Eu, Inútil, romance de formação escrito por Cibele Laurentino, aborda um tema que deveria ser universal na literatura: a maternidade. Porém, a maternidade na obra está longe de se assemelhar ao que costumamos ver: a perspectiva utópica das mães que sempre alcançam o impossível e das infâncias construídas por paredes de algodão-doce. Em Eu, Inútil, a relação conturbada entre a protagonista e sua mãe pinta o retrato da origem da maioria de seus traumas futuros. Acompanhamos, com a mão no peito, o crescimento de uma menina ensinada a se odiar, uma filha que deseja o inalcançável amor de uma mãe narcisista, uma criança que convive com a culpa como se esta fosse sua única amiga.
“Inútil: achei que esse fosse meu nome de batismo”. Assim Madalena começa a narrar sua história, partindo do dia em que finalmente descobriu o seu nome, de maneira tardia, na escola. Dentre tantas privações que sua mãe lhe causou, o nome foi uma das primeiras. Como quem sonha em ser chamada de filha querida, Madalena nem ao menos tem o direito de chamar Helena de mãe. E, em seus primeiros anos de vida, cruciais para a construção de uma identidade, só lhe é permitido conhecer o mundo através das lentes ofuscadas pelos transtornos de quem lhe trouxe ao mundo. Era assim que era chamada por sua mãe até então: inútil.
Sua percepção de mundo não teria outro caminho a não ser a manipulação pela forma que sua mãe enxergava a vida. Como consequência de suas palavras ríspidas, violências psicológicas e físicas e a negligência do carinho, o espelho vira um castigo para Madalena ainda na infância. Em sua narrativa sofrida, experimentamos a dor de ouvir uma mãe criticar a aparência da própria filha, mencionando o peso, a forma de seus cabelos e tudo que lhe caracteriza. Madalena engole remédios e remédios para transtornos que só existem na imaginação de sua mãe. Os defeitos que julga ter foram criados por sua própria progenitora, e, mesmo com os esforços de professores, vizinhos e outras pessoas ao redor que a enxergam de forma completamente diferente (e positiva), a visão da mãe é a definidora da sua visão de si. Talvez esse seja o maior dos traumas que a personagem precisa enfrentar ao longo de sua história.
Ainda na primeira parte do livro, acompanhando a infância perdida de Madalena, sua narrativa mostra como a solidão se faz presente. De forma paradoxal, Helena, que não deseja ser tratada como mãe, tem um terrível pavor de perder a filha, e isso se manifesta em sua vocação para afastá-la do mundo. Até então, Madalena nunca havia conhecido o pai, apenas os relatos de abandono criados pela mãe. Com início tardio na escola, ela também não consegue estabelecer amizades. Sente raiva da felicidade das outras famílias, inveja dos abraços entre pais e filhos, saudades de uma vida que lhe foi roubada.
Isso só começa a mudar quando seu pai ressurge em sua vida. Quando os esforços de Helena não são o suficiente para mantê-lo afastado de sua filha, Madalena finalmente tem acesso a outro núcleo familiar, diferente do que conhecia até então. Como se tentasse apagar o passado, seu pai demonstra tentar suprir todo o cuidado e amor que ele não pode oferecer nos oito anos que haviam se passado, e a dualidade entre uma casa cheia, com irmãos, uma madrasta, a permissão para brincar e ser criança, e o ríspido lar de Madalena, revelam as marcas psicológicas e físicas que aquela criança escondia até então. A relação entre Madalena e Helena jamais voltará a ser a mesma, mas o ódio que a criança sente por si própria persistirá por um longo caminho até se dissipar.
O retrato de uma mãe narcisista
“Naquela época, eu me questionava muito acerca de minha existência. Achava que só tinha nascido para acabar com a vida de mainha. Às vezes, eu queria sumir para sempre, assim, sem volta, tchau, tchau.”
Um dos elementos mais marcantes de Eu, Inútil é a construção psicológica das personagens, que se manifestam, principalmente, entre os diálogos que travam entre si. Helena reúne em si extremas frustrações com a vida e, sobretudo, com a maternidade, mas em seu espelho de narciso, não enxerga suas falhas. Isso se reflete na crueldade que despeja em todos ao seu redor, para além da negligência emocional com a filha. Acredita fielmente que é a melhor mãe que poderia ser para Madalena, pagando escolas caras, médicos, aulas de balé, moldando o futuro da filha, até mesmo na escolha de sua profissão. Ao mesmo tempo, todas as coisas que detesta em seu presente, até mesmo as transformações no corpo e a saúde afetada, tudo tem origem em Madalena. Essa culpa é a principal herança que deixa para a filha.
Por outro lado, o reflexo dessa criação é extremamente doloroso no relato de Madalena. É importante ressaltar como a figura dos adultos é mediadora das relações das crianças com o mundo, portanto, tudo que Helena diz, Madalena entende como verdade. É verdade que ela é a causa de todos os problemas da mãe, inclusive os problemas de saúde. É verdade que ela não é uma filha perfeita, que sua aparência não é agradável, que não consegue ir bem na escola. É verdade que ela não merece amor, mas, mesmo assim, luta com todas as forças para ser amada por quem só consegue amar a si mesmo.
“Quando mainha me bate, bem na hora sinto muita raiva, todo meu amor por ela parece acabar. Faço mil juramentos, que nunca mais vou olhar na cara dela, que não vou perdoá-la nunca mais. E não sei o que acontece, mas no outro dia já esqueci. Eu a perdoo sem precisar de pedido de perdão.”
Contudo, Madalena é uma personagem extremamente forte. A intervenção na relação mãe e filha, causada pela aproximação do pai, é um elemento essencial para que ela comece a enxergar um outro tipo de vida. Mas não é suficiente. Para além da ajuda de psicólogos, do apoio de familiares, amigos e escola, ela precisa vencer batalhas internas. Mesmo longe da mãe, suas palavras ríspidas estão dentro dela. São seus pensamentos sabotadores. Em vislumbres de felicidade e liberdade, as palavras aparecem lá, são suas verdadeiras inimigas. Para uma criança que não teve infância, o amadurecimento será ainda mais cruel e doloroso, mas, no fundo, o maior desafio será aceitar a si mesma.
“Helena é uma sombra da qual nunca vou conseguir me livrar, não é? Quase não a vejo, mas é como se ela estivesse dentro de mim. Ela está, não está? Dentro de mim… para sempre.”
“Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira.”
Ao devorar as páginas de Eu, Inútil, a célebre frase de Anna Karenina me vem à mente, principalmente pela construção das relações familiares presentes no livro. Superado o domínio imposto por Helena à Madalena, vemos, em seu percurso de vida, outras relações familiares que, embora não tragam os terríveis traumas de sua primeira infância, demonstram também suas fragilidades e particularidades. O que é importante para lhe devolver o senso crítico, a autonomia e para combater seu terrível medo do abandono. A certeza do que deseja ou não deseja ter, quando chegar o momento de construir seu próprio lar.
Mesmo longe das grades que a aprisionaram na infância, em diversos momentos marcantes e definitivos a voz de Helena, internalizada por sua filha, quase é a responsável pela desistência de seus sonhos, de sua liberdade, de sua alegria. Aos olhos de sua mãe, mesmo com a independência alcançada pelos anos, ela sempre será inútil, dependente dela. Mas o seu futuro pinta um quadro diferente do que viveu, sem a repetição das mesmas opressões sofridas.
É impossível não se sensibilizar pela trajetória de Madalena e torcer para o seu bem. Sua carência por amor se revela em um coração extremamente gentil. É uma batalha do início ao fim de suas palavras, mas, apesar dos gatilhos, a narrativa de Cibele Laurentino é cuidadosa, nos aproxima da narradora e nos enche de esperança, nutrindo uma empatia pelos relatos que podem, por vezes, causar uma identificação, ou um espanto, ao pensarmos nas tantas Madalenas que podem estar isoladas em seus lares abusivos, sonhando em ter uma infância normal e conhecer o amor de uma família.
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É um livro que contar uma história difícil, mas que deve ser mostrada. Parabéns a autora pela coragem de escrever esse livro tão necessário.