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A humanidade e a monstruosidade em Nimona

Nimona é uma animação de 2023 dirigida por Troy Quane e Nick Bruno. A aventura foi recuperada pelo estúdio Annapurna juntamente com a Netflix depois que o estúdio anterior encarregado de produzir o longa, Blue Sky, foi fechado em 2021 pela Disney — empresa à qual pertencia. Não fosse o resgate, o trabalho, que já estava aproximadamente 75% finalizado, teria sido abandonado.

Um monstro que quase não podemos ver

A história de Nimona é baseada no quadrinho homônimo escrito por uma pessoa trans: ND Stevenson, que também assina a série de quadrinhos Lumberjanes e a versão mais recente da série animada da super heroína e ícone da cultura dos anos 80, She-ra e As Princesas do Poder. Ainda que a Disney não tenha especificado o motivo para o cancelamento do projeto, o fato de que, assim como quem os criou, os protagonistas são, direta ou indiretamente, integrantes da comunidade LGBTQIA+, é de se pensar por que Nimona foi um dos projetos descontinuados mesmo após tantos investimentos. No vídeo de Thiago Ora, “Quem lacra não lucra: Nimona e o boicote a produções LGBTQIA+”, o caso do longa é apontado junto a outras produções como um boicote discreto, quase imperceptível, mas ainda sintomático, a produções com diversidade.

Entender a história por trás da produção de Nimona pode parecer apenas uma introdução técnica a este texto ou uma curiosidade dos bastidores da produção, mas ela também se conecta com a trama e o próprio universo criados para contar a história da personagem-título — e, por isso, é importante conhecê-la.

Nimona

Humanos contra monstros

Nimona nos leva a um mundo de fantasia que mistura elementos tecnológicos da contemporaneidade a uma cultura que se baseia em estética e tradições medievais. Nesta sociedade monárquica, uma linhagem de nobres é treinada geração após geração para proteger o reino de monstros que vivem além dos muros da cidade-fortaleza. Pela primeira vez na história, no entanto, a rainha decide conceder o título da realeza a um membro da plebe. No dia de sua condecoração, Ballister (Riz Ahmed) se questiona sobre o lugar que vai tomar para si naquele momento histórico do reino, mas é consolado por seu namorado, o também cavaleiro Ambrosius (Eugene Lee Yang). O roteiro não especifica se o relacionamento entre eles é algo aberto e conhecido do público — já que os cavaleiros são como celebridades naquele reino — ou se é um segredo e, se é algo a ser escondido, não há explicações sobre os motivos: o reino também é homofóbico ou eles parecem discretos em suas demonstrações de afeto porque estão a trabalho, servindo sua nação? Há ainda a questão de classe: fica óbvio desde o começo que os cavaleiros têm privilégios e os plebeus são considerados inferiores, ainda que exista também uma aparência de igualdade e prosperidade geral no reino. É neste cenário que vemos a história de Ballister se entrelaçar à de Nimona (Chloë Grace Moretz).

Ballister e Ambrosius apresentam, desde o começo, uma relação consolidada e afetuosa, porém o dever que têm e os sentimentos que carregam entram em conflito nos primeiros minutos do filme, quando a espada de Ballister mata a rainha na cerimônia assistida ao vivo por uma multidão e transmitida para todo o reino. Dividido entre sua obrigação de proteger a rainha e ferir seu amado para conter um suposto assassino, Ambrosius acaba decepando o braço de Ballister, que entra em fuga até que consiga se provar inocente. A cena também é assistida por Nimona, que assiste a transmissão despretensiosamente, mas encontra naquele cavaleiro imediatamente odiado por todos algo que a interessa. A garota com aparência adolescente e desligada de uma performance de gênero específica acredita que o assassino da rainha é a pessoa perfeita para ajudá-la a infernizar o reino.

As motivações de Nimona parecem ligadas à idade que aparenta e a uma certa rebeldia caótica que quer ver e participar de confusões sem um motivo muito claro, mas aos poucos vamos entendendo que Nimona é capaz de se transformar em animais e outras formas, e é bastante solitária por causa daquele poder que a torna alvo da perseguição aos monstros.

Nimona

Após ser resgatado da prisão onde aguarda sua punição, o cavaleiro se vê sem mais ninguém para apoiá-lo e passa a formar uma dupla improvável na qual a jovem que consegue mudar de forma e o primeiro cavaleiro não-nobre do reino se unem. Ballister quer encontrar o verdadeiro culpado, provar sua inocência para deixar de ser um procurado e voltar a uma vida normal. Enquanto isso, Ambrosius acaba se tornando o chefe da missão de encontrá-lo e a trama passa a misturar suspense, aventura e fantasia para tocar, em seu subtexto, em pontos bastante profundos.

Quem são os verdadeiros monstros?

A partir do momento em que Ballister se dá conta de que Nimona é exatamente o tipo de monstro contra o qual fora ensinado a lutar por toda a sua vida, ele entra em conflito consigo mesmo e com todo o país: o reino tem sua origem lendária explicada em uma trama paralela que se interliga à principal e, enquanto é desvendado o mistério sobre o verdadeiro assassino da rainha e suas motivações para que o cavaleiro foragido seja inocentado e possa seguir em frente, também podemos entender as motivações e razões para que a protagonista seja como é, e começamos a compreender que aquele mundo é muito parecido com o nosso, com monstros que sequer são conhecidos, mas que aprendemos que devem ser combatidos.

Nimona, uma metamorfa divertida e cheia de energia que adora causar confusão, pode ser facilmente interpretada como uma alegoria da vivência trans: solitária, desumanizada e ostracizada. Enquanto isso, Ballister e Ambrosius podem representar outras vivências dissidentes a quem são concedidos alguns privilégios, mas nunca todos. Talvez, não explicitar a sexualidade do casal seja um ótimo trunfo narrativo para nos fazer pensar também sobre as expectativas para as vivências homoafetivas do nosso mundo: sabemos e esperamos que o romance entre eles não seja revelado ou estranhamos a naturalidade com que a relação aparece, porque é isso que costumamos ver nas telas e na vida real. As questões de raça não são muito aparentes no roteiro de Robert L. Baird, Llod Taylor e Pamela Ribon, mas definitivamente a classe tem um papel distintivo muito evidente e se soma à opressão em relação às expectativas de gênero e sexualidade.

Entre todos estes pontos de aprofundamento do roteiro, é possível afirmar que, quando se toma a monstruosidade de Nimona como uma metáfora ou alegoria da transexualidade, então podemos dizer também que a trama é toda amarrada por este tema, que costura a relação entre os diferentes núcleos de ações.

Na terceira edição da newsletterOutro Pesadelo”, a escritora e publicitária Gih Alves trás alguns pontos de reflexão sobre o horror queer:

“As metáforas entraram na minha vida há muito mais tempo, graças aos filmes de terror. Porque em vários filmes de terror existe um monstro. E, muitas vezes, esse monstro — vampiro, lobisomem, alien, assassino, demônio ou algo do tipo — é apenas (como) uma pessoa queer (…). Ao falar sobre temores da sociedade, o terror fala sobre pessoas, sobre inquietações que atingem certos grupos da sociedade, sobre sentimentos vividos. E por isso, entre todas essas coisas, fala também sobre a monstruosidade de ser queer.”

Nimona

Ensinado sobre o que é certo ou errado, Ballister se vê encarando o fato de que a única pessoa disposta e com recursos para ajudá-lo é um monstro, que aprendera que não deveria existir pelo bem da sociedade. Segundo Gih Alves:

“[…] um elemento muito presente em obras de terror, apontado pelo pesquisador Robin Wood lá na década de 1970: o monstro ou vilão costuma ser o “Outro” predatório, algo que ameaça a norma social. Tal norma, por sua vez, é comumente representada por um casal heterossexual ou pela família tradicional completa — pais e filhos brancos, de classe média, cis e héteros, com sorrisos dignos de comercial de margarina. Assim, numa relação direta, Benshoff diz que ‘o monstro está para a ‘normalidade’, assim como o homossexual está para o heterossexual'”

Ao longo da trama, além da aceitação de Nimona como outra humana e não apenas um monstro, Ballister também precisa lidar com o fato de que passa a ser visto como menos humano e mais monstruoso a partir do momento que a autoria do crime que move a narrativa lhe é atribuída. Então, o que é um monstro e o que não é? E o que garante que ele é um monstro ou um humano quando apenas um “erro” em sua conduta o colocou no mesmo lugar em que os monstros daquele universo se encontravam: em posição de caça, de alvo sumário de execução sem julgamento algum? O deslocamento do lugar de aceitação é especialmente doloroso e confuso para o cavaleiro que tem também a questão da classe o retirando do lugar de aceitação.

A monstruosidade deixa de ser palpável e torna-se um conceito no qual talvez o protagonista também se encaixe. Como sugere Eric Novello em “Os 10 mandamentos do Horror Queer”:

“[…] para muitos de nós descobrir-se LGBTQIA+ é uma experiência de horror. Somos como vampiros disfarçados entre os meros mortais. Seguros enquanto conseguimos proteger nosso segredo, perseguidos se revelamos nossa peculiaridade. Para sobreviver, nos partimos em duas identidades. A pública e a privada. A diurna e a noturna. Contudo, ao contrário dos vampiros, os anos roubados pelo ódio alheio jamais nos são devolvidos. A imortalidade é para poucos.”

Nimona

A jornada do cavaleiro ao longo da aventura é também um caminho para aceitar o seu não-lugar e se entender também como alguém indesejado por aquela sociedade. Ele se vê tendo que rever seus conceitos para que sua mais nova amiga, companheira e apoiadora caiba na definição de humana dele, e isto o faz entender quem são de fato os monstros e onde ele de fato se encontra nesta suposta dicotomia: no desconforto de não estar dentro da norma, como explica a edição de “Horror Queer” já citada anteriormente:

“pessoas queer também estão fora da norma e não se encaixam em padrões. No livro Um Corpo Estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, Guacira Lopes Louro explica que o termo queer abrange tudo aquilo que é diferente da norma e que não deseja ser integrado nem tolerado. O queer é ‘um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade’ (Louro, 2004, p. 7-8). Enquanto pessoas queer, assumimos o desconforto da ambiguidade, do entre lugares, do indeterminável. Tal como os monstros das histórias, não nos encaixamos no padrão e estamos constantemente rompendo com as normas apenas por existir.”

Até que entenda a questão monstros x humanos, os questionamentos do cavaleiro foragido acabam gerando um ponto de reviravolta trágico que revela a solidão da vivência considerada monstruosa pelos habitantes do reino.

Monstruosidades da realidade

No momento do lançamento do filme e já há alguns anos, a política institucional dos EUA, país de origem da animação, vem criando cada vez mais obstáculos para a população LGBTQIA+. Os projetos se voltam em especial contra pessoas trans e buscam reduzir a condição humana de sua existência que, através de lutas organizadas, vinha sendo aos poucos adquirida pela população LGBTQIA+. Segundo levantamento do MAP (Movement Advancement Project), mais de 650 projetos contrários aos direitos da população trans foram propostos por 46 estados estadunidenses somente em 2023. No Brasil, a realidade não é muito diferente: ainda que o mapeamento da Agência Diadorim em parceria com a Gênero e Número aponte 209 projetos de lei favoráveis à população LGBTQIA+ no país entre 2019 e 2023, os direitos deste grupo vivem sob ataque e, no mesmo período observado, 122 projetos de lei que afetariam negativamente esta camada da população foram propostos, em especial por parlamentares apoiadores do inelegível ex-presidente Jair Bolsonaro.

A questão legislativa aparece neste texto como um demonstrativo de todos os complexos dispositivos que operam para tolher quem vive a experiência queer de não se encaixar em um padrão, em especial no que se refere à cis-heteronormatividade. Se ainda temos leis assim e direitos constantemente em debate — como é o caso do casamento homoafetivo que está sendo novamente debatido na câmara, apesar da inconstitucionalidade da proposta, que foi aprovada em uma das comissões da câmara legislativa — é porque a sociedade não aceita as dissidências.

Na condição de democracias representativas, as pessoas que fazem as leis para um país estão alinhadas com os desejos e intenções da população que as elege. Entre projetos em tramitação, arquivados e aprovados, a cruzada contra a população LGBTQIA+ tanto no Brasil como nos EUA (e em vários outros locais do mundo) se fortalece também na repetição de preconceitos antigos, desinformação e mentiras que circulam em forma de fake news, em um abuso dos meios de comunicação por parte dos grupos conservadores em ambos os locais. O pânico moral espalhado e perpetuado até hoje por notícias falsas e interpretações covardes, cruéis e também mentirosas ajuda a reforçar a desumanização de todas as pessoas que divergem da norma cis-hétero, entendida como superior porque serve à perpetuação do sistema vigente, no qual poucos seguem com seus privilégios, enquanto outros lutam pela mínima dignidade para viver.

Estas ações, orquestradas ou não por um órgão central como o reino do filme, tendem a manter a população LGBTQIA+ sempre à margem da sociedade, como monstros que a destruirão. O reino onde Nimona se ambienta é uma exata representação da nossa sociedade, que cerca de todos os lados a vivência queer: a população perpetua ideias negativas que favorecem a criação de leis, as quais fortalecem os dispositivos de manutenção do sistema e eliminação de quem não se encaixa a ele. A cultura queer é vista como inferior e suas histórias entendidas como menos dignas de ganhar espaço, o que nos leva novamente à introdução deste texto: não oferecer histórias LGBTQIA+ é retirar uma chance de que se humanizem as pessoas do grupo. Quanto menos humana for a vivência queer, mais fácil se torna para quem não o é desprezá-la. No Brasil, ocorreram 273 mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ em 2022, mas isso é algo que não importa ao grupo conservador da extrema-direita, que se preocupa não em preservar a vida do grupo, mas em retirar mais um direito garantido por lei. Afinal, LGBTQIA+ são monstros — segundo eles — e não deveria importar o fato de que têm ou não direitos.

Aceitar que somos monstros e destruir o sistema que nos classifica assim

As pessoas taxam como monstruoso tudo aquilo que pode destruir o que sustenta seus  privilégios, mas Nimona é um filme que consegue solucionar este dilema social sem fugir da parte violenta do paralelo traçado entre mundo real e ficcional. O final é muito forte, sensível e direto em suas mensagem: às vezes o final de uma história não é muito feliz, mas é importante que ela seja contada, e que sejam também as monstruosidades feitas contra os supostos monstros — que podem se orgulhar de serem desviantes da norma quando entendem que só são vistos assim por conta de uma dinâmica social cruel. Ao invés de lutarem para se encaixar, que os monstros possam lutar para destruir o sistema que os classifica e oprimem. Só assim seremos todos verdadeiramente humanos.

Nimona recebeu 1 indicação ao Oscar na categoria de: Melhor Animação.