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A jornada anti-heroica de Miley Cyrus através do rock

Miley Cyrus consegue ser em Plastic Hearts.

Aos 27 anos, inserida na indústria fonográfica desde 2006, quando Hannah Montana foi ao ar no Disney Channel a tornando um fenômeno mundial, a artista está num patamar da carreira em que pode pavimentar a própria história e bancar suas escolhas.

O caminho até o sétimo álbum de estúdio, contudo, não foi fácil. Para se desvencilhar da narrativa de estrela adolescente de aspecto virginal e comportamento modelo, Miley acertou na “fórmula Britney Spears”, em termos práticos uma jogada de marketing que se utiliza do impacto da mudança radical da imagem da pessoa para garantir a atenção do público e, consequentemente, romper com o passado. É como cortar o cordão umbilical imaginário da indústria num paradoxo que só Hollywood consegue impor. Além do cabelo cortado e radicalmente platinado, o maior marco dessa fórmula aconteceu em Agosto de 2013, quando o clipe da balada “Wrecking Ball” foi lançado trazendo a cantora nua sobre uma bola de demolição e lambendo um martelo de construção enquanto cantava sobre entrar de cabeça num relacionamento com uma pessoa que não se empenhava da mesma forma.

No mesmo dia, aconteceu a famosa apresentação do VMA (Video Music Awards) de 2013, ao lado de Robin Thicke. Levando para o palco da apresentação, o clima de diversão descompromissada do clipe de “We Can’t Stop” num mash-up com a letra explicitamente sexual — e sexista — de “Blurred Lines”. Estava declarado o “Assassinato de Hannah Montana”, como satirizou à época no Saturday Night Live, um dos programas de maior audiência dos Estados Unidos, e o ódio ao comportamento inapropriado da artista, que rompia com a adolescência e passava por novas experiências na fase jovem-adulta.

A Era Bangerz rendeu os frutos que a cantora precisava para tomar as rédeas da própria história e, atualmente, o público enxerga o escândalo de 2013 com outros olhos. Antes, não fez parte da narrativa midiática — nem era compreensível à mentalidade do público que cresceu com Miley e não entendia sua realidade do ponto de vista dos bastidores —, o grito tácito por liberdade que ela insistia em dar desde “Liberty Walk” e “Can’t Be Tamed”. Nessa época, não era sobre a música, era sobre se encontrar como pessoa após tanto tempo vivendo sob a peruca loira.

miley cyrus

Em 2021, no dia que marcou 15 anos de estreia da série Hannah Montana, a artista confessou em carta aberta que passou por episódios de desvios de personalidade, em que a personagem “segurava” mais de sua identidade do que ela própria. Em outras entrevistas, Miley já havia afirmado que, enquanto emulava o alter ego durante o programa, acreditava que as pessoas não se importavam com ela quando tirava a peruca. Felizmente, a recente carta foi mais uma declaração de amor, onde Miley faz as pazes com Hannah e, assim, com o passado.

A redenção com o público, contudo, parece ter vindo antes, quando negociou para integrar o time de técnicos do The Voice US, em 2016, ao lado de Blake Shelton, Adam Levine e Alicia Keys. Como diversas outras antes dela, ciente do jogo da indústria do entretenimento, Miley buscou se associar ao country de sua madrinha Dolly Parton e do próprio pai, Billy Ray Cyrus (ambos praticamente figuras caricatas do gênero e do estilo de vida), retomando aos poucos o espaço perdido junto aos americanos, demonstrando que era mais como eles do que imaginavam, especialmente em suas raízes.

Daí, surgiu Younger Now (2017), um projeto quase caseiro à base de violão, guitarra e composições simples. Para a garota que deixou o mundo em alvoroço durante a Era Bangerz e mergulho no pop/ rock psicodélico no projeto alternativo ao lado da banda The Flaming Lips, o Miley Cyrus & Her Dead Petz (2015), a imagem fresca, sem muita maquiagem num estilo concentrado em tons neutros, renda e jeans, retomando aos poucos o cabelo loiro das garotas comportadas de Nashville, era um passo necessário e seguro. Apesar do baixo desempenho entre crítica e público, o portal Pitchfork decifrou parte da motivação da produção modesta, em conjunto apenas com o produtor Oren Yoel (o mesmo de “Adore You”): mostrar o que Miley Cyrus podia fazer.

Após anunciar o projeto She Is… que consistiria em três EPs em uma sonoridade pop urban com pegadas de hip-hop, como no hino feminista “Mother’s Daughter”, Miley perdeu todos os seus pertences pessoais durante os incêndios de 2018 da Califórnia, se casou, se divorciou, sofreu uma mudança drástica no timbre de voz devido ao trauma da tragédia e teve de submeter a uma cirurgia nas cordas vocais no fim de 2019. A essa altura, She Is… era uma incógnita. Contudo, algo que sempre esteve presente, desde as turnês na adolescência até os palcos extravagantes da Bangerz Tour e, após, em sua fase mais “raiz e pé-no-chão”, alinhava tudo o que Miley sempre almejou ser e, finalmente, consegue com o projeto de 2020: uma estrela do rock.

A alma do Plastic Hearts, com baladas de violão inspiradas em Guns N’ Roses sobre bases country-rock, referências ao setentismo dos Rolling Stones, ao punk-rock de Joan Jett e Billy Idol, The Cure e ao new-wave de Blondie e Depeche Mode, nasce bem antes de seu lançamento com pequenas influências nos próprios álbuns da cantora, para além do pop-rock dos anos 2000, em “The Driveway” do Breakout de 2008 e na grunge “Kicking and Screaming” do The Time Of Our Lives (2009).

Desde os tempos pré-Bangerz, Miley sempre se utilizou de covers para demonstrar onde estava sua musicalidade, desde àqueles presentes nos primeiros álbuns (“Girls Just Wanna Have Fun”, de Cindy Lauper e “Every Rose Has It’s Thorn” do Poison) até aqueles que cantava apenas nos palcos, mais caóticos, altos e rebeldes, como “Smells Like Teen Spirit” (Nirvana) e todos os maiores sucessos de Joan Jett e das The Runaways nos anos 70, como “Cherry Bomb” e “Bad Reputation”, os quais pareciam antecipar a fase anti-heroica de Miley em seus versos mais clássicos.

Tudo isso parece ter feito Joan Jett enxergar certo potencial, que, à época em que se tornaram próximas — em 2011 — parecia distante de ser explorado em nome de uma indústria que clamava pelo esperado som pop que a cantora poderia fazer pós-Hannah Montana. A amizade, no entanto, perdurou e tornou Miley próxima à ponto de ser a responsável por introduzir a mais velha ao Rock and Roll Hall Of Fame em 2015 e poder contar com a lendária artista em projetos pessoais, como o próprio Plastic Hearts na faixa “Bad Karma” — que tem o famoso produtor das The Runaways, Kenny Laguna, creditado.

Enquanto trabalhava no álbum após descartar parte do que seria a continuação da saga She Is…, Miley continuou a explorar o que seriam as influências da sonoridade do álbum, culminando num projeto aguardado por aqueles que sempre acompanharam suas incursões não muito esporádicas nas várias vertentes do rock, o qual se tornou o mais bem avaliado da carreira no Metacritic obtendo nota 75/100 da crítica especializada, aclamação universal do público, e ultrapassando a marca do bilhão de streamings no Spotify.

Para Miley, Plastic Hearts é como uma validação do que sempre tentou fazer e nunca ousou, apesar dos momentos em que seus ídolos literalmente seguraram sua mão e a apresentaram a um público fora da bolha da música pop. A cantora assume a necessidade de aceitação por parte da tradicionalmente fechada e desdenhosa comunidade do rock em post no Instagram, onde comemora o primeiro lugar do álbum na Top Rock Albums Chart da Billboard, sendo apenas a quarta mulher a alcançar a posição no ano de 2020 ao lado de Fiona Apple, Hayley Williams e Alanis Morissette, aparecendo na lista em posições diversas há 30 semanas. Poder contar com nomes como a própria Joan Jett, Billy Idol e Stevie Nicks dá peso ao que ela deseja ser junto ao público, embora já o seja como artista e esteja tentando apenas deixar isso claro para os mais desatentos.

miley cyrus

Prova disso é a vitória junto a resistente plateia do tributo ao cantor Chris Cornell (“I Am The Highway”), vocalista de bandas como Soundgarden, Temple Of The Dog e Audioslave. Na ocasião, quando fez covers para as músicas “Two Drink Minimum” e “Say Hello 2 Heaven”, Miley era o “estranho”, o que comentou em entrevista ao programa de Howard Stern: “[…] Eu nunca tinha feito um evento como aquele […] Sabe quando você olha a lista e algo não se encaixa? Eu sei que eu era a que não se encaixava”. O apresentador, então, diz que há uma “atitude” por ela ser jovem, uma cantora que veio do pop e ainda estar na mente das pessoas como Hannah Montana: “[…] a plateia estava tipo f*da-se ela. Quem é essa vindo aqui e cantando coisas do Temple Of The Dog? ‘Nós não vamos comprar isso’. E acho que essa é uma daquelas situações esquisitas onde você vence totalmente uma audiência negativa. […] O que acredito que aconteceu é que, assim que abriu a boca e começou a cantar aquela música… Acho que toda a plateia se virou e ficou ‘uau, isso é fantástico’ […]”.

A partir de momentos assim, Miley Cyrus — mais o nome por trás da pessoa — passa a ganhar a consolidação e a confiança necessária para se colocar (ou ser colocada) entre os ídolos que inspiram o que o Plastic Hearts é e o que ela busca ser, totalmente fincada na essência da atitude e da sonoridade do rock, algo que se vê nas apresentações que prepararam o público antes do lançamento para o que estaria no miolo do álbum — para além do complemento visual combinado entre cabelo, maquiagem e moda oitentista adotado para a Era.

Por mais que destoe da temática mais pessoal do trabalho, “Zombie” imediatamente ganhou o aval dos membros originais do The Cranberries como um dos melhores covers já feitos para a faixa mais bem sucedida da banda de Dolores O’Riordan. Já “Heart of Glass”, não por acaso é escolhida para a divulgação; marcada como uma das maiores canções dos anos 80, a canção é adaptada ao timbre de Miley, se encaixando perfeitamente na narrativa construída para o álbum e sendo abençoada pelo Blondie de Debbie Harry, a qual elogiou: “Eu a parabenizei por fazer algo que era muito único dela […] ela é uma força que as pessoas têm que respeitar. Eu estou totalmente orgulhosa do fato de ela ter feito nossa música e a transformado em algo unicamente dela”.

Quando o álbum é disponibilizado, se nota que Miley foi além de prestar tributos e cantar as canções que gosta apenas em nome da diversão e da liberação: em Plastic Hearts está um pouco de tudo o que a cantora explorou e testou ao longo dos anos numa visão mais madura, produzida pelas pessoas certas. De baladas como “Never Be Me”, facilmente uma trilha-sonora de filme do fim da década de 80, que deixaria Marie Fredriksson (Roxette) orgulhosa, até a estrutura crescente e inesperada das faixas, a cantora explora diferentes patamares de criatividade em canções não lineares, que instigam a curiosidade para os próximos acordes e versos seguintes.

Quase sempre permeadas por um baixo que guia o instrumental, as produções sofrem interpolações solos de uma guitarra mais enérgica na faixa-título, que também acompanha o refrão de “WTF Do I Know” e dá o tom grave de “Angels Like You”, retornando mais suavemente em “Hate Me”, embora esta tenha uma das letras mais pessoais e finalísticas da discografia de Miley. Aliás, o eu-lírico complementa a sonoridade marcada pela bateria de Stacey Jones, pois ao mesmo tempo, Miley faz as pazes com sua personalidade caótica e rebelde. Plastic Hearts é abertamente mais uma análise sobre si mesma, sob sua autopercepção e as suposições alheias, e sua trajetória até então do que sobre qualquer outra coisa, algo com que pode falar com propriedade do que qualquer um.

Assim, o faz em faixas como “Angels Like You”, onde se considera um problema para as pessoas que a rodeiam (“Anjos como você não podem voar ao inferno comigo”), na autodepreciativa e brutalmente honesta “Never Be Me” (‘Se você procura por estabilidade, essa nunca será eu’), e em “Night Crawling” (feat. Billy Idol), em que reconhece a dualidade nociva com que trata suas relações (“Às vezes, não sou boa para nada/ Às vezes, a melhor que você já teve/ Às vezes, preciso do seu amor/ Às vezes, te esfaqueio pelas costas”), que vem coroada pela autoconstatação e autoaceitação dos versos de “Bad Karma” (“Dizem que é um carma ruim quando você vive uma vida dupla/ Dizem que é um carma ruim ser tão quebradora de corações/ Eu sempre prefiro um ‘doador’ porque sou sempre o ‘tomador’/ Prefiro apenas fazer, então vou pensar nisso mais tarde”).

É a partir desse abraço ao próprio caos, tratando com liberdade suas próprias controvérsias em “Midnight Sky”, anunciando já na primeira faixa (“WTF Do I Know”) que não fosse esperado um pedido de desculpas por sua personalidade e continuando a desafiar as regras de convenção enquanto canta a percepção de uma mulher que cresceu sob os holofotes do mundo e sob as regras de Hollywood em “Golden G String” (“E você se atreve a me chamar de louca, já olhou para esse lugar?”), que Miley forja a persona perfeita para tomar seu lugar na narrativa de um gênero que, sim, ficou para trás da forma como é nostalgicamente lembrado, mas se finca novamente como a influência maior de uma nova e moderna era, não somente em questão de qualidade musical, mas também de comportamento.

Como apontado por ela, desde o lançamento do clipe de “Midnight Sky”, autodirigido em meio a pandemia, em todas as performances ao vivo, a cantora faz questão de colocar o microfone à frente e incansavelmente construir na mente do público que há música por trás da maquiagem, do corte de cabelo mullet andrógino e do glamour exagerado; assim, algo que antes talvez distraísse as pessoas para o que realmente importava é utilizado como forma de afirmação — os adereços apenas complementam a ideia de artista-mulher que tem de si mesma e do universo que explora.

Em 2021, após ser elogiada por Lars Ulrich, baterista e um dos fundadores Metallica, pelo famigerado tributo a Cornell, Miley foi convidada para uma versão comemorativa da clássica “Nothing Else Matters” (1992), que fará parte reimaginação do The Black Album (1991), o novo The Metallica Blacklist, e conta com participação do próprio baixista da banda, Robert Trujillo, Elton John ao piano e Chad Smith, baterista do Red Hot Chilli Peppers, conseguindo figurar no Top 5 Hot Hard Rock Songs, ladeando nomes consagrados do gênero como Evanescence e Linkin Park, novamente encarando narizes torcidos pela “ousadia”.

Por tudo isso e não por acaso, a jornada de Miley Cyrus se mostra tão bem sucedida quanto publicamente controversa entre os fãs do nicho, porém… Quais das maiores lendas do rock não são?