Categorias: LITERATURA

A representação LGBT em Shimanami Tasogare

Apesar de ter um personagem gay como protagonista, o mangá Shimanami Tasogare, de Yuhki Kamatani — publicado entre 2015 e 2017, e que conta ao todo com quatro volumes com 32 capítulos no total — não é um mangá do gênero yaoi (histórias com relacionamentos gays), e sim, do gênero seinen (histórias voltadas para jovens adultos do sexo masculino). Esse fato por si só já é um grande diferencial, uma vez que histórias com personagens principais gays costumam ser sempre inseridas na categoria yaoi. No entanto, essa não é a única surpresa que a história nos traz: em seus poucos capítulos, o mangá consegue dar um show de representatividade sexual e de gênero, além de tratar questões sérias de forma sensível e empática. Não esperávamos outra coisa vinda de seu criador, Yuhki Kamatani, que se identifica como assexual e terceiro gênero (não se identifica nem com o gênero feminino, nem com o masculino).

O yaoi costuma ser um gênero bastante polêmico. Apesar de retratar relacionamentos homossexuais entre homens, ele é normalmente escrito por mulheres heterossexuais para outras mulheres heterossexuais. Esse é um assunto bem complexo que não vai ser desenvolvido nesse texto, mas, em resumo, o gênero yaoi pode ser encarado como uma forma das mulheres japonesas fugirem do papel feminino em histórias românticas, papel este que na maioria das vezes as coloca como seres passivos e sem controle/liberdade dentro de um relacionamento.

Por esse motivo, o yaoi não é voltado para o público homossexual, e nem mesmo busca retratar de forma realista as situações vividas por membros da comunidade LGBT+ no seu dia-a-dia. Portanto, é muito comum que o gênero tenha muitas questões problemáticas, que já se tornaram clichês, como:

1. Todos os personagens homens serem gays: não existem outras sexualidades, às vezes nem mesmo homens heterossexuais são mostrados. Se é homem, ou é abertamente gay ou ainda não é assumido;

2. Ausência completa de personagens femininas: incluindo lésbicas e outras sexualidades, pois no universo retratado só existem homens. Quando há personagens femininas, elas são retratadas apenas como empecilhos para que o casal principal fique junto;

3. Não há personagens trans, que muito raramente aparecem em mangás;

4. Muitas vezes a palavra gay não é nem citada: os próprios personagens, em alguns mangás, afirmam não serem gays, pois não gostam de homens (em geral), mas apenas de um homem em específico;

5. Ausência (ou presença extremamente leve) de preconceito: mesmo o Japão sendo uma sociedade bastante homofóbica, o preconceito contra gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, e outros subgrupos pertencentes ao grupo LGBT+ é tratado como inexistente, como se homossexuais só existissem em quadrinhos e livros de ficção.

Shimanami Tasogare

Além desses problemas, há outros muito mais graves, que estão cada vez mais presentes nas obras do gênero, como: pedofilia (o que apenas contribui para alimentar uma sociedade preconceituosa que erroneamente associa homossexualidade com pedofilia); romantização de estupro; naturalização de relacionamentos abusivos etc.

Não me leve a mal, eu amo yaoi. Podemos encontrar muitas histórias boas dentro do gênero, que não retratam assuntos sérios (e criminosos) como algo normal. No entanto, é impossível não notar e não problematizar esse gênero tão popular no Japão e no mundo, principalmente por sua falta de representatividade e a crescente falta de limites em suas histórias. É nesse ponto que Shimanami Tasogare se destaca absurdamente.

Shimanami Tasogare e sua diversidade

A obra conta a história de Tasuku Kaname, um estudante que tem seu segredo mais íntimo descoberto por seus colegas quando eles encontram p.ornografia gay em seu celular. Ao ser descoberto, Tasuku entra em completo desespero e decide se suicidar, mas, após se encontrar com uma estranha mulher, ele muda de ideia e passa a frequentar a pousada da qual ela é dona. Nessa pousada, ele conhece outras pessoas que estão se descobrindo, tanto sexualmente como em seus gêneros, e que buscam o mesmo que ele: aceitarem a si mesmas.

Shimanami Tasogare é diferente não só por ter um protagonista gay e não ser do gênero yaoi, mas principalmente pela forma sensível, não estereotipada e muito mais real com que trata assuntos relacionados à temática LGBT+. Sim, LGBT+, pois apesar de o personagem principal ser gay, encontramos personagens com as mais variadas orientações sexuais e identidades de gênero, todos retratados com cuidado e tendo seu próprio desenvolvimento ao longo da história. Esses personagens são muito bem construídos e não seguem os clichês que vemos por aí, como o da lésbica masculinizada, gay afeminado, entre outros.

Os frequentadores da pousada

No mangá, vemos a história do ponto de vista de Tasuku. Dessa forma, acompanhamos os preconceitos diários que ele tem que enfrentar de colegas, professores, amigos e até de si mesmo. Os momentos de medo e angústia do personagem nos são mostrados não só em palavras, mas através de recursos visuais, muitas vezes fantasiosos, feitos para nos imergir nas emoções do protagonista. Tasuku, ao longo da história, não só tem que aprender a se aceitar, mas a aceitar e compreender as outras pessoas ao seu redor e as lutas diárias de cada uma. E é no relacionamento que ele estabelece com o menino de quem gosta (que não só é hétero, como um pouco homofóbico) que ele tem seu maior desenvolvimento e auto-aceitação.

Na pousada, que passa a frequentar, ele entra em contato com diferentes personagens, que tornam o mangá muito mais representativo e diverso. Temos, por exemplo, um casal lésbico. Esse casal (não direi os nomes, pois uma das coisas legais do mangá é ir conhecendo os personagens aos poucos) em nenhum momento é sexualizado, algo comum em muitas histórias que retratam relacionamentos entre mulheres, e não há estereótipos como a lésbica feminina e a lésbica masculina. Elas são retratadas como um casal comum, como qualquer outro, como deveria ser. As personagens também possuem seus próprios problemas, sendo o principal deles a aceitação e/ou rejeição de suas famílias.

Além delas, há também personagens trans. Esse foi o primeiro mangá que li em que um personagem trans e outro assexual foram abertamente apresentados. Esse personagem trans nos leva a refletir não só sobre sexualidade, mas também sobre gênero e sobre a forma como permitimos que os outros nos tratem. Em um dos meus momentos preferidos do personagem, há uma breve discussão sobre o uso de banheiros, que é feita de forma simples, bonita e bem óbvia. Parece algo bobo para quem não passa por esse tipo de situação, mas se pararmos para pensar na vida real, todas já lemos muitas notícias de transsexuais enfrentando inúmeros problemas e humilhações por causa dessa questão. Através desse personagem, também encaramos a problemática de como devemos ajudar pessoas que pertencem a comunidade LGBT+ sem forçarmos seus limites, e no quando essa ajuda pode se tornar invasiva e opressora se não for feita da forma correta. Por exemplo, ao querermos tanto que nossa/o amiga/o se aceite e se ame como ela/e é, podemos acabar forçando sua saída do armário ou fazendo com que passe por situações que ela/e ainda não está preparado.

Shimanami Tasogare

Essa discussão também ocorre através de outro personagem, um menino que se veste de menina. Em nenhum momento ele é “classificado” dentro de uma categoria. Ao contrário, o mangá levanta a discussão sobre a necessidade e os limites de uma classificação. O próprio personagem afirma não saber o que é, ou o que quer. E como o próprio mangá nos ensina, não há nada de errado em não saber. Talvez ele venha a se tornar trans, talvez ele se descubra gay, ou talvez ele apenas goste de se vestir de menina, entre muitas outras possibilidades. Isso não importa, pois nada disso é da conta de ninguém. Ele deve ter o próprio tempo para se descobrir, sem se sentir obrigado a se identificar de uma forma ou de outra.

Na pousada, há também um homem idoso, amante de música clássica. Sua história só nos é revelada no final do mangá. Nesse personagem, encontramos uma representação de um casal gay idoso, que teve que passar por muitas situações para terminar junto e que, no fim, viveu muitos anos um com o outro. É uma linda história, que mostra que a homossexualidade (ou qualquer outra sexualidade) não é apenas uma fase.

Mesmo se todos os personagens já citados não fossem representatividade suficiente, há ainda um personagem assexual. Não só um personagem assexual, mas um personagem que aparenta estar muito bem resolvido consigo mesmo. Na história, não há apenas personagens se descobrindo ou aprendendo a se aceitar, há também aqueles que já sabem muito bem quem são, e que agora estão prontos para encarar o preconceito mais de frente, enfrentando outros problemas, também comuns à comunidade LGBT+.

Shimanami Tasogare é um mangá muito importante, principalmente para a sociedade japonesa, ainda muito fechada e que vê o “diferente” como algo perigoso e prejudicial. Eles buscam uma padronização, para que todos sejam iguais, mesmo que isso seja um objetivo impossível. Afinal, somos todos diferentes, e existe um leque de sexualidades e gêneros absurdamente vasto, já que os seres humanos são seres complexos e diversos em si mesmos. É isso que Shimanami Tasogare tenta nos mostrar.

Apesar desses obstáculos para a comunidade LGBT japonesa, estão ocorrendo mudanças no Japão. Lentas, mas estão ocorrendo. Acredito que mangás como Shimanami Tasogare são uma prova dessas mudanças e de muitas outras que estão por vir.

Banner mês do orgulho LGBT 2019


* A arte em destaque é de autoria da editora Paloma Engelke.

2 comentários

  1. Obras como essa são necessárias, mas infelizmente raras de se encontrar. É triste dizer q essa é apenas a segunda obra onde vejo a representatividade de forma realista, com uma pluralidade de seres humanos e casais, fico feliz quando vejo essas obras, pois na vida real não somos todos iguais temos jeitos, aparência e sexualidades diferentes.

    Espero que mais obras como essas surjam no futuro, cansei do estereótipo e da falta de representatividade.

Fechado para novos comentários.