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As mulheres de Elena Ferrante

Não faz muito tempo, o mundo (ou pelo menos a pequena parte dele que se importa com literatura) parou para comentar a reportagem que teria “desmascarado” Elena Ferrante, escritora italiana que publica de maneira anônima há vinte e cinco anos.

A reportagem do jornalista Claudio Gatti partiu da comparação de planilhas de pagamento da editora Edizioni e/o cedidas por uma fonte anônima e de registros imobiliários públicos para traçar paralelos entre o sucesso comercial de Ferrante e as transferências efetuadas pela editora à tradutora italiana Anita Raja. Assim, o nome de Raja passou a estampar os principais jornais do mundo como a verdadeira identidade de Ferrante. Sobre isso, escrevi mais detidamente no texto Encaixotando Elena.

É difícil escrever sobre a obra de Ferrante sem falar de sua escolha pelo anonimato. Em uma carta datada de 1991, anterior à publicação de seu primeiro livro, Ferrante disse a seus editores: “eu acredito que os livros, uma vez que tenham sido escritos, não tenham qualquer necessidade de seus autores. Se eles têm algo a dizer, vão encontrar cedo ou tarde seus leitores”.

Ferrante argumentou em uma entrevista concedida por escrito a um veículo português que seu trabalho pretendia chamar a atenção para a unidade original entre autor e texto e para a autossuficiência do leitor, que poderia deduzir dessa unidade tudo aquilo que fosse necessário.

James Wood, um dos críticos literários mais respeitados do cenário atual, escreveu sobre Ferrante na revista New Yorker e se desdobrou em elogios: “ela é autora de romances memoráveis, lúcidos, ferozmente honestos”. A construção de personagens femininas é um dos pontos altos de sua obra. Em cada um de seus livros, somos surpreendidos por mulheres complexas, que desafiam qualquer estereótipo: mulheres fortes, imperfeitas e complicadas, com as quais nos identificamos em alguma medida. A banalidade da vida é apresentada de maneira torcida, com suas infinitas nuances, e a autora joga uma nova luz sobre temas como identidade, maternidade, casamento e amizade. Subverte a lógica que atravessou o mercado editorial por séculos, com sua divisão de “literatura feminina”, chamada de chick lit.

Elena Ferrante

As capas originais da Tetralogia Napolitana são uma provocação: vemos a imagem de um casamento no primeiro volume; um abraço entre um casal mais velho no segundo; uma mulher com uma criança no colo no terceiro e duas meninas vestindo asas de borboleta, no quarto. Todos estão de costas para o leitor e de frente para o mar ou para paisagens idílicas. Mas, se as fotos nos levam a crer que estamos diante de romances como Sabrina, o conteúdo cortante destoa. Desde sempre, esse foi o imaginário popular em relação ao que seria um “livro feminino”: histórias açucaradas sobre o amor e a vida doméstica.

Ferrante vem nos lembrar, como Clarice Lispector e Virginia Woolf também o fizeram, de que as coisas são muito mais complicadas do que supõe o leitor desavisado. Sua obra revela as camadas mais obscuras das mulheres que representa com muita honestidade.

Aqui, uma breve retrospectiva de seus romances e de suas protagonistas:

L’Amore Molesto [Um Amor Incômodo]

No primeiro livro da autora, publicado na Itália em 1992 (ainda inédito no Brasil), a narradora é Delia, uma mulher que acaba de perder a mãe, Amália, que se afoga no dia do aniversário da filha — o livro começa com a frase: “A minha mãe se afogou na noite de 23 de maio, dia do meu aniversário”.

Essa história é sobre maternidade e identidade, sobre um amor feroz e ambivalente, que funde e repele na mesma medida. O primeiro romance de Ferrante pode ser considerado um suspense psicológico. Delia retorna a Nápoles, cidade onde cresceu, por ocasião da morte da mãe e revisita o próprio passado: “Eu não havia esquecido de nada, mas não queria me lembrar”. Retornar às nossas memórias mais remotas e à cidade onde passamos a infância pode ser uma aventura vertiginosa, que Ferrante narra com maestria. O livro é dedicado à mãe da escritora.

Como o romance ainda não saiu no Brasil (a editora Intrínseca comprou os direitos e deve publicá-lo em breve), vou evitar spoilers. Se quiserem ler mais, recomendo a resenha de David Lipsky publicada no New York Times em 2006. É o meu texto favorito sobre o livro. [Atualização: a edição brasileira foi lançada em 2017.]

L’Amore Molesto foi adaptado para o cinema em 1995 por Mario Martone, prestigioso diretor italiano, e indicado à Palma de Ouro em Cannes.

Dias de Abandono

Em seu segundo livro, publicado na Itália em 2002, Ferrante consegue nos desconcertar novamente ao narrar a história de Olga, uma mulher que é abandonada pelo marido após quinze anos de casamento: “Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar.” — assim começa o romance.

Como escrevi em minha resenha sobre o livro, Ferrante nos apresenta, com riqueza de detalhes, todo o desespero dos dias de abandono. Acompanhamos a quase loucura que a protagonista vivencia quando tudo muda de lugar em sua vida. O marido se apaixona por outra mulher, dezoito anos mais jovem. Que posição Olga ocupa nessa nova configuração? Ela não é mais a esposa, deixou de trabalhar para acompanhá-lo, para cuidar da casa e dos filhos, Ilaria e Gianni. Agora não tem ao que se apegar: as crianças carregam traços do marido, são como as cinzas de um casamento que não existe mais. Tem dificuldade de encontrar um espaço para acomodá-los: são seus, mas também dele. Ressente-se da maternidade, que lhe cobra afazeres diários em meio aos dias tortuosos de luto.

Diferentemente do romance anterior, este se passa em Turim. Mas Olga se refere a Nápoles constantemente: a cidade ressurge em suas memórias de infância e na figura da “pobre coitada”, vizinha que foi abandonada pelo marido e definhou aos poucos, até enlouquecer. Terminou se afogando (como Amália, no primeiro livro) e se transforma em um fantasma para Olga, que teme por si mesma.

É uma história dolorosa e bonita sobre perda — não apenas do marido e da condição de esposa, mas de seus próprios contornos, de sua própria identidade. Mas é também um percurso de resgate, de reencontro. Ilaria, filha de Olga, é uma personagem comovente, cujo papel é essencial para a história. Ferrante retorna ao tema da maternidade e representa uma complicada, porém amorosa, relação entre mãe e filha.

Dias de Abandono foi publicado no Brasil em 2016 com tradução de Francesca Cricelli pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros. O romance também foi adaptado para o cinema na Itália em 2005. Olga foi interpretada pela ótima Margherita Buy.

A Filha Perdida

O terceiro romance de Ferrante, publicado na Itália em 2006, chega às livrarias do Brasil neste mês pela editora Intrínseca (tradução de Marcello Lino). A narradora é Leda, uma professora divorciada que vive em Florença, mãe de duas filhas que passaram a viver em Toronto com o pai. A nova situação é experimentada com ambivalência. Com a ausência das filhas, Leda percebe que se sente livre pela primeira vez em vinte e cinco anos. Porém, ao tirar férias e viajar para a costa, quando poderia usufruir dessa liberdade, Leda se torna obcecada por uma mãe e por sua filha pequena, Nina e Elena (como na tetralogia, a criança aqui também é chamada de Lenù), que observa na praia. Nápoles ressurge em suas memórias de infância, através dos fluxos de pensamento que percorrem caminhamos surpreendentes.

Não vou dizer mais para não comprometer a experiência de quem ainda não leu o romance, mas quem quiser pode ler um trecho do livro (em português) publicado pela Folha de S. Paulo.

Tetralogia Napolitana

Os quatro volumes da tetralogia napolitana foram lançados na Itália entre 2011 e 2014. O primeiro, A Amiga Genial, foi publicado no Brasil em 2015, com tradução de Maurício Santana Dias (escrevi sobre o livro aqui). O segundo volume, A História do Novo Sobrenome, foi lançado no começo deste ano. O terceiro, A História de Quem Foge e de Quem Fica, sai no final deste mês.

Os quatro romances nos contam a história de duas mulheres, Elena Greco, a Lenù, e Rafaella Cerullo, a Lila, desde a infância em Nápoles até a velhice. É a saga de uma amizade, de como a vida de uma está espelhada na da outra. A narradora, Elena, se constitui a partir da presença (e da ausência) da amiga Lila — e a recíproca é verdadeira, embora a gente tenha apenas uma visão parcial dos fatos, uma vez que a história é narrada em primeira pessoa e nunca temos acesso aos escritos de Lila, apenas do impacto e dos vestígios que esses escritos deixaram em Elena.

A tetralogia é, sobretudo, uma história de amor, com todas as suas contradições. Elena e Lila são personagens memoráveis, que já se tornaram parte do imaginário popular contemporâneo. Quando chegamos à última página, fica difícil nos despedir.

* * *

Através de sua habilidade com a palavra escrita e de uma observação aguda e sensível do mundo, Ferrante consegue nos transportar para diferentes histórias com uma força que poucas vezes encontramos nos livros. Seu mérito maior, porém, é nos levar para os lugares mais obscuros e esquecidos dentro de nós mesmos.


** Ilustração por Thiago Thomé.

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3 comentários

  1. Talvez eu tenha ido com muita sede ao pote, mas estou no segundo livro de Elena e sua escrita me incomoda. Li A Filha Perdida e estou lendo Dias de Abandono e fico com aquela sensação de não gostar das protagonistas, achando tudo meio arrastado.

    Me passa uma noção de páginas e mais páginas de infelicidade, mas sem dizer muita coisa, sabe? Tava pronta para amar a autora e me frustrei um pouco, é normal? Ou estarei eu presa num estilo literário muito romantizado?

    1. Oi, Carla. Acho que é uma percepção justa. Cada uma de nós tem suas preferências de leitura e acho que isso faz parte. Não existe unanimidade. Um abraço.

    2. Leia a Amiga Genial. Muito superior a todos os outros, realmente, nao tao bons. Parece qye ela estava se aquecendo para escrever o livro da vida dela. A tetralogia é sensasional’ impecável. Garanto que vai amar.

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