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Fique Comigo e o impacto dos papéis sociais na vida privada

Se você não gosta de livros tristes, não leia Fique Comigo. Publicado no Brasil pela editora Harper Collins depois de ser um dos livros selecionados da TAG Inéditos em 2018, Fique Comigo é o primeiro romance da escritora nigeriana Ayòbámi Adébáyò e é um livro profundamente triste — até as (poucas) coisas boas que acontecem na vida da protagonista vêm embaladas em tristeza. Mas esse não é um livro triste apenas pelo desfile de tragédias na história dos personagens. É um livro triste porque, como todo bom livro triste, Fique Comigo pisa no calo.

Assim que a história começa somos introduzidos ao casal de protagonistas, Yejide e Akin. E também, logo de cara, já sabemos que os dois não estão mais juntos. Fique Comigo é narrado em duas linhas temporais, pincelando presente e passado para apresentar todos os intrincados acontecimentos das vidas de Yejide e Akin, desde que se conhecem e começam a namorar, até a vida de casados e o colapso do relacionamento. Para narrar, Ayòbámi Adébáyò muito sabiamente escolheu intercalar capítulos narrados em primeira pessoa por Yejide e por Akin — dessa forma, conhecemos os pensamentos de cada um, e vamos mergulhando profundamente no mais íntimo do casal. Outra boa sacada da autora na forma de contar a história é o clima quase de suspense: esse é um livro para ser lido rápido, com uma inevitável sede de entender o que é que está acontecendo e como tudo aquilo vai acabar.

Qualquer sinopse de Fique Comigo corre o risco de ser insuficiente, tamanhas são as reviravoltas dessa trama cheia de nós, mas vamos com o básico. Yejide e Akin são casados há quatro anos e ainda não têm filhos. O peso da falta de filhos é gigantesco e essa é uma cobrança que eles sofrem diariamente, principalmente por parte da mãe de Akin. É essa cobrança, a obrigação imposta de que eles precisam ter filhos, que desencadeia toda a rede de tragédias, que envolve humilhação, depressão, morte, assassinato, traição, violência e muito sofrimento.

Existe uma forte crença na Nigéria, assim como em muitas outras culturas, que um casamento não é completo sem filhos. Eu não concordo; desconfio da ideia de que as pessoas devem ter alguma função específica para serem membros completos da sociedade. Acho essa uma ideia muito perigosa. Humanos são humanos e são dignos de respeito. No livro, eu quis questionar se é possível, nesse contexto cultural, que um casal seja feliz um com o outro, sem ter filhos”, diz Ayòbámi Adébáyò em uma entrevista para o The Guardian. Spoiler: não é. Ter uma questão cultural que influencia a história particular de personagens não é exatamente uma grande novidade na literatura. Mas, a autora de Fique Comigo usa esse recurso de uma forma perturbadora, levando essa influência até as mais catastróficas consequências.

“Amei Yejide desde o primeiro momento. Não tenho dúvida. Mas há coisas que nem mesmo o amor é capaz de fazer. Antes de me casar, eu acreditava que o amor podia tudo. Porém, logo descobri que ele não era capaz de suportar o peso de quatro anos sem filhos. Quando o fardo é pesado demais e o carregamos por muito tempo, até mesmo o amor se verga, racha, fica prestes a se despedaçar, e às vezes se despedaça de fato. Mas, mesmo quando está em mil pedaços aos nossos pés, não significa que não seja mais amor.”

Para começar, ainda que a exigência final seja a mesma para ambos os personagens — ter filhos —, a cobrança em cima de cada um é muito diferente. Para Akin, a pressão é para que ele pare de tentar conceber com apenas uma mulher (sua esposa, Yejide) e aceite adotar a cultura de casamentos poligâmicos, casando-se com uma segunda esposa. Aqui fica a ideia de que o problema é, e só pode ser, a mulher. Com a “substituição” de uma por outra, a questão poderia ser resolvida. Fica claro que o fato de que isso não precisa ser resolvido para Yejide: é importante que Akin tenha um filho para continuar sua linhagem; se Yejide quer ela mesma ter um filho ou não, isso pouco importa naquele contexto.

Já para Yejide, a pressão vai muito além. Afinal, há também a ideia tão absolutamente antiga e infelizmente ainda atual de que uma mulher só é completa quando é mãe; esse é o seu dever, sua obrigação. Apesar de não sabermos no início da história qual é o motivo para que Yejide não consiga engravidar, acompanhamos o tempo todo a culpa por essa infertilidade sendo depositada nela, pelos outros e também por ela mesma. Não é por falta de tentativas ou de vontade que a personagem não é mãe: tudo que Yejide quer é engravidar. O quanto esse desejo é algo que parte dela mesma e o quanto é um reflexo do que é cobrado dela não fica muito claro, é só um fato profundamente enraizado na vida da personagem, emaranhado em cada etapa de sua existência até a vida de adulta casada. E Yejide faz de tudo para engravidar. Além de exames e consultas médicas, ela se submete a todo e qualquer artifício apresentado por sua sogra ou qualquer outra pessoa — rituais, orações, jejuns, profetas e milagreiros. Mas, ela nunca engravida e sofre com isso o tempo todo.

“— Você já viu Deus em uma sala de parto parindo um bebê? Diga-me, Yejide, já viu Deus na maternidade? As mulheres fabricam crianças, e se você não consegue fazer isso então não passa de um homem. Ninguém devia chamá-la de mulher.”

Akin acompanha de perto todo esse sofrimento e só contribui para aumentá-lo. Primeiro, ele cede à pressão da família e aceita casar-se com uma segunda esposa, algo que Yejide deixou claro desde o início do relacionamento dos dois que ela não queria. Depois, ele observa enquanto Yejide passa por um quadro de gravidez psicológica, assumindo uma postura distante, mesmo com uma certeza absoluta de que ela não está grávida. Até que ponto Akin é responsável pelo sofrimento de sua primeira esposa (e da segunda também) é algo que o leitor só consegue entender com clareza ao final do livro — e é tão surreal que não vale a pena estragar com mais comentários.

De loucura em loucura, no meio de toda a tristeza causada pela pressão da família, a traição do marido e a falsa gravidez, chegamos em um ponto que Yejide realmente fica grávida. Ainda que isso esteja ligado a circunstâncias obscuras, em um primeiro momento, é uma notícia que traz felicidade: finalmente chega a tão esperada criança. Porém, a pressão não acaba quando Yejide consegue engravidar, só é transferida para uma outra esfera. Agora, o papel de Yejide é ser uma mãe perfeita. Nesse sentido, Ayòbámi Adébáyò trabalha com o papel reservado às mães pelos olhos alheios de uma cultura antiquíssima. É papel da mãe dedicar-se única e exclusivamente aos filhos. O bem estar das crianças deve ser sua total responsabilidade. É claro que estar disposta a seguir esse papel à risca não garante o bem estar de criança nenhuma no mundo. E é claro que isso não aconteceria em um livro tão triste quanto Fique Comigo.

Quando se torna mãe, Yejide precisa lidar com outra questão: a anemia falciforme, doença hereditária que ataca o sangue e não tem cura. Pouco comum no Brasil, a anemia falciforme tem casos frequentes na Nigéria; a própria Ayòbámi Adébáyò, apesar de não ser portadora da doença, carrega o gene que a transmite. A descoberta da doença dá início a um novo ciclo de dor e perda na vida da personagem, que vai acompanhá-la até as páginas finais do romance.

“Uma mãe deve estar vigilante. Deve estar pronta e disposta a acordar dez vezes durante a noite para alimentar seu bebê. Depois da vigília intermitente, ela precisa ser capaz de enxergar tudo com clareza na manhã seguinte, para que possa notar qualquer alteração em seu recém-nascido. Uma mãe não pode ter a visão embaçada. Deve notar se o lamento de seu bebê é muito alto ou muito baixo. Deve saber se a temperatura da criança aumentou ou caiu. Uma mãe não pode deixar passar nenhum sinal. Ainda tenho certeza de que deixei passar sinais importantes.”

Aos poucos, a autora vai desenrolando cada um dos mistérios da história e conseguimos entender como se encaixam todas as peças do quebra-cabeças infinito que é a vida dos personagens. Mais para a parte final do livro, finalmente descobrimos em detalhes o motivo que fez com que Yejide e Akin passassem todos aqueles anos sem filhos, as circunstâncias que levam Yejide a engravidar, o impacto da anemia falciforme na vida da família. Por mais que as resoluções para todas as questões sejam de arrepiar até o último fio de cabelo, o que me deixa verdadeiramente estarrecida é o silêncio de Akin.

Descobrir que o envolvimento dele é ativo, que ele sempre teve conhecimento total de tudo e deliberadamente escolheu deixar Yejide no escuro, sofrendo sozinha e carregando todas as culpas, me deixou sem ar. Porque, afinal, ele também tinha um papel social para cumprir e, como homem, não podia ser menos do que um macho viril. A saída mais fácil, a única saída que ele acredita ser plausível, é jamais admitir sua parte em tudo isso. Nem em uma esfera íntima, nem para a própria esposa.

É assustador. E triste, profundamente triste. Porque apesar de todos os plot twists salpicados pela autora no livro não fazerem parte da vida corriqueira de pessoas reais, as consequências de cobranças sociais e culturais na vida privada são uma verdade para todo mundo, em diferentes níveis. O que Fique Comigo faz é jogar isso bem na nossa cara. O convite que fica não é só o de enfrentar a tarefa dolorosa que é pensar no quanto essas cobranças impactam nossa própria vida, mas também o de encarar a questão de o quanto nós impomos essas cobranças nos outros.

Encerro com as palavras da própria Ayòbámi Adébáyò na já citada entrevista para o The Guardian:

Me interesso pela ideia de que as pessoas deveriam poder definir sua própria felicidade. Não é só sobre fertilidade; frequentemente nos dizem que precisamos disso ou daquilo para sermos felizes. Precisamos ser magros, ricos ou qualquer outra coisa. Mas talvez nós devêssemos decidir por nós mesmos o que é felicidade”.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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