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Meu Corpo é Político: à procura de identidade

Em um momento emocionante de Meu Corpo é Político, enquanto luta para resgatar seu nome social e vencer a invisibilidade, um dos personagens diz: “Meu nome é a minha história. Sem ele, eu não sou nada.” O rosto e a voz, tão reais quanto a história, são de Fernando Ribeiro, operador de telemarketing, morador da periferia de São Paulo e homem trans. Ele é um dos quatro protagonistas de Meu Corpo é Político, documentário escrito e dirigido por Alice Riff, recém-chegado ao circuito nacional.

Na mesma medida que serviu para definir esse trecho da trajetória de Fernando, a declaração também caberia nas vidas de Giu Nonato, Linn da Quebrada e Paula Beatriz, o trio que completa o foco central da trama. Essa é, antes de tudo, uma narrativa sobre busca de identidade e lugar no mundo para todos os envolvidos.

Vivendo no país que mais mata travestis e transsexuais, onde 90% das mulheres trans tem a prostituição como principal ocupação, é um respiro ver Paula Beatriz mostrar em tela que existem outros caminhos possíveis, ainda que em menor número. Seja como diretora de uma escola na periferia de São Paulo ou conversando com sua mãe durante o café da manhã, Paula, com seu cotidiano real e até mesmo banal, acena com a possibilidade de um futuro pacífico para quem está cansado de ter que travar uma guerra até para sair de casa todos os dias. O exemplo, mesmo que raro, de que existe vida após a intolerância é forte e importante.

De mesma relevância são os momentos onde Giu escreve sozinha em seu diário sobre tomar o seu corpo de volta para si ou quando acompanhamos Fernando encontrando os amigos e saindo para dançar em uma noite qualquer no centro de São Paulo. Nesse tipo de cena, aliás, vale salientar como a câmera aqui se torna um aparato quase invisível para quem assiste ao longa, passando despercebida e íntima dentro de quartos, varandas, boates e pontos de ônibus. É uma sensação incômoda e ao mesmo tempo familiar, quando observamos a vida de alguém se desenrolar na nossa frente de maneira tão semelhante à nossa, transformando o ordinário em algo digno de ser exibido em tela grande. Fazer da realidade uma espécie de ficção funciona aqui como ferramenta para gerar empatia na audiência, reação fundamental para a assimilação de tramas que buscam criar uma conscientização social como esta.

Mesmo assim, a lente ainda consegue capturar um ou outro olhar de estranheza dos transeuntes em cenas externas, tanto pela filmagem quanto pela visão do outro, que é tão diferente de si. Nesses momentos a importância da resistência guardada em cada ato pequeno, como andar nas ruas da cidade e voltar pra casa em segurança, fica ainda mais nítida.

No debate que ocorreu depois de uma das sessões de estreia no CineSesc, no dia 30 de novembro, em São Paulo, uma das atrizes-personagem afirmou que todos os nossos corpos, nós mulheres cis e trans, negros, homossexuais, bissexuais, travestis e todos os que estavam na plateia ali naquele dia, são corpos políticos, pois estar à margem da sociedade e resistir é um ato político. Essa noção é palpável na cena que mostra o ensaio do grupo de teatro de Linn da Quebrada, travesti e cantora cujo nome era o mais conhecido publicamente do elenco. Na época, ainda em ascensão, Linn dividia seu tempo entre os palcos e performances em pequenas casas de show de São Paulo e as aulas de atuação com adolescentes, que, no trecho mostrado, repetem uma fala invariavelmente feminista: “Mulher cis branca. Eu, mulher preta. Mas ainda assim, mulher.” Momentos depois, Linn canta: “Bicha estranha, louca, preta, da favela. Quando ela tá passando, todos riem da cara dela.”

É nessa intersecção entre a narrativa única, que só pode ser contada por quem veste aquela pele e sofre o que ela sofre, e a grande história universal sobre opressão do marginalizado, deslocamento, inadequação e até mesmo solidão do diferente, que o filme cresce e fica gigante demais para uma sala de cinema de 273 lugares. Meu Corpo é Político já foi exibido em festivais fora do país, ganhou visibilidade e está ocupando espaços no circuito de arte, mas precisa ser visto por muito mais gente.

Ao final, quando Paula conversa com o marido no telefone enquanto olha a cidade já se preparando para dormir, e responde que está tudo bem, mas que está com saudade, a vontade de quem assiste é responder o mesmo. Por aqui está tudo bem, ainda que exista muito a ser melhorado. Assistir a esse filme, emocionar-se com a vida real dessas pessoas e querer levar a sua mensagem adiante também é um ato político.