em prol do drama é apontado como o motivo para a insatisfação.

A crítica do The Playlist é um pouco mais explícita quanto a essas questões. Para o autor, Nanny tenta enfeitar o que seria um filme de drama com “baboseiras sobrenaturais”, de modo que, quando o longa se entrega aos seus elementos de horror, isso faz com que eles soem deslocados, inclusos somente para que seja possível vender a produção com maior facilidade em um “mercado pós-Jordan Peele, frase que carrega um tom racista. Logo, o incômodo parece ser muito mais com o fato de que Nanny toca em questões de imigração e deixa transparecer a forma como os Estados Unidos, mesmo nas suas camadas mais progressistas, se incomoda com a presença de estrangeiros. Dessa maneira, não existe deslocamento nas “baboseiras sobrenaturais” porque durante todo o filme elas são gradualmente inseridas e existe uma escalada natural. Primeiramente, elas se manifestam por meio de alucinações auditivas e de sombras nas paredes e posteriormente pela presença da entidade, o que torna o filme mais violento, ainda que ele nunca exponha sangue e vísceras.

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Nanny, 2022

Portanto, parece haver uma incapacidade de compreender que o sobrenatural surge em tela para expressar algo que está no interior das personagens femininas, como a depressão e o luto em O Babadook. E sempre que um longa-metragem lida com monstros já conhecidos para tratar temáticas femininas e feministas, ele encontra resistência na parcela masculina da crítica. De encontro a isso, é possível citar Garota Sombria Caminha Pela Noite (A Girl Walks Home Alone At Night, 2014), de Ana Lily Armipour, que apesar dos seus impressionantes 96% de aprovação e do selo de Certified Fresh, recebeu três críticas negativas entre os 47 top critics, todas elas assinadas por homens. Entre os textos, o que mais chama a atenção foi publicado no Chicago Reader. Mesmo contando com apenas um parágrafo, ele consegue demonstrar incômodo com o discurso de Amipour. Para o autor, a personagem principal, A Garota (Sheila Vand), funciona como um ataque metafórico ao “chauvinismo iraniano”, uma percepção que não demanda muito esforço porque está presente na sinopse do filme. Além disso, o crítico afirma que não considerou o longa muito assustador devido à “falta de uma narrativa de suporte” e ao fato de que as “imagens pretensiosas” contribuíram para que ele se distraísse.

Aqui, cabe destacar que títulos com assinatura masculina sem um enredo elaborado conseguem a aprovação dessa parcela da crítica e um dos maiores exemplos é O Farol (The Lighthouse, 2019), de Robert Eggers. O longa pode ser resumido à exploração da tensão entre dois faroleiros em uma ilha isolada. Se observamos a sua sinopse oficial, o único elemento a ser adicionado é a busca pela resolução dos mistérios do local. Esse resumo tem exatas quatro linhas, duas a mais do que Garota Sombria Caminha Pela Noite. Outro aspecto que aproxima os dois títulos é o fato de que ambos são filmados em preto e branco e se valem de jogos de luz e sombra. Mas, mesmo em pesquisas demoradas, não é possível encontrar uma crítica destacando que esses recursos foram usados para criar “imagens pretensiosas” em O Farol. Na verdade, a escolha é bastante elogiada, inclusive no texto do próprio Chicago Reader. Assim, esses argumentos acabam se parecendo apenas com um subterfúgio para criticar um longa-metragem que retira as mulheres da posição de vítimas que precisam ser salvas para colocá-las como predadoras, tornando-as menos vulneráveis.

Se deixamos de lado as criaturas sobrenaturais e o medo do desconhecido, o tom presente nas análises permanece sempre que um longa retrata uma mulher que adota a postura de caçadora implacável. Nesse sentido, cabe citar Vingança (Revenge, 2017) e Bela Vingança (Promising Young Woman, 2021), dois exemplares do subgênero rape and revenge. Apesar de pertencerem ao mesmo estilo de cinema, os filmes seguem caminhos bastante diferentes para questionar a mesma coisa.

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A Girl Walks Home Alone At Night, 2014

No caso de Vingança, que pertence também ao movimento do Novo Extremismo Francês, não faltam sequências violentas. Entretanto, ao contrário dos longas produzidos no auge do rape and revenge, que aconteceu durante a década de 1970, existe construção de personagens, em especial de Jen (Matilda Lutz), mas as motivações de Coralie Fargeat são frequentemente alvo de questionamento. Nesse sentido, a crítica do The Times oferece alguns elementos interessantes para análise. A sua frase de abertura é uma pergunta: “um filme poderia ser feminista e misógino ao mesmo tempo?”. A resposta para isso é bastante óbvia: não. Porém, para elaborar um pouco mais, é importante destacar que as duas características não coexistem em Vingança, mas essa leitura do longa é comum pela maneira como Jen é construída. Durante o primeiro ato, ela é retratada como alguém frívolo e um pouco irritante. Além disso, a principal informação que temos sobre a personagem é que ela está naquele local isolado por ser amante de um milionário. Portanto, uma vez que os amigos de Richard (Kevin Janssens) se juntam ao casal e nós vemos Jen dançando de forma sensual ou desfilando com roupas curtas, o objetivo de Coralie Fargeat é fazer uma provocação e essas escolhas servem para testar a empatia do público. Tais elementos desafiam quem assiste a manter a sua ideia de que a culpa pelo estupro nunca é da vítima e eles foram colocados em Vingança para causar desconforto, não para reforçar algum tipo de visão misógina. Isso porque no rape and revenge, historicamente, é bastante comum que a ideia de violação da inocência seja usada como forma de estabelecer um laço de empatia entre o espectador e as protagonistas. Logo, ao criar uma personagem que conhece a sua sexualidade e as formas de explorá-la para obter vantagens, Fargeat e Matilda Lutz abrem mão dessa possibilidade e quem assiste precisa simpatizar com Jen porque essa é a coisa mais humana a se fazer e não porque ela não merecia ser estuprada devido à sua “pureza”.

Assim, ao contrário do que o crítico do The Times sugere, Vingança não é uma “isca para pervertidos” e o empoderamento não vem das “nádegas desnudas” de protagonista, mas sim da ideia de que, independente da sua figura ou das suas escolhas de vida, mulheres merecem ter o seu corpo respeitado. Usar a violência estilizada para fazer isso abre um diálogo interessante com o passado do rape and revenge, especialmente com o longa A Vingança de Jennifer (I Spit on Your Grave, 1978), um título muito interessado na exploração fetichista do sofrimento. Além disso, existe a subversão de alguns aspectos desse longa, visto que ele usa a nudez da personagem principal como forma de atrair olhares masculinos e em Vingança somente Richard aparece completamente nu, o que deixa claro quem é o público de Coralie Fargeat e serve para esclarecer que ao contrário do que a crítica aponta, ela não tem interesse em “atrair pervertidos”.

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Revenge, 2017

É interessante destacar que enquanto o longa francês envereda por um caminho gráfico e pouco preocupado com o realismo, Bela Vingança se recusa a tirar os pés do chão ao discutir a cultura do estupro e todos os aspectos que contribuem para a sua persistência. Devido à sua popularidade, ele recebeu 71 avaliações de top critics. Duas das negativas foram escritas por homens e o texto publicado no Wall Street Journal faz um movimento dissonante em relação aos demais artigos citados. Isso porque o autor não tece nenhum comentário depreciativo a respeito do conteúdo do filme e se concentra nos seus aspectos técnicos. Entretanto, para ele, estes pontos esvaziam o discurso pela estilização, visto que Bela Vingança adota um visual feminino do figurino de Cassie (Carey Mulligan) à construção do cenário. Assim, parece haver um desejo oculto de que Emerald Fennell recorresse a um tom solene e a uma estética sóbria para discutir essa temática, algo que não é exigido de títulos com a assinatura masculina. Nesse sentido, cabe citar Irreversível (Irreversible, 2000), de Gaspar Noé, um longa extremamente estilizado, inclusive na sua estrutura narrativa. Porém, ele é elogiado pelos seus aspectos formais mesmo contando com uma cena de estupro excessivamente longa e desnecessária para a continuidade da trama. Mais uma vez, fica evidente que o incômodo está ligado ao que é feminino, visto que Irreversível adota um visual sujo que também o distancia da solenidade que o autor do Wall Street Journal parece acreditar que a temática demanda.

Existem diversos outros exemplos de filmes de horror dirigidos por mulheres que foram criticados devido à sua estilização e eles estão espalhados em diversos subgêneros. Da comédia de horror de Anna Biller em A Bruxa do Amor (The Love Witch, 2016) à “desordem estrutural” proposta por Prano Bailey-Bond em Censor (Censor, 2022), sem deixar de lado o extremismo imagético de Julia Ducournau no coming-of-age Raw (Raw, 2016) e a ironia sombria de Fresh (Fresh, 2022), de Mimi Crave. Todos esses longas receberam avaliações negativas de homens e foram categorizados como pertencentes a outros estilos de cinema devido às suas escolhas formais e discursivas. Contudo, mesmo que todos esses exemplos sejam capazes de levantar debates interessantes, vale manter o foco na comédia de horror por se tratar da fusão de dois gêneros estigmatizados no contexto contemporâneo, em especial quando unem forças ao invés de repelir um ao outro.

De encontro a isso, A Bruxa do Amor é um prato cheio para análises de recepção. Centralizado na figura de Elaine (Samantha Robinson), uma bruxa jovem e bonita que vive em um apartamento vitoriano, o filme de Anna Biller atualmente tem 95% de aprovação no Rotten Tomatoes e conta com 37 avaliações de top critics. As três críticas negativas são assinadas por homens e cabe mencionar a do Seattle Times, que sequer faz questão de disfarçar o seu incômodo com a abordagem feminista de Biller que, além da direção, assina o roteiro, a produção, o figurino, a cenografia e a trilha sonora do longa-metragem. Isso fica claro pelas frases de abertura e encerramento do texto: “O filme. Feminista. Mais Esquisito” e “A Bruxa do Amor é uma paródia? Certamente se parece com uma. Mas eu não tenho certeza que Biller pretendia que fosse”. 

Sobre a abertura do texto, um olhar rápido deixa claro que a subversão dos elementos de horror associados à bruxaria provocam incômodo no autor. Primeiro, porque as mulheres retratadas como bruxas são, em geral, mais velhas. Também não é incomum que elas tenham uma aparência desgrenhada ou camponesa, o que caminha na contramão da imagem de Elaine. Porém, ao observar a personagem, o seu discurso e a sua busca pelo homem da sua vida, é fácil perceber as motivações de Anna Biller para as suas escolhas estéticas. Inclusive, Elaine chega a verbalizar em mais de um momento do filme que construiu a sua figura para corresponder à fantasia masculina. Logo, a maquiagem, os apliques no cabelo e as roupas sensuais estão de acordo com este elemento discursivo, que também dialoga com a certeza de Elaine de que, para encontrar o amor, basta dar aos homens o que eles querem. Ou seja, essa mulher impossível e que só existe na imaginação masculina. Assim, não é preciso fazer uma análise muito profunda da forma e do conteúdo para notar a efetividade do diálogo entre os dois. E isso não está ligado somente à figura de Elaine, mas também à construção dos cenários, como a casa de chá para mulheres, marcada pelos tons pastéis de rosa e pelo branco, indicando a ideia de pureza, romantismo e ingenuidade normalmente associada à feminilidade, algo que também é discutido por Biller ao longo do filme, em especial quando ela coloca na boca da sua protagonista que homens são criaturas frágeis e capazes de se quebrar caso uma mulher seja assertiva. Levando esses pontos em consideração, é possível perceber que A Bruxa do Amor atingiu os seus objetivos ao ser chamado de “filme feminista mais esquisito” por um homem.

The Love Witch, 2016

Sobre a questão da paródia, mais uma vez, fica explícita a má vontade na interpretação do conteúdo do longa. A intenção de Anna Biller ao usar elementos populares para fins cômicos é nítida desde o momento em que Elaine entra pela primeira vez no seu novo apartamento, um ambiente propositalmente exagerado e repleto de símbolos reconhecíveis. Ademais, a diretora brinca com recursos do senso comum, como as poções que a protagonista oferece aos seus interesses amorosos ou a feira medieval organizada pelos demais membros do coven de Elaine. Essa última serve para demonstrar que existe uma mentalidade estagnada que acredita que a bruxaria deixou de existir a partir do momento em que a Igreja Católica queimou as mulheres acusadas da prática. Inclusive, é interessante notar que Biller questiona essa ideia ao fazer com que os policiais procurem um especialista no assunto. Na cena em questão, Griff (Gian Keyes) escuta do professor que os covens continuam existindo em diversas cidades populosas dos Estados Unidos, deixando ainda mais clara a intenção de comédia com as noções enraizadas sobre a prática como algo que ficou parado no tempo e não faz mais sentido na atualidade. Logo, é óbvio que Anna Biller filmou uma paródia e sabia disso. Caso contrário, qual seria o sentido de resgatar esses elementos e filmar em technicolor? Porém, para o crítico parece mais fácil duvidar da capacidade da diretora do que tentar entender os seus objetivos e escolhas.

Por fim, a crítica do Seattle Times ainda questiona uma cena específica de A Bruxa do Amor na qual os personagens vão a um clube de striptease para, supostamente, discutir questões feministas. Embora chegue a ser bobo explicar a ironia dessa sequência, existem algumas camadas interessantes a serem exploradas e que parecem ter escapado do entendimento do autor. Na cena em questão, Elaine está acompanhada de Barbara (Jennifer Ingrum) e Gahan (Jared Sanford), os líderes do seu coven. Ainda que os dois dividam o título de Grande Mestre, fica claro que Gahan é considerado o mais poderoso e, portanto, é ele quem toma as decisões importantes. Durante a sequência, é possível notar o incômodo de Elaine a respeito da maneira como o líder a toca e fala com ela. A partir disso e do trecho no qual ele ensina as aspirantes a bruxas que o seu maior poder está na sexualidade, fica evidente que Anna Biller quer discutir como é perigoso para mulheres ter o seu desejo moldado pelo olhar masculino — o que dialoga diretamente com a sequência na qual Elaine fala para Trish (Laura Wadell) que para ter um bom relacionamento basta não se impor. Além disso, o discurso de Gahan também encontra ecos na insatisfação da protagonista com o resultado dos seus feitiços: mesmo que ela consiga ter sucesso e faça com que os homens fiquem aos seus pés, Elaine passa a sentir repulsa no segundo em que isso se concretiza porque os personagens masculinos amam uma imagem e não uma mulher. Logo, a adoração é pela fantasia e ela não é realmente amada.

A partir de todas essas análises, é possível perceber que a parcela masculina da crítica observa os longa-metragens feitos por mulheres de uma maneira preguiçosa e pouco empenhada, muito pela falta de interesse em extrapolar as próprias vivências para entender o que as diretoras desejam comunicar. Inclusive, outra manifestação recorrente do machismo nessas análises é a comparação com produções masculinas, algo que aconteceu com Censor em mais de uma crítica escrita por homens. Nos textos veiculados pelo The Times e pela Slant Magazine, a direção de Prano Bailey-Bond foi comparada à de Brian de Palma, Peter Strickland, David Amito e Michael Lacini. Entretanto, em todos os casos, o que ela entrega foi inferiorizado pelos autores, que deixam transparecer a ideia de que o conteúdo do longa-metragem seria melhor aproveitado nas mãos de qualquer um desses diretores mesmo que Censor fale sobre um trauma sofrido por uma mulher. Assim, extrapolando a questão temática e formal para falar um pouco sobre a sociedade, a produção feminina no cinema de horror gera incômodo porque pela primeira vez nós estamos vivendo um momento no qual ela repercute, disseminando uma visão que se afasta da hegemônica. Ou seja, as mulheres estão contando as próprias histórias em um gênero que sempre foi o seu território. Em outros momentos, nós éramos a indefesa Faye Wray nas mãos do ameaçador King Kong, sempre à espera de resgate. Agora, nós somos agentes da violência e capazes de acertar as contas com os nossos algozes por conta própria, o que traz uma representação mais justa e até mais diversa das nossas vivências. Assim como em todos setores da sociedade, a perda de espaço e de controle da narrativa é a raiz do incômodo masculino com o que as diretoras de horror têm entregado para o público. Portanto, à medida que elas compartilham as suas perspectivas para que elas afetem outras pessoas, parece existir um desejo de punição que se manifesta nessas análises aparentemente imparciais e inofensivas dos seus longa-metragens. É importante que estejamos atentas ao tipo de crítica que consumimos e àquilo que as suas entrelinhas nos dizem, visto que o desejo patriarcal de nos manter confinadas à posição de donzelas em perigo permanece vivo e operante.