Categorias: CINEMA, LITERATURA, TV

A comida como linguagem: memórias afetivas, identidade, amor e luto

O amor e o luto são um misto de sentimentos complexos e cada pessoa tem a sua forma particular demonstrá-los. Ao mesmo tempo, são processos que todos nós vamos experienciar em algum momento da vida. Por serem singulares, mas universais, esses temas são o cerne de diversas narrativas midiáticas, tanto em obras ficcionais, quanto biográficas e artísticas.

Se tratando de emoções extremamente profundas, às vezes faltam palavras para tentar descrever como é se apaixonar, ou sentir saudades de alguém que não está mais aqui. E, na carência da linguagem verbal, os artistas, autores e diretores apresentam diversas maneiras para expressar esses sentimentos. Um desses modos é a partir da comida. Afinal, comer está muito além de alimentar um corpo que precisa de energia para sobreviver, e representa uma forma mais subjetiva de comunicação.

De início, a relação entre comida e linguagem pode não ser tão óbvia. No entanto, diversos filmes, livros, séries e dramas vêm utilizando desse artifício para enriquecer as suas narrativas e convencer o espectador de que o simples fato de se reunir em volta da mesa para comer pode ser uma maneira não literal de demonstrar sentimentos. Algumas obras também mostram que ingredientes e sabores específicos são capazes de nos transportar para lugares que sentimos falta ou, então, serem uma ponte de conexão com a nossa cultura de origem.

O livro de memórias Crying in H Mart (que chegará ao Brasil em 2023, com o título Aos Prantos no Mercado), escrito pela musicista coreana-americana Michelle Zauner, vocalista da banda Japanese Breakfast, aborda o processo de luto que a cantora viveu após a morte da sua mãe.  A obra não-ficcional é uma espécie de coming-of-age, na qual Zauner aborda temas como família, amor, identidade, carreira artística e, sobretudo, o papel da comida nos momentos mais felizes — e difíceis — dos seus vinte e poucos anos.

O “H Mart” presente no título do livro faz referência a uma rede de supermercados especializada em produtos asiáticos. A autora conta que, desde a morte da sua mãe coreana, ela se pega chorando quando vai às compras neste estabelecimento, pois diversos ingredientes vendidos ali os lembram das receitas que sua mãe fazia e dos momentos que as duas tiveram juntas em torno da comida.

Os grandes temas da obra, como laços familiares, afeto e luto, são todos abordados em relação à comida. Zauner expõe que a sua família materna sempre expressou o amor por meio das refeições. Apesar de muito exigente, sua mãe sempre preparava pratos exatamente do jeito que ela gostava, e essa era a sua forma de demonstrar carinho pela filha. Nos momentos finais com a mãe, quando ela já se encontrava bastante debilitada por conta de um câncer, Michelle tentava ao máximo aprender e replicar as receitas coreanas para fazer os pratos preferidos da progenitora.

Michelle Zauner e sua mãe

Praticar receitas e provar sabores, principalmente os ligados à culinária coreana, foi uma forma que a artista encontrou para lidar com todo o processo da perda da mãe. Ao mesmo tempo, Zauner conta que, por meio da comida, ela também consegue se conectar com as suas raízes asiáticas, devido às memórias afetivas que tem ao comer pratos como: “um kimchi ácido o suficiente e um samgyupsal perfeitamente crocante”. Logo no início do livro, ela comenta que “mal sabe falar coreano, mas dentro do H Mart — cercada de tantos ingredientes já familiares — ela se sente fluente e em casa”.

A comida também é papel importante em longas que narram histórias de famílias imigrantes, já que certos sabores, temperos e pratos são uma forma dos personagens se lembrarem dos seus países de origem, e também uma forma de preservar a cultura e passá-la adiante. Em Minari (2020), os alimentos são praticamente um personagem. O filme se passa nos anos 1980 e narra as tentativas de uma família coreano-americana em se adaptar a uma nova casa no Arkansas e conquistar as promessas do sonho americano.

A trama principal gira em torno das tentativas do pai de família coreano-americano Jacob (interpretado por Steven Yeun) em se mudar para uma fazenda, cultivar legumes e hortaliças e ganhar a vida vendendo esses alimentos. O diretor Lee Isaac Chung utiliza a comida para enriquecer a narrativa e mostrar os contrastes que existem entre as culturas coreana e americana, mas também a possibilidade de adaptação e fusão entre as duas.

Por exemplo, o que a mãe (Youn Yuh-Jung) da protagonista Mônica (Han-Yeri) traz da Coreia são  ingredientes típicos, como pó de pimenta (gochugaru) e anchovas para o preparo de molhos muito comuns na culinária coreana. Mônica se emociona e diz que é muito difícil encontrar aqueles produtos ali e que ela sente falta das comidas “de casa”. Já em outro momento do filme, é a vez da avó coreana experimentar os sabores americanos, provando o refrigerante Mountain Dew, que seu neto David, nascido nos Estados Unidos, tanto adora.

Minari (2021)

O próprio nome do filme, Minari, é baseado em uma planta comestível, usada em diversas receitas asiáticas, que só precisa de bastante água para crescer, e consegue se adaptar em qualquer lugar. É um alimento que, assim como os personagens do longa, nasce em uma cultura específica, mas pode prosperar independentemente da localização.

A comida como linguagem do amor

Cada um tem a sua forma particular de demonstrar e receber afeto, e, entre as principais linguagens do amor — definidas por Gary Chapman — temos as classificadas como “Atos de Serviço” e “Tempo de Qualidade”. A primeira consiste em realizar tarefas para quem você ama, como ajudar nos serviços domésticos ou então preparar o almoço ou jantar. Já a segunda diz respeito a dedicar a atenção a alguém, e valorizar o tempo que passam em conjunto. Um exemplo é cozinhar juntos, ou, então, dividir uma refeição.

As culturas asiáticas tendem a valorizar, e muito, a comida como um todo. Por isso, os alimentos têm papel importante em diversas produções chinesas, japonesas, coreanas, indianas, etc. Se você é dorameira — termo usado para fãs de novelas asiáticas — deve se lembrar de pelo menos uma cena que te deixou com água na boca, ao mesmo tempo que te arrancou alguns suspiros. São vários dramas no qual o mocinho cozinha para a protagonista, ou vice-versa, como forma de demonstração de afeto. No entanto, a expressão de cuidado por meio da comida não se limita ao amor romântico. Momentos em torno de refeições simbolizam vínculos familiares, de amizade e companheirismo, tanto em situações difíceis, nos quais comer é terapêutico, quanto nos episódios mais felizes, naqueles que adoramos ver os personagens comemorando em volta de uma mesa repleta de pratos e sabores deliciosos.

Moonlight (2016)

Mas, a comida como linguagem não é utilizada apenas em produções asiáticas. Uma das cenas mais marcantes de Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016) é quando o amigo de infância do protagonista cozinha um prato de arroz con pollo para ele e os dois conversam em um restaurante. O longa, vencedor do Oscar de Melhor Filme, narra as fases da vida de Chiron, e suas dificuldades e vivências enquanto homem negro descobrindo sua sexualidade e os abusos que sofreu na infância e adolescência.

O diretor Barry Jenkins afirmou em entrevista que “quando você cozinha para alguém, trata-se de um ato deliberado de suporte”. Sobre a cena na qual vemos Kevin cozinhar, em slow-motion, um prato para Chiron, o cineasta continua:

“Algo de especial estava acontecendo. Kevin estava preparando aquilo com amor, de maneira determinada. Além disso, eu nunca tinha visto um homem negro cozinhar para outro em um filme, televisão ou qualquer outro tipo de mídia.”

Para mostrar ao espectador que algo de romântico poderia acontecer entre os dois personagens, o filme não necessariamente utiliza diálogos literais, mas apresenta elementos mais sutis, como a ambientação do restaurante, a trilha sonora marcante e, claro, a preparação de uma receita especial.

A comida como memória afetiva

Ratatouille (2007)

É impossível falar da comida como linguagem no cinema sem falar de Ratatouille (2007). A trama central da animação gira em torno de Remy, um rato de Paris, que sonha em se tornar um chef de cozinha. Além dos inúmeros pratos e ingredientes que enriquecem o filme, há um momento que merece destaque: quando um temido crítico gastronômico esnobe vai ao restaurante, para avaliá-lo. Porém, no lugar de um menu sofisticado para impressionar, Remy prepara um ratatouille, clássica receita francesa de legumes cozidos.

Para a surpresa de todos, o crítico Anton Ego adora o prato. Na primeira bocada, ele é transportado à infância, quando a coisa que o mais fazia feliz era justamente o ratatouille preparado pela sua mãe. Por conta da memória afetiva, nem sempre a receita mais requintada é, necessariamente, a mais gostosa. O importante é estar cercado de pessoas queridas e saber que aquela comida foi feita com amor.

Já em A Filha Perdida (2021), filme dirigido por Maggie Gyllenhaal, baseado no romance de mesmo título, as laranjas são um grande simbolismo. Apesar da relação conflituosa que Leda (Olivia Colmann) tem com a maternidade, ela possui recordações afetuosas com as filhas. No longa, descascar frutas está ligado a memórias felizes, pois as meninas sempre pediam para a mãe descascar laranjas de um jeito que só ela sabia fazer, formando uma cobrinha com a casca.

A Filha Perdida (2022)

Já quando Leda tem memórias turbulentas em relação à maternidade e às escolhas que fez no passado, vemos que uma das laranjas da fruteira está apodrecida, espelhando os conflitos que a personagem sente naquele momento. No final do filme, quando a mãe entra em contato com as filhas e tem uma conversa afetuosa com elas, vemos Leda novamente descascando uma laranja, como se o longa nos dissesse que, apesar do passado, está tudo bem agora.

A comida como expressão de luto

A comida — ou a falta dela — também pode simbolizar a saudade e uma forma de lidar com a perda. A Despedida (2019), dirigido por Lulu Wang, conta a história de Billi (AWKWAFINA), uma garota sino-americana que descobre que a avó está com câncer e tem pouco tempo de vida. No entanto, por uma questão cultural, a família decide não contar à matriarca sobre a doença e inventam um casamento de mentira para que todos possam se reunir e se despedir sem que ela saiba do diagnóstico.

O filme conta com incontáveis cenas ao redor da mesa, desde o preparo de receitas em família a banquetes de casamento. Em uma entrevista à revista GQ, a diretora comentou que, no longa, ela “explorou o uso da comida como uma fonte de tensão, porque se trata de uma expressão de amor”. Wang declara que “quando você está de luto, tende a perder o apetite”. Por essa razão, era difícil continuar com a mentira pois a família se encontrava em um dilema: eles queriam mostrar gratidão e amor à matriarca comendo a comida dela, ao mesmo tempo que ninguém tinha vontade de comer por já saberem que se tratava de uma despedida. É como se os personagens tivessem a tarefa de engolir a comida junto com a tristeza e carregar o fardo de saber do diagnóstico para que a avó não precisasse passar por isso.

A Despedida (2019)

Em A Despedida também acompanhamos como culturas diversas têm seus modos particulares de expressar o luto. Em uma cena, vemos a família de Billi visitando o túmulo do avô, e, mesmo no cemitério, eles levam laranjas descascadas e outras comidas que ele gostava, como oferta. No filme, a comida é capaz de simbolizar o que os personagens não conseguem resumir em palavras, além de retratar formas diversas de processar uma perda.

Vivenciamos o luto quando alguém muito importante deixa as nossas vidas, mas nem sempre, significa que esse ente querido faleceu. O curta-metragem Bao (2018), dirigido por Domee Shi, retrata a síndrome do ninho vazio, e aborda temas como a maternidade superprotetora e o pesar que uma mãe sente quando seu filho se torna independente. Tudo isso de maneira emocionante por meio da comida.

Bao (2018)

Na animação, uma mulher rotineiramente prepara Bao — pãozinho chinês recheado — até que um dia, um bolinho ganha vida. A partir de então, acompanhamos as fases da vida do Bao, até ele começar a ganhar autonomia e querer sair de casa. É nesse momento que a mãe, em negação com a independência do bolinho, precisa literalmente engoli-lo para impedir sua partida. Mas, ao fazer isso, ela cai em uma tristeza profunda, até que o seu filho de verdade aparece para visitá-la. Apesar do curta não ter nenhum diálogo, entendemos por meio de duas linguagens universais — da comida e da maternidade — exatamente os valores e as reflexões que a animação busca passar.

Como visto, os alimentos são uma forma de comunicação que está presente nas mais diversas obras, desde livros biográficos, até curtas de animação. Na falta de palavras, a comida está ali para nos lembrar que muitos sentimentos e memórias podem ser expressados de maneira subjetiva, por meio de pratos e receitas deliciosas e momentos inesquecíveis em torno da mesa.