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A primavera periférica e as “Flores de Alvenaria”, de Sérgio Vaz

Nas periferias, brotam flores regadas com lágrimas e suor. Crescem pelas rachaduras Flores de Alvenaria, título do livro de Sérgio Vaz, poeta e fomentador cultural, um dos criadores do Sarau Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia). Além disso, Sérgio Vaz é um dos principais nomes da literatura marginal ou periférica, isto é, a literatura feita desde as margens.

A cultura dos saraus renasceu na periferia, onde livros circulam nos ônibus e metrôs, de mão em mão, ao invés de repousarem em prateleiras inacessíveis. Estamos numa Primavera Periférica — embora olhos desatentos possam não perceber.

Quem é Sérgio Vaz

Sérgio Vaz (1964) é um poeta e produtor cultural mineiro que migrou para São Paulo aos 5 anos de idade, tendo transitado por periferias ao longo da vida. O seu contato com a poesia veio através da Black Music e da música popular brasileira, isto é, por meio das letras e oralidade. Segundo ele, começou a escrever poesia em papel de pão: “Eu sabia que tinha alguma coisa se manifestando dentro de mim e eu percebia essa coisa se movimentando, mas não era nada daquilo até eu encontrar a poesia.”

O autor se relaciona com a cultura hip hop, atua na formação de leitores e na difusão da cultura periférica. Em 2001, fundou junto com amigos a Cooperativa Cultural da Periferia – Cooperifa, movimento que reúne artistas de diferentes vertentes, os quais expõem seus trabalhos artísticos em saraus. Sérgio Vaz denomina o Sarau Cooperifa como “quilombo cultural”, onde pessoas “de todos os lados e de todas as quebradas vêm comungar o pão da sabedoria que é repartido em partes iguais, entre velhos e novos poetas sob a bênção da comunidade.”

flores de alvenaria

Em 2007, organizou a Semana de Arte Moderna da Periferia, em referência à Semana de Arte Moderna de 1922, bem como publicou o Manifesto da Antropofagia Periférica, em alusão ao Manifesto Antropofágico (1928). “O centro, ainda que discretamente, começava a mudar de lugar.”

“A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor.
Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune.
Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. […]
A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade.
Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula. | Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção.
Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha.
A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.” — Manifesto da Antropofagia Periférica

Cabe ressaltar que já houve uma cultura de saraus e salões no estado de São Paulo, no século XIX, por parte das classes abastadas, e agora a prática renasce nas mãos da periferia, com outras características. “A poesia encontrou o caminho de casa”, diz Emicida, “para ser o futuro, voltamos ao passado, através da oralidade” complementa Sérgio Vaz.

Sérgio Vaz é autor dos livros independentes Subindo a Ladeira Mora a Noite, A Margem do Vento, Pensamentos Vadios, A poesia dos Deuses Inferiores e Cooperifa – Antropofagia Periférica; assim como Colecionador de Pedras, Literatura, Pão e Poesia e Flores de Alvenaria, pela editora Global.

Literatura marginal ou periférica

O autor se filia à literatura marginal, também chamada de literatura periférica, assim conceituada por Érica Nascimento:

“a expressão ‘literatura marginal’ serviu para classificar as obras literárias produzidas e veiculadas à margem do corredor editorial; que não pertencem ou que se opõem aos cânones estabelecidos; que são de autoria de escritores originários de grupos sociais marginalizados; ou ainda, que tematizam o que é peculiar aos sujeitos e espaços tidos como ‘marginais’.”

Na visão de Sérgio Vaz:

“Uma literatura com menos crase, menos ponto e vírgula, mas ainda assim literatura. A literatura como aprendizado. Um poeta que sai do casulo e se alia à sua comunidade, seu município e ao seu país. Um artista-cidadão, ao que eu acrescentaria: a literatura marginal ou periférica é a real descoberta dos infinitos recursos da palavra enquanto poder e mesmo enquanto arma. A aplicação política desta descoberta.”

No Brasil, a designação “literatura marginal” passou a ser utilizada na década de 70, durante a ditadura militar. Inicialmente, esse movimento esteve vinculado aos estudantes universitários de classe média, os quais não estavam alinhados às tendências literárias predominantes, e tinham como tema o seu cotidiano. Criaram-se, então, meios alternativos de circulação de produções artísticas, por exemplo, textos mimeografados e livros artesanais. Esses autores custeavam suas obras e as faziam circular no seu meio social, em bares, cinemas e praias. Para Leminski, grande nome da “Geração Mimeógrafo”, “Marginal é quem escreve à margem”.

Já no início dos anos 2000, Ferréz, poeta, contista e romancista, organizou três edições da revista Caros Amigos: Literatura Marginal – a Cultura da Periferia, as quais resultaram, posteriormente, no livro Literatura Marginal: Talentos da Escrita Periférica (2005). Ele passou a denominar a literatura que produzia como “literatura marginal”: “Eu pensei que era adequado ao que eu fazia porque eu era da literatura que fica à margem do rio e sempre me chamaram de marginal”.

Desse modo, embora em sua origem estivesse vinculada a universitários de classe média, no início do século XXI, a literatura marginal passou a ser associada a autores vinculados ao movimento hip hop. Esses filiam-se à Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Solano Trindade (1908-1974), são oriundos de minorias sociais e suas trajetórias literárias retratam esse contexto, através do uso de linguagem coloquial, próxima à oralidade, e do grafite.

Enquanto a primeira geração da literatura marginal circulava suas obras em locais frequentados pela classe média, a segunda geração as faz circular de mão em mão, no ônibus, metrô e em saraus, como o Cooperifa. “Esse é nosso trabalho, de alguma forma, dessacralizar a literatura”, acrescenta Sérgio Vaz. “Sagrado não é quem escreve, sagrado é quem lê, e esse sagrado está no povo”.

“A literatura é a dama triste que atravessa a rua sem olhar para os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas calçadas frias da senzala moderna chamada periferia. Frequenta casarões, bibliotecas inacessíveis a olho nu, e prateleiras de livrarias que crianças não alcançam com os pés descalços.”

Assim, enquanto a primeira geração produzia suas obras de maneira independente para ter maior controle sobre os processos, a segunda geração da literatura marginal o faz porque não é abraçada pelo mercado editorial. Além disso, existe uma preocupação em formar leitores e ser acessível.

Primavera periférica

Em Flores de Alvenaria, Sérgio Vaz reúne contos, poemas e aforismos, nos quais aborda o cotidiano nas periferias e reflexões sobre a vida. Nele, o autor aponta que estamos vivenciando a Primavera Periférica, isto é, a periferia de São Paulo passa por uma efervescência cultural semelhante à das décadas de 60 e 70. Outrora, com relação à MPB, agora, com relação ao hip hop, grafite e literatura periférica.

Tendo em vista que as portas do mercado editorial estavam fechadas, a periferia criou a sua própria cena, em saraus que se espalharam pelo país a partir da Cooperifa; isso em um período em que grandes livrarias encerram as suas atividades por causa de mudanças no setor.

É interessante observar que no livro Cooperifa: Antropofagia Periférica, Sérgio Vaz cita como uma de suas referências Geraldo Vandré, mais especificamente, “Para não dizer que não falei de flores”. De modo semelhante, Sérgio Vaz não relata somente a realidade crua de quem vive à margem, mas também canta as flores, a grandeza das pessoas, forjadas mais pela força de vontade do que pela dor.

Outra referência que me vem à mente é The Rose That Grew From Concrete (“A rosa que cresceu no concreto”), de Tupac Shakur: “Você já ouviu sobre a rosa que cresceu numa rachadura no concreto? / Contrariando as leis da natureza, ela aprendeu a andar sem ter pés […] / Viva a rosa que cresceu no concreto / Quando ninguém mais sequer se importava”. Parafraseando Sérgio Vaz, crescem flores “neste chão árido e escuro da senzala moderna chamada periferia.”


Referências

LITERATURA marginal. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo14336/literatura-marginal. Acesso em: 12 set. 2023. Verbete da Enciclopédia.

NASCIMENTO, Érica Peçanha do. “Literatura marginal”: os escritores da periferia entram em cena. Dissertação – Mestrado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, 2006.

NUBANK. #02 Emicida entrevista Sergio Vaz – Podcast #Chamaê. YouTube, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CxCD0XZJyPM&t=1536s Acesso em: 28 set. 2023.

REVISTA E SESC. Entrevista com Sérgio Vaz – Revista E – Sesc São Paulo. YouTube, 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=i97MPMlgw5M Acesso em: 28 set. 2023.

TV BRASIL. Literatura marginal na década de 1970 e nos dias de hoje. YouTube, 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2_35S2kUNro Acesso em: 10 out. 2023.

VAZ, Sérgio. Cooperifa: antropofagia periférica. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.

VAZ, Sérgio. Flores de alvenaria. 1ª ed. São Paulo: Global, 2016.


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