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AmarElo: o amanhã é ancestral

No documentário AmarElo – É tudo pra ontem, produzido pela Netflix em parceria com o Laboratório Fantasma, Emicida reúne incontáveis referências musicais, de fatos e personalidades afro-brasileiras e encontra elos numa história fragmentada. Em meio a tantas referências, destacaremos aqui três conceitos de filosofia e cosmovisão africanas que, sem dúvida, serviram de base para a construção de AmarElo.

Exu

“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje. Esse ditado é a melhor forma de resumir o que eu tento fazer.” É assim que Emicida inicia o documentário AmarElo. E faz todo sentido.

Segundo Nei Lopes, Exu “representa a síntese de todas as forças que regem o universo e possibilitam a existência, forças que se equilibram entre o negativo e o positivo […] latentes em toda a natureza”. Ele é o movimento, o dinamismo, o princípio organizador e o poder comunicador, pois é responsável pela comunicação entre as divindades e os seres humanos, assim como das divindades entre si.

Justamente por ser responsável pela comunicação, Exu é sempre o primeiro a ser convidado e a receber oferendas. Por ser senhor dos percursos, ele é homenageado nas encruzilhadas, local de confluência de forças, e, também, de saberes.

Esse ditado também é citado por Beatriz Nascimento, historiadora e militante do movimento negro, no documentário Ôrí (1989), de Raquel Gerber. Ela diz:

“Tem um velho ditado iorubá que diz: ‘Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje’. Esse ditado é a melhor forma de resumir o que eu tento fazer. Eu não sinto que eu vim, eu sinto que eu voltei. E que, de alguma forma, meus sonhos e minhas lutas começaram muito tempo antes da minha chegada.”

Quantos sentidos há nesse ditado: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”… Ele traduz a capacidade de Exu de subverter o tempo — não há início, meio ou fim, mas a ação determinada. Até mesmo o passado pode ser reinventado.

Ôrí

Enquanto buscava por um título para este artigo, deparei-me com uma frase de Ailton Krenak em uma palestra: o amanhã é ancestral. Caiu como uma luva. Na cultura iorubá, a temporalidade não é tida como algo linear, com início, meio e fim. O tempo é síncrono, acontecimentos se desenvolvem ao mesmo tempo em espaços paralelos, na dimensão dos ancestrais e dos vivos.

Pode-se perceber que, em AmarElo, Emicida utiliza o mesmo recurso de Ôri (1989) ao entrecruzar passado e presente em uma abordagem do tempo que é circular. Concretizado ao longo de 11 anos, Ôri registra importantes acontecimentos históricos, como o surgimento do Movimento Negro Unificado (1978), do Dia Nacional da Consciência Negra e o centenário da Abolição (1988), isto é, os desdobramentos da diáspora.

Em iorubá, ôrí significa “cabeça”, não somente o órgão vital responsável pelos sentidos, intelecto, consciência, mas uma divindade individual e única, que liga o indivíduo ao seu orixá. O fortalecimento e equilíbrio do ôrí são fundamentais para uma boa existência. No documentário, ôrí também pode ser compreendido como uma metáfora para a reconciliação com o ser, uma tomada de consciência, após o processo de colonização, escravização e racismo.

Sankofa

Criada pelos povos akan (então habitantes das atuais regiões da Costa do Marfim e Gana), os Adinkra são um conjunto de símbolos ideográficos que captam a essência de aspectos da vida.

Imagens do símbolo Sankofa em um portão, ao lado, duas versões do símbolo
Sankofa

O mais conhecido deles, Sankofa, é representado por um pássaro com a cabeça voltada para trás, patas firmes no chão, segurando um ovo com o bico, ou por um coração estilizado. Ele representa um antigo provérbio: “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”, ou ainda, segundo Abdias do Nascimento, retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”.

Em Gana, os símbolos Adinkra podem ser vistos em roupas, cerâmicas e adereços. O símbolo Sankofa pode ser encontrado, no Brasil, em portões de construções antigas, registro da memória de africanos escravizados que, ao desempenharem o papel de ferreiros, inseriam símbolos de resistência desconhecidos pelo colonizador.

Dessa forma, Sankofa também traduz o sentimento dos povos da diáspora africana — a necessidade de se revisitar um passado doloroso, que tentaram apagar, analisá-lo em uma ótica crítica a fim de construir uma nova identidade e transformar o meio em que se vive.

Infelizmente, ainda hoje, o conhecimento é centrado no eixo norte-americano e europeu. Há quem possua um imaginário negativo sobre o continente africano, relacionando-o à pobreza e incivilidade, o que alimenta um processo de desumanização. Como defende Chimamanda Ngozi Adichie, embora narrativas tenham sido utilizadas com esse fim, elas também podem curar. Ao recontar essas histórias em AmarElo, Emicida ajuda a reparar a perda da imagem, ocasionada pela experiência da colonização e escravização, e alimenta o sentimento de pertencimento a um contexto histórico, social e político.


Referências

ALEXANDRE, Gilberto. Ôrí e as vozes e o olhar da diáspora: cartografia de emoções políticas. Cadernos Pagu [online]. 2020, n. 60. Disponível em: https://doi.org/10.1590/18094449202000600002. Acesso em: 11 ago. 2021
JAGUN, Márcio de. Ori: a cabeça como divindade. 1. ed. Rio de Janeiro: Litteris, 2015.
LOPES, Nei. Dicionário escolar afro-brasileiro. 2. ed. São Paulo: Selo Negro, 2014.
KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera de. O candomblé bem explicado (Nações Bantu, Iorubá e Fon). Pallas: Rio de Janeiro, 2009.
REIS, Rodrigo Ferreira. Beatriz Nascimento vive entre nós: pensamentos, narrativas e a emancipação do ser (anos 70/90). Dissertação (mestrado) – Universidade de Santa Catarina, Centro de Ciências Humanas e da Educação, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2020.
WALDMAN, Maurício. Reflexões sobre a sabedoria africana: romper, rever e repensar em Sankofa. Série Africanidades n. 12. São Paulo (SP): Kotev, 2017.

1 comentário

  1. Não sabia que esse coração dos portões tinha essa origem e esse símbolo! Que interessante ver essa e outras marcas que ficaram tão presentes mesmo diante de tudo que se fez contra os povos escravizados.

    Emicida foi genial e generoso em trazer esses conceitos à tona de forma onírica e empírica (pra citar a própria letra de Principia) no álbum, no documentário e em tudo mais que ele vem produzindo de alguma forma pro audiovisual brasileiro. Agradeço pela luz que você deu aos termos! ❤️

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