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Dona de Mim: pop político, a consciência de negritude e o apoio entre mulheres

Se por si só a música “Dona de Mim” da cantora IZA se apresenta como uma representação do empoderamento feminino, seu clipe arremata com uma relação de interseccionalidade entre raça e gênero. A cantora assina o roteiro carregado de questões de negritude e feminismo, e através disso impõe sua presença na música pop, enquanto mulher negra, de maneira assertiva.

O primeiro álbum de estúdio da cantora que carrega o nome do single, Dona de Mim, lançado em abril deste ano, completa um trabalho que estourou no ano passado com o hit “Pesadão”. O sucesso da música a tornou conhecida em território nacional e foi responsável ainda por inseri-la no mercado da música e mais precisamente no hall mainstream do pop. Semelhante ao que Beyoncé e outras cantoras têm feito nos seus últimos trabalhos ao trazerem uma dimensão política para as suas canções e performances, IZA fala sem precisar dizer, tensiona situações e se coloca enquanto um corpo político.

O clipe de “Dona de Mim”, de outubro deste ano, transcende o sentido que poderia ser percebido à primeira vista com o simples consumo da canção em si. Sem precisar colocar em palavras na própria letra da canção, ela explora imageticamente situações do cotidiano que constroem em conjunto uma experiência diferente com o significado da canção. A cantora traça um processo de autoconhecimento e tomada de consciência de identidade, que a fazem por fim atingir uma situação de conforto na pele que habita, mesmo com as complexidades e ambiguidades que compreendem a existência de uma mulher negra. Sua experiência no clipe não é tomada como única, IZA fala de um “eu” ao mesmo tempo em que individualiza circunstâncias distintas, percorrendo diferentes contextos.

O caminho árduo narrado na música é pluralizado através das histórias de três personagens principais presentes no videoclipe. Mesmo em situações e lugares distintos, as mulheres negras ali representadas travam suas próprias batalhas do dia a dia, mas lidam de maneira semelhante com questões maiores e estruturais, como o machismo e o racismo.

A perseverança reiterada na letra “me perdi pelo caminho, mas não paro não” é demonstrada com mais força diante da resistência em meio às adversidades impostas no cotidiano das personagens. Desde as dificuldades em ser uma mãe solo, trabalhar com educação para pessoas pobres e negras, ou enfrentar um julgamento em meio a um sistema judiciário composto por hegemonias; todas essas questões se apresentam como pontos que ajudam a ativar em suas vivências uma consciência dos seus lugares no mundo.

No sentido trazido do clipe, a vida é conturbada, ambígua e por isso se apresenta como um campo de luta. Nesse meio se torna necessário o reconhecimento do valor e a reafirmação constante da força e do poder que existe na própria existência da mulher negra, o que é colocado a todo momento na canção através da própria reiteração do título da canção ou de trechos como “sei do meu valor”. A própria tomada de consciência permite uma mudança de postura, mais combativa, diante das situações.

“Sempre fiquei quieta, agora vou falar/ Se você tem boca, aprende a usar”, a opressão já não mais a cala ou a torna imóvel, ela encontra forças para combate-la. Este é um lugar conturbado e ambíguo, mas é um campo de luta, um lugar de potência à medida em que possibilita um olhar social mais empático e compreensivo. É um exercício de olhar para outro e se colocar nas situações que ele enfrenta, um sentido de dar a mão e ajudar a subir.

A relação de empatia que se expande para uma irmandade de força impressionante, é celebrada já no fim do clipe quando todas as personagens se encontram em uma igreja e admiram um coral composto por mulheres e comandado pela própria IZA. Ela entoa um hino que convoca as mulheres a se unirem e se colocarem enquanto protagonistas, enquanto donas das suas próprias vidas. Tendo a fé na irmandade que existe entre mulheres e a consciência do poder que essa relação traz como força motriz, é possível conquistar coisas maiores para o pessoal e o coletivo.

Como um efeito em cadeia, o sucesso de uma torna-se inspiração de outra, e por isso fonte de representação para as demais. IZA é isso: ao se localizar em um espaço historicamente hegemônico e mainstream, a cantora injeta política ao hit, que não precisa ser vazio de significado para bombar. A visibilidade alcançada pela sua performance ou por um conjunto de fatores que fazem o sucesso tornar-se o que é, dá poder e senso de luta ao discurso de mulheres negras que passam a se perceber donas de si, e, por isso, capazes de romper imposições e vencer opressões.

Emanuely Lima é uma jovem negra, estudante de Jornalismo e aspirante à escritora. Acredita que cada momento da vida pede uma trilha sonora, por isso é viciada em criar playlists aleatórias no Spotify que ajudam a embalar suas andanças de transporte público pelo seu país Recife-PE. É apaixonada por tudo que toca a alma. Quer viajar o mundo, contar todas as histórias que puder e transformar a vida de alguém através das palavras, como aconteceu com a sua.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!
** A arte do banner é de autoria da artista Raquel Gouvea.

2 comentários

  1. Parabéns pelo texto! Hoje em dia é extremamente difícil encontrar uma reportagem bem escrita e com uma reflexão tão profunda. Obrigado por melhorar o mundo.

  2. ParAbens pela reportagem tão bem escrita! Uma análise profunda e verdadeira que reflete o verdadeiro sentido da música.

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