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Por que assistir Feud?

“Rivalidades nunca se tratam sobre ódio. Elas se tratam sobre dor.”

Em um reino distante chamado Hollywood, o conto sobre a rivalidade entre as atrizes Bette Davis e Joan Crawford é célebre. Como toda história do gênero, ninguém sabe ao certo como começou. O que se sabe é que, independentemente dos motivos, a rivalidade entre elas foi alimentada como um monstro insaciável. “Ela dormiu com todos os atores com quem trabalhou na MGM, exceto com a Lassie. Eu acho que a senhorita Davis nunca teve um dia — ou uma noite — feliz na vida”. Declarações como essas incendiavam a imprensa e os fãs. Até hoje, há quem defenda sua preferida com unhas e dentes, gerando uma das maiores e mais acaloradas discussões entre fãs de cinema clássico: quem era melhor? Bette ou Joan?

Esse monstro insaciável teve seu grande banquete quando as arqui-inimigas rodaram o filme O Que Terá Acontecido a Baby Jane?. O filme e a história por trás dele só aumentaram o fascínio do público. Elas se tornaram, sem querer, ícones da cultura popular, citadas um número infinito de vezes em Ru Paul’s Drag Race, por exemplo. Esse fascínio chega até 2017 com a nova empreitada de Ryan Murphy, Feud, que se propõe a contar esse conto de Hollywood por outra perspectiva: a da misoginia.

Uma selva chamada Hollywood

Bette Davis e Joan Crawford foram vítimas e ao mesmo tempo transgressoras do sistema de estúdios. Para sobreviver a ela, uma verdadeira selva, era necessário ter caninos afiados, muita coragem e pulso. No caso das mulheres, essas características eram ainda mais importantes e Davis e Crawford as tinham de sobra. Hollywood nunca aceitou muito bem mulheres que se erguiam das opressões, por isso a rivalidade entre elas talvez tenha sido uma forma de jogar para debaixo do tapete os feitos dessas mulheres na indústria cinematográfica.

Mais do que hoje, Hollywood era um lugar de homens brancos e ricos. Eles ditavam as regras, e abaixava a cabeça quem quisesse garantir seu quinhão no final do dia. No caso das mulheres, a vida de atriz significava abrir mão de uma série de coisas, pois, ao ser contratada por um estúdio, você estava entregando sua vida a eles. Do direito sobre decidir seu corte de cabelo até plásticas e aulas para perder sotaques inaceitáveis, o estúdio era responsável por construir a persona da atriz, ou seja, o tipo de garota que ela seria. Era como ser marcada a ferro e fogo, e o estigma era para a vida. Era difícil livrar-se dele.

Nada disso garantia bons papéis: para consegui-los, era preciso espantar a concorrência e batalhar para se tornar a rainha do estúdio, porque a uma rainha sempre eram oferecidos os melhores roteiros da casa e os melhores salários. Joan e Bette conseguiram esse feito e foram, por muitos anos, as soberanas da MGM e Warner Brothers respectivamente. No entanto, todo reinado tem seu fim e, como na vida real, rainhas são substituídas. Era difícil criar ambientes de trabalho saudáveis quando novas atrizes poderiam tomar o seu posto, baixando seu valor de mercado. Assim, atrizes com menos rendimento tinham de ser substituídas por alguém que elevasse o moral do estúdio. Uma atriz cedia a coroa à outra para depois ser relegada ao ostracismo — era como funcionava Hollywood. Vou além: foi a maneira como o patriarcado se infiltrou no que deveria ser um veículo de divertimento e papel social.

Por coincidência do destino, Joan acabou indo trabalhar no estúdio onde Bette ainda reinava. Ela chegou a Warner Brothers e teve que enfrentar, por escolha própria, o que poucas atrizes do seu calibre se sujeitavam a enfrentar: um teste. Ainda que hoje seja muito comum, naquele período, grandes atrizes não passavam por testes. O nome da artista, uma vez que tivesse credibilidade, lhe dava direito ao papel, o que aumentava ainda mais a competição pelos papéis mais relevantes.

A luta de Joan Crawford pelo papel que reinventaria sua persona em Mildred Pierce mescla misoginia com competição feminina. Ela tomou essa atitude inesperada porque o diretor do filme, Michael Curtiz, havia rechaçado a ideia de que ela poderia interpretar uma mulher que se ergue da miséria e abre uma franquia de restaurantes. Curtiz depreciava tudo em Joan, mas principalmente sua aparência. Os ombros enormes da atriz, sua marca registrada, o incomodavam muito. E, por essas e outras, ele estava decidido a não lhe dar o papel. O teste, no entanto, mostrou a todos que Crawford era perfeita para viver a protagonista homônima. Mas para isso, ela teve que abrir caminho entre inúmeras atrizes que foram cogitadas para o papel, inclusive Bette Davis.

Ao encarnar Mildred Pierce, Joan provou à indústria que era uma grande atriz. Ela poderia ser tão boa quanto suas conterrâneas consideradas sérias. Além das garotas boas e más, Hollywood também segregava quem tinha talento ou não: Joan pertencia ao grupo daquelas que eram bonitinhas, mas cujo talento pouco se falava, como ela mesma declara em Joan Crawford, A Personal Biography:

“Muitas pessoas escreveram que eu era uma estrela, não uma atriz. Eles escreveram que Bette Davis era uma atriz E uma estrela, uma atriz de VERDADE.”

A relação entre Davis e Crawford foi permeada por dor. De um lado, Bette sofria por não se encaixar nos padrões de beleza vigentes da época; de outro, Joan correspondia aos padrões, mas nunca era considerada talentosa o suficiente para papéis mais profundos. Essa é uma pequena demonstração do que as perseguiu a vida inteira, ou seja, o desejo de alcançar uma perfeição inatingível; nada era suficiente. Com Mildred Pierce, Crawford renovou sua persona, inaugurando minha fase favorita em sua carreira, quando destrói homens poderosos em seus filmes.

Já Bette Davis trilhou um caminho diferente, porém parecido em diversos aspectos com a trajetória de Joan Crawford. Ela não começou a carreira cinematográfica na Warner Brothers. No começo dos anos 30, quando Davis foi contratada, a Warner rebolava muito para colocar mulheres como protagonistas em seus filmes. Isso não era visto como uma questão de machismo, apenas de estilo. Eles gostavam de dramas sociais, quase sempre ambientados na época da Depressão e Proibição. Não havia muito espaço para mulheres nas tramas, apenas como amantes troféu dos gângsters. Bette começou em filmes masculinos de crimes encarnando a versão feminina dos durões da Warner.

Em agosto de 1934, as coisas mudaram para a atriz. Depois de ser emprestada ao estúdio RKO para estrelar Escravos do Desejo, os patrões finalmente notaram o diamante que tinham nas mãos. Esse foi o primeiro grande filme de Bette, aquele que consolidou a imagem que ela carregaria ao longo da vida: a da mulher intensa e impiedosa. Se observarmos alguns títulos de seus filmes no Brasil, veremos que alguns têm uma conotação negativa: A Malvada, Nascida Para o Mal, A Filha de Satanás, Que o Céu a Condene, etc. Mesmo que os títulos em inglês sejam radicalmente diferentes, notem como em português eles já nos levam para uma ideia do que vem por aí. A malvada do filme só pode ser Bette Davis; é ela quem faz sempre o papel da vilã.

A presença de Bette Davis na indústria hollywoodiana era uma afronta pelo fato de ela não preencher os padrões de beleza vigentes do período. Ela deu muitas dores de cabeça a Warner Brothers, mas não apenas pela aparência, e sim porque queria papéis melhores. Se ela não queria fazer tal papel, nem a presença de Jesus Cristo poderia fazê-la mudar de ideia; o que era um problema, pois atrizes estavam atreladas a contratos de seis anos que exigiam no mínimo quatro ou cinco filmes por ano. Isso gerou brigas homéricas com os chefões do estúdio. O número de vezes que Bette foi suspensa e posta na “geladeira” não está na conta. No entanto, isso não aplacou sua coragem, muito pelo contrário: Davis lutaria até o final de seu contrato com a Warner Brothers, no começo dos anos 50, pela independência.

Bette e Joan tinham estilos e maneiras de atuar muito diversas, mas não escaparam de tomar um chute na bunda dos estúdios que tanto amavam e a quem foram tão devotadas quando começaram a envelhecer. Em Hollywood, beirar os 40 anos, para uma mulher, era entrar em um estado decrépito. Elas, assim como outras atrizes, passaram por aquilo que era considerado o começo do fim, ou seja, interpretar mães de jovens atrizes. Tiveram de ceder a recém-chegadas, que elas consideravam de qualidade duvidosa. Ambas reinventaram suas carreiras nos filmes de horror dos anos 60, mas o estigma de atriz da era clássica envelhecida permaneceu. O caso, inclusive, é discutido em um episódio de Mad Mad, quando um personagem, após assistir sob o Signo do Sexo, discute o que aconteceu a Joan, dizendo que ela não era mais a estrela com o qual ele estava acostumado. Quem pode culpar Crawford pela preocupação excessiva com a aparência? Ela, como muitas de nós, tinha medo do futuro, porque o futuro não pertence às mulheres velhas.

O destino de atrizes mais velhas era o ocaso e o enclausuramento, como bem mostra o filme de 1950, Crepúsculo dos Deuses, uma crítica dura sobre Hollywood. Apenas no momento em que atriz da era muda, Norma Desmond (Gloria Swanson), torna-se uma assassina, matando o amante mais jovem, é que as câmeras se voltam para ela. Além disso, também temos a participação especial de Hedda Hopper, a maior colunista de fofocas daquele tempo e que aparecerá em Feud, interpretando a si mesma. Ela representa o que há de mais sujo e desrespeitoso em um sistema que não tolera pessoas mais velhas, mas que se vale delas para vender jornais e revistas.

Bette e Joan não puderam envelhecer em paz, mas isso não é algo que possamos dizer que ficou lá atrás. Ainda vemos mulheres mais velhas sendo depreciadas na internet por ousarem viver. Quem não se lembra da cena em que a personagem de Vera Holtz, em A Lei do Amor, transa com Thiago Lacerda foi considerada nojenta e desnecessária? A misoginia ainda predomina em Hollywood, e aos galãs mais velhos, como Sean Connery, é permitido se relacionar com uma mulher mais nova. Quanto às mulheres, vocês sabem a resposta. Por essas razões, Feud veio em boa hora.

O que podemos esperar de Feud?

Desde American Crime Story: The People VS. OJ. Simpson, é possível perceber uma certa tendência em Ryan Murphy: a de apostar alto. Com Feud não poder ser diferente. É uma aposta perigosa, pois a série lida com o legado de duas grandes atrizes. Além disso, há pessoas que não as conhecem, então como apresentá-las? Serão pintadas como loucas? Mimadas, grosseiras, infantis? A responsabilidade que Murphy tem nas mãos é grande e, como fã, confesso ter muitos receios: não só pelo fato de ser apaixonada por elas e por seus trabalhos, mas por desejar que todos descubram a magia delas em cena. Que possam conhecer e debater os filmes que elas fizeram e falar sobre o sistema em que estavam inseridas. Lembramos com carinho da era clássica, com seus filmes de cores berrantes e alegres, mas pouco se fala da tradição dos grandes estúdios, dos magnatas que faziam a máquina funcionar — e a que custo.

Susan Sarandon e Jessica Lange como Bette Davis e Joan Crawford, respetivamente.

Quando Ryan contou à revista Entertainment Weekly que sua intenção era mostrar como essas mulheres estavam sujeitas ao machismo e à misoginia do meio artístico, me senti 300 vezes mais aliviada. A declaração mostra a preocupação em resgatar uma história silenciada pela rivalidade, pelo ódio e pela competição entre mulheres. Muitas das declarações que as atrizes deram são falsas, provando o quanto essa questão tornou-se um mito. Não sabemos mais o que é verdade ou mentira, quem disse ou fez o quê. Ao invés de chafurdar ainda mais no mito, podemos contar a história de outra perspectiva, daquela que realmente importa. Só poderemos exigir mais direitos e representatividade para as mulheres se conhecermos nossa história. É olhando para trás que podemos nos questionar, nos conhecer e tomar alguma atitude. Feud vem para resgatar um pedaço da história que não pode e nem deve ser apagado.

Que assim seja, amém.