“Você me disse uma vez que eu tenho um coração rebelde. Eu não sei se isso é verdade, mas acredito que você viu algo em mim que vive dentro de você também”. É com essas palavras que Klara e Johanna Söderberg começam a música “Rebel Heart” e abrem Ruins, o quarto e mais recente álbum de estúdio das irmãs como o duo First Aid Kit. A dupla folk-country sueca completa em 2019 doze anos de estrada autoral e, num percurso que remete a outros artistas millennials que tiveram a internet como palco de estreia, esbarra em vivências particulares desta geração.
As irmãs começaram a carreira de forma despretensiosa, quando Johanna convidou Klara para cantarem juntas “Down in the River to Pray”, parte da trilha sonora do filme E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? (O Brother, Where Art Thou?, no original). A combinação de suas vozes agradou as duas irmãs, que passaram a cantar juntas em casa e nas ruas, como no metrô de Estocolmo e também em frente de lojas de bebidas. O nome “kit de primeiros socorros” foi ideia de Klara que, no auge dos 13 anos, encontrou a expressão em um dicionário e percebeu que o termo descrevia bem o que ela almejava com suas músicas: reparar e curar as pessoas. As irmãs então aumentaram o alcance de suas vozes ao colocarem seus covers no site MySpace, a grande plataforma daquela época. Em 2007, passaram a compartilhar também suas próprias músicas, entre elas “Tangerine”, o primeiro single de First Aid Kit, que logo estourou nas rádios suecas e foi listado como uma das melhores músicas do verão daquele ano.
Em 2008, as irmãs reuniram as músicas disponíveis no MySpace e, com a produção do pai Söderberg, lançaram o primeiro EP do duo: Drunken Trees. Em meados do mesmo ano, as garotas se tornaram conhecidas em seu país e estrearam no YouTube com um cover de “Tiger Mountain Peasant Song”, da banda de rock americana Fleet Foxes. O vídeo chegou a Robin Pecknold, vocalista e guitarrista da banda, que compartilhou o conteúdo das jovens nas páginas do Fleet Foxes, o que culminou em uma grande estreia internacional para as duas jovens do subúrbio de Estocolmo.
No fim de 2008 elas assinaram com a gravadora inglesa Wichita, que relançou Drunken Trees em 2009, adicionando “Tiger Mountain Peasant Song” como uma faixa bônus. Neste meio tempo, Johanna abandonou o ensino médio e Klara nem sequer havia começado o nível de ensino quando partiram para sua primeira turnê internacional.
“E se o nosso trabalho duro terminar em desespero?”
Desde então, as duas irmãs aproveitaram todas as oportunidades: em 2010, lançaram seu primeiro álbum, denominado The Big Black and the Blue, cujo lançamento foi seguido por uma turnê com mais de 100 shows ao redor do mundo. No meio do caminho, conheceram e impressionaram grandes nomes do mundo da música, incluindo a grande Patti Smith, que cedeu às lágrimas ao assistir ao vivo a performance de sua música “Dancing Barefoot“ pelo First Aid Kit no Polar Music Prize de 2011, na Suécia.
Em 2012, mais um lançamento, desta vez chamado de The Lion’s Roar, um álbum aclamado pela crítica, com músicas que narram a entrada das irmãs na vida jovem adulta e que formaram trilha sonora de séries como Misfits e Bones e renderam ao duo indicações e prêmios. O terceiro álbum do First Aid Kit, Stay Gold, chegou em 2014, desta vez pela Columbia Records. Mais uma vez, as irmãs seguiram em uma grande turnê por diferentes continentes, participando de diversos programas de TV, prêmios da música e, por óbvio, ganhando cada vez mais reconhecimento.
Tudo parecia ouro enquanto as meninas cantavam a música que dava nome ao álbum, mesmo quando a letra já dava pistas do que se passava nos bastidores: “on our way through rugged land/ top of that mountain we wanted to stand/ with hearts of gold, with hearts of gold/ but there is only forward, no other way/ tomorrow is your hope at the end of the day/ and gold turns grey and gold turn grey/ what if our hard work ends in despair?/ what if the road won’t take me there?/ oh, I wish for once we could stay gold” [“Em nosso caminho através de terra escarpada/ no topo daquela montanha que queríamos ficar/ com os corações de ouro, com os corações de ouro/ mas o único caminho é para frente, não há outro/ amanhã é a nossa esperança no fim do dia/ e o ouro fica cinza, e o ouro fica cinza/ E se nosso trabalho duro termina em desespero? /E se a estrada não me levar lá?/ Eu gostaria de que apenas dessa vez, nós pudéssemos continuar boas”], canta o duo sueco.
“Hoje eu escalo a montanha mais alta que eu já escalei”
Em entrevistas, as irmãs contam que os seis anos de trabalho intenso (de 2009 a 2015) fizeram com que elas atingissem uma espécie de sobrecarga. As crises de choro fora e dentro dos palcos se tornaram mais comuns, as dificuldades de se expressar e até mesmo de compor foram ficando maiores. Ao atingirem uma situação insustentável de sobrecarga, ambas as irmãs se tornaram mais uma vítima da Síndrome de Burnout, sendo esta caracterizada por “um distúrbio psíquico caracterizado pelo estado de tensão emocional e estresse provocados por condições de trabalho desgastantes“. Uma pausa na carreira foi a decisão tomada por ambas as irmãs, que culminou no distanciamento entre elas — distanciamento este não apenas psicológico e comunicacional, mas também físico, visto que Johanna continuava em Estocolmo, enquanto Klara se mudava da Suécia para Manchester, Inglaterra, para viver com seu então noivo.
Em 2016, no entanto, as irmãs se aproximaram novamente, desta vez em razão do término do relacionamento de Klara. O baque na vida pessoal da irmã mais nova da família Söderberg não rendeu apenas a reaproximação com Johanna, mas também uma nova pauta para as obras do First Aid Kit. Se antes as irmãs costumavam compor juntas, nesta nova etapa do duo a primogênita deu espaço para a caçula expulsar seus fantasmas, contar suas histórias e narrar honestamente todo o processo de término.
Foi do processo do término do relacionamento, e após quatro anos desde o hiato das irmãs, que nasceu Ruins, o mais recente álbum da carreira do duo. O álbum foi gravado e produzido em Portland (EUA), para onde Johanna e Klara se mudaram juntas, a fim de se reconectarem, focar em suas composições e se distanciar um pouco dos últimos acontecimentos. “Today, I climb the highest mountain I have ever climbed/ And I turn, to look at ruins I had left behind/ And you, where were you so far removed from any truth/ I lost you, didn’t I?/ First I think I lost myself” [“Hoje, eu escalo a montanha mais alta que eu já escalei/ E eu me viro, para olhar as ruínas que eu deixara atrás/ E você, onde você estava tão longe de qualquer verdade/ Eu te perdi, não foi?/ Mas antes, acho que perdi a mim mesma”], as irmãs cantam na música homônima ao disco.
A honestidade, os desabafos, a passagem do tempo, a moralidade, as dores e as felicidades de um relacionamento — seja ele amoroso, familiar ou uma amizade —, as experiências e os sentimentos únicos dos vinte e poucos anos no século XXI: tudo isso permeia as palavras musicalizadas pelas duas irmãs. Ruins, principalmente, carrega em suas canções um ar triste e sombrio, acompanhando as emoções de Klara que afirma que o próximo álbum trará músicas mais felizes. Independente disso, seja com ouro ou cinzas, é possível afirmar que First Aid Kit, banda de ruínas e corações selvagens, é capaz de fazer aquilo a que se propõe: curar as pessoas — através de afagos, pausas ou expurgo.
First Aid Kit me acompanha desde 2011 e têm sido a dupla da minha vida, que faz exatamente o que Klara pretendia, me cura e repara nos momentos mais difíceis e serve de trilha pros momentos bons. No ano passado eu e meu namorado tivemos a sorte de realizar o sonho de vê-las ao vivo e foi tão mágico que eu não canso de ver os poucos vídeos desse dia. Obrigada por esse texto <3