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A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões

Desde que a Disney lançou A Pequena Sereia, em 1989, tornou-se praticamente impossível desassociar a figura de cabelos ruivos de Ariel das histórias de sereias. Por meio de sua icônica animação, os estúdios Disney conseguiram colorir com tons alegres e músicas inspiradas o sombrio conto escrito pelo dinamarquês Hans Christian Andersen onde uma sereiazinha decide trocar sua cauda, e sua voz, por pernas e a promessa de encontrar o amor verdadeiro nos braços de um humano. Agora, em 2019, é a vez de Louise O’Neill recontar essa famosa história em A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões, livro lançado no Brasil no já conhecido altíssimo padrão de qualidade da DarkSide Books.

O cerne de A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões é basicamente o mesmo que já conhecemos da animação que assistimos na infância e do conto original dinamarquês, mas a sereia em questão é Gaia. Seu nome de batismo é proibido no fundo do mar por ser um nome do mundo dos humanos e ter sido escolhido por sua mãe, uma sereia que, conta-se, se deixou encantar pelo mundo dos humanos, abandonou as filhas para viver na superfície mas acabou capturada e morta. Dessa maneira, a pequena sereia foi rebatizada pelo pai, o Rei dos Mares, com o nome de Muirgen, embora ela ainda pense em si mesma como Gaia. Prestes a completar quinze anos e receber permissão para subir à superfície, Gaia é considerada a sereia mais bela do reino — com seus longos cabelos ruivos e a cauda de um verde profundo, ela é cobiçada por todos os tritões do reino ainda que já esteja prometida em casamento a um deles. Dona de uma voz poderosa e límpida, Gaia é a joia mais reluzente da corte de seu pai e é sempre encarada por ele como apenas um cintilante bibelô de sua coleção.

A vida no fundo do mar em A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões não é feita de canções animadas e festas divertidas como no longa da Disney. Aqui, as sereias são vistas como meros objetos cuja função principal é ser o mais bela possível. Sendo assim, as sereias — principalmente as seis filhas do Rei dos Mares —, são obrigadas a costurar pérolas em suas caudas mesmo que isso cause a elas uma dor excruciante, passando agulha e linha por suas escamas, deixando-as em carne viva. Esse é apenas um dos diversos abusos que as sereias sofrem na corte do fundo do mar, visto que elas não têm permissão para fazer outra coisa que não seja embelezar-se para o rei e seus súditos, tentando conquistar um casamento que satisfaça os interesses do pai. As sereias não podem se aventurar para longe do palácio sem permissão e a existência de cada uma delas é entrelaçada às vontades do rei. É dessa maneira que Gaia se vê noiva de um tritão muitos anos mais velho do que ela, alguém que não ama, e presa em um sufocante relacionamento que nunca desejou.

A Pequena Sereia

No dia de seu aniversário, Gaia finalmente pode desbravar a superfície e é nesse dia em que ela coloca seus olhos pela primeira vez em Oliver, um homem que faz seu coração acelerar e a quem ela salva a vida quando o navio em que ele está naufraga. Desde o momento em que o salvou, deixando-o na areia da praia para ser encontrado, Gaia não para de pensar nele, entendendo-se apaixonada. Ao retornar para o palácio e para o noivo que não ama, Gaia se desespera por não conseguir aceitar sua realidade aprisionada. A pequena sereia passa os dias revezando entre o sofrimento por não ser humana para viver na superfície e as escapadas que dá até a praia para ver Oliver, vivendo em uma tristeza que transborda por meio da narrativa de Louise O’Neill. Como se não bastasse viver sob abusos constantes do pai, que sempre coloca as filhas umas contra as outras, instigando-as a competir para saber quem é a mais bela e preferida do rei, Gaia também precisa lidar com o sofrimento do amor não correspondido, a violência do noivo e as saudades da mãe que, no íntimo, ela não acredita que a tenha abandonado.

No mundo aquático de A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões, sereias são silenciadas diariamente, seus desejos são postos de lado em detrimento das vontades de uma sociedade patriarcal que, a grosso modo, não difere tanto assim de nosso mundo real. As sereias são colocadas umas contra as outras, são impedidas de aprender qualquer ofício e não possuem outra função a não ser serem “belas, recatadas e do lar”. Toda essa estrutura tem por objetivo afastá-las umas das outras, enfraquecendo-as e minando suas vontades. Uma vida de abusos é capaz de arruinar até o espírito mais forte, e é isso o que vemos acontecer na corte do Rei dos Mares. Suas filhas sentem medo do pai, tentam sempre manter o silêncio e os olhos baixos em sua presença pois “sereias tagarelas não são atraentes”, com o rei exigindo apenas a perfeição da parte delas. Elas se alimentam pouco, para permanecerem sempre magras, e vão dormir com o estômago doendo de fome em busca de um ideal de beleza estapafúrdio.

“Ali eu já costumava me perguntar por que minha mãe não tivera um final feliz. Talvez eles fossem reservados apenas às meninas obedientes.”

Mas Gaia tem outros planos para sua vida. Engolindo o medo que sente do pai e de ser repreendida, ela atravessa os mares até chegar à porta de Ceto, conhecida no reino como a Bruxa do Mar, em busca de ajuda. Gaia não aguenta mais viver prisioneira das vontades do pai, entrelaçada a um casamento com um homem que não ama e refém das dúvidas acerca do desaparecimento da mãe, e a fim de buscar respostas, ela faz a conhecida barganha com a bruxa: sua voz em troca de pernas e um virar de lua para conquistar o amor de Oliver e continuar a viver. A narrativa central de A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões pode até ser a mesma da animação da Disney e do conto de Hans Christian Andersen, mas de sua parte Louise O’Neill insere debates pertinentes ao século XXI; com o decorrer da trama a autora abordará temas delicados como misoginia, abusos físicos e psicológicos, homofobia e masturbação feminina. Em entrevista ao jornal Irish Times, O’Neill comentou que sempre quis inserir uma cena de masturbação feminina em um de seus livros e que escrever uma sereia descobrindo suas pernas — e vagina! — era um meio de mostrar que meninas também podem tocar seus corpos e que não há problema algum nisso.

Outro ponto importante da releitura feita por Louise O’Neill reside justamente em suas personagens femininas. O conto de Hans Christian Andersen não dá muita abertura sequer aos pensamentos de sua protagonista, algo em que a animação da Disney consegue se sair melhor, mas em A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões a narrativa vai muito além disso. O livro é escrito em primeira pessoa e por isso temos acesso a todos os pensamentos de Gaia, seus sofrimentos e desilusões, mas também podemos conhecer melhor suas irmãs, o relacionamento que existe entre elas assim como com sua avó materna. Ceto, a Bruxa do Mar, também tem um papel muito importante na trama do livro de O’Neill, atuando como um exemplo de body positive e mulher (no caso, sereia) dona de si e que os homens (no caso, tritões) temem justamente por ser muito mais poderosa do que eles. O desfecho de A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões bebe um pouco da fonte dos originais mas tem seu próprio plot twist, e ainda que tenha ocorrido de maneira muito rápida, não deixa a desejar e mostra que “ser genuína é a coisa mais importante que qualquer mulher pode fazer”.

“Agora eu sei que existe muito mais para conhecer lá fora, mais do que tudo aquilo com que sempre me disseram para me contentar.”

A releitura feita por Louise O’Neill não é uma simples história de ninar e em A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões a brutalidade e a dor contidas no original de Hans Christian Andersen retornam. Gaia não consegue andar com suas pernas humanas sem sentir uma dor imensa, tal como a sereiazinha escrita pelo dinamarquês. Os homens da história, tritões ou humanos, são cruéis e mimados, enquanto as mulheres, sereias ou humanas, são silenciadas por seus desmandos. No meio disso tudo, O’Neill ainda consegue inserir um pouco de folclore ao trazer para sua trama as Rusalka, ninfas da água da mitologia eslava que adquirem contornos mais dramáticos por meio da escrita da autora, mas são tão interessantes quanto importantes para o desenrolar do livro.

São inúmeros os pontos positivos do livro de Louise O’Neill: a autora foi capaz de costurar em um conto de fadas já conhecido as tristezas de mulheres silenciadas e a luta delas em busca de liberdade. Ainda que soe um pouco didática em alguns momentos, com diálogos um pouco engessados, isso não atrapalha o desenrolar da trama e muito menos sua mensagem principal, uma crítica à sociedade patriarcal em que vivemos usando como pano de fundo a corte do Rei dos Mares. Em sua narrativa, O’Neill fala sobre figuras de poder controladoras e misóginas, cultura do estupro, distúrbios alimentares e casamentos forçados sem ativar gatilhos sobre isso no processo. As personagens de A Pequena Sereia e o Reino das Ilusões carregam dentro de si dramas e dilemas verossímeis, o que faz com que a tristeza — e a verdade — contidas em suas páginas simplesmente transborde.

A Pequena Sereia

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a DarkSide Books.


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4 comentários

  1. Ótima resenha!.
    Ademais, seria legal se você sintetizasse mais para colocar no próprio site da Amazon, deixando uma menção ao seu site – para que os clientes te ajudem através do link associado (no caso, falo em menção pois a Amazon não permite links externos).
    Ademais, um cliente da Amazon meio resumiu o que você falou (inclusive com partes literais) e está divulgando na página do produto (a não ser, é claro, que o cliente seja você). Se não for, acho pertinente você dar uma olhadinha.
    Um abraço, Thay!

    1. Obrigada, Paulo! Dei uma olhada na resenha disponível na Amazon e não é cópia, eu e Sybylla (inclusive uma parceira do Valkirias) só tivemos visões muito semelhantes do livro. Mas, de qualquer forma, agradeço a gentileza. (=

    2. É que mentes brilhantes sempre pensam igual, Paulo.

      Além disso, eu já tinha lido o livro um mês antes do lançamento e só pude avaliar o livro na Amazon quando o ele foi lançado, no dia 21 de março.

      Aliás, Thay, excelente resenha. ♡

      1. Obrigada, Sybylla! Amei o que você escreveu sobre o livro, assim como a entrevista com a Louise!

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