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Os dois anos de Booksmart

Há dois anos, Olivia Wilde fazia a sua estreia como diretora cinematográfica com Booksmart, a história de duas adolescentes que, prestes a se formar no ensino médio, percebem como deixaram de aproveitar sua juventude pelo grande, e passageiro, mérito escolar. O longa não apenas abriu portas para o início da nova jornada de Olivia ou colocou os holofotes nos jovens atores que fizeram parte desse projeto, mas também estabeleceu um novo patamar para os filmes adolescentes na nova década e o debate sobre como retratar a experiência adolescente de forma mais fiel e verdadeira.

Na trama de Booksmart, Amy (Kaitlyn Dever) e Molly (Beanie Feldstein) são melhores amigas e estão nos momentos finais do ensino médio. Destoadas dos grupos populares do colégio, ambas se orgulham do fato de serem presidentes do grêmio estudantil e terem notas altas em todas as matérias, enquanto não se misturam com os colegas que festejam todos os finais de semana e tiram notas medianas. No último dia de aula, Amy e Molly descobrem que, da mesma maneira que elas, todos os seus colegas entraram em universidades prestigiadas mesmo tendo aproveitado todas as festas e experiências da juventude. Indignadas, Amy e Molly partem em uma aventura cujo intuito é aproveitar tudo o que perderam durante os quatro anos de ensino médio, mas em apenas uma noite.

Atenção: este texto contém spoilers!

A história de Booksmart começa na verdade em 2009, quando Emily Halpern e Sarah Haskins escreveram um primeiro roteiro sobre duas melhores amigas em busca de um par para a festa de formatura. Nessa época, o cenário de filmes adolescentes com foco em protagonistas femininas estava começando a entrar nos holofotes, porém a mudança ainda não era significativa o suficiente para chamar a atenção da indústria cinematográfica como um todo. O roteiro passou por mudanças em 2014, 2016 e 2017 antes de chegar na peça que conhecemos hoje e que garantiu diversos prêmios nos festivais de filmes independentes.

Enquanto o mundo, as gerações e a indústria cinematográfica mudavam, a equipe de Booksmart conseguiu transformar um cenário em que o roteiro do longa, anteriormente focado em duas protagonistas desesperadas para encontrar namorados a tempo do baile de formatura, em um projeto sobre duas jovens, sua amizade e a descoberta da autoconfiança, deixando de lado todos os estereótipos que estão eternizados nas comédias românticas dos anos 2000.

Em uma cena, Molly está corrigindo a gramática de uma pichação em uma das cabines do banheiro gênero neutro do colégio quando escuta três colegas falando sobre ela. O que deveria ser um momento de triunfo em que Molly, a personagem excluída e nerd, se defende dos populares malvados, se transforma em uma quebra de expectativa e desafia tudo o que conhecemos do gênero: Molly descobre que todos os seus colegas passaram em faculdades tão ou mais impressionantes do que ela e Amy, que as duas abriram mão de toda e qualquer vivência clichê da adolescência para construírem currículos impecáveis para saírem de suas cidades em grande estilo, mas que, no fim, terminaram no mesmo lugar.

A quebra na narrativa que temos é que Molly, por muitas vezes, soa esnobe e age de maneira arrogante com seus colegas de colégio, como se ela fosse superior a eles por não ter passado seus sábados à noite em festas e pegação, ao invés de ser retratada como a pária da sociedade escolar.  O conceito de adolescentes festeiros, que exploram suas experiências nesse pequeno período de tempo entre a infância e a maioridade, que também conseguem conciliar as responsabilidades acadêmicas e são capazes de serem bem-sucedidos, é uma realidade no mundo real, porém é algo altamente rejeitado no imaginário cinematográfico: normalmente, esses personagens são retratados como se estivessem no ápice de suas vidas no ensino médio, e que a derrocada viria a seguir, na vida adulta, quando não conseguissem entrar em universidades de renome e nem sair de suas cidadezinhas. Esses personagens acabam criando uma falsa esperança nas pessoas que têm algum tipo de dificuldade social na vida real, fazendo com que elas imaginem que o seu futuro será similar ao dos protagonistas.

Assim que Molly e Amy percebem que poderiam ter aproveitado mais das liberdades juvenis nos últimos anos, elas decidem condensar toda a diversão que não tiveram em apenas uma noite. É assim que elas decidem ir em uma festa na véspera de sua formatura. O que se segue são cenas de aventura pouco realistas, mas que expressam sentimentos universais, algo que já vivenciamos ao menos uma vez durante a adolescência.

Em certo momento do filme, somos presenteados com uma cena de Amy e Molly sendo retratadas por duas Barbies no momento icônico em que elas se drogam acidentalmente. O filme foge muito dos estereótipos de jovens, principalmente com relação a representação de Amy e Molly: as amigas são adolescentes desajeitadas que tentam entender suas respectivas sexualidades, o que querem ser no futuro. Sem falar que ambas ainda estão tentando se descobrir confortáveis dentro de suas próprias peles. A já citada cena com as bonecas Barbie aparece como uma crítica aos corpos perfeitos e irreais, um contraponto ao que toda a sociedade machista espera delas e de mulheres no geral.

Enquanto Molly representa essa quebra do estereótipo da pária adolescente, Amy é construída como a jovem que está em busca de afirmações em suas experiências. Apesar de já ter se assumido lésbica, Amy não conta com muitas experiências práticas e, por ser muito tímida, prefere admirar a menina por quem tem uma crush, Ryan (Victoria Ruesga), de longe. O retrato de Amy como lésbica em busca de si mesma em Booksmart se livra de todos os estereótipos e os erros cometidos em outras obras cinematográficas anteriores, em que precisamos pisar em ovos para falar sobre sexo ou sobre paixões entre meninas.

Quando Amy se encontra com Hope (Diana Silvers) no banheiro e uma começa a tirar a roupa da outra, não temos uma cena perfeita em que uma trilha sonora romântica toca ao fundo e a câmera nos leva para detalhes esquisitos dos corpos despidos. No lugar, recebemos uma cena que mostra a confusão de duas adolescentes que não possuem muita prática, não sabem a ordem em que as coisas devem ser feitas nem nada do tipo: a realidade é que, por mais que se fale sobre sexo em todos os lugares e o vejamos constantemente por aí, não falamos realmente sobre o assunto com nossos jovens.

Entre outros personagens, temos Annabelle (Molly Gordon), um contraponto à Amy, também conhecida como “Triplo A”. Principal alvo de comentários machistas no colégio, Annabelle começa no filme como uma vilã, a garota que é popular, que possui a fama de ficar com vários garotos em festas e com quem Molly nutre uma inimizade. Com o desenrolar de Booksmart, no entanto, começamos a notar que Annabelle não é apenas uma vilã estereotipada de filmes adolescentes, mas é uma jovem confiante a respeito do quer e do que gosta, alguém que não precisa ter vergonha de nada. Em determinado momento do filme, quando Molly dá uma carona para Annabelle, recebemos uma cena emblemática em que as duas discutem o papel que representam na vida da outra, uma vez que a já citada conversa no banheiro, em que Molly escuta as meninas falando dela, teve início justamente com Annabelle. Aqui, Molly não se priva de usar o apelido machista de “Triplo A”, apesar da mesma se ver como uma jovem mulher feminista e progressiva.

O slut shaming — prática de criticar mulheres e meninas pela forma como agem — aparece como uma maneira de crítica tanto pelo comportamento de Annabelle não ser algo de outro mundo, afinal, ela apenas é uma jovem confortável com o seu corpo e que está descobrindo sua sexualidade, e também pelo comportamento de Molly, que nos mostra que as nossas ações falam mais alto do que os rótulos que colocamos em nós mesmos. Não importa o quão progressista ou feminista você diga ser se suas ações não condizem com aquilo que você diz pregar.

A amizade de Amy e Molly é o grande sucesso do filme. Não temos o retrato da amizade perfeita, em que as duas se dizem melhores amigas e nada as abala, mas sim um relacionamento natural e real. Ao longo do tempo, elas aprenderam a se entender e aceitar, mesmo que nem sempre pudessem entrar em acordo visto que, em determinados momentos, uma personalidade prevalece sobre a outra. Molly acolhe Amy sem pestanejar quando a amiga se assume lésbica, e como uma tenta tirar a outra de sua zona de conforto. No decorrer do longa também aprendemos o código secreto da amizade das duas, a palavra “Malala”, em referência a Malala Yousafzai, ativista paquistanesa, que apesar de nunca ser explicado o propósito sabemos que é apenas usada quando uma deve aceitar o termo da outra sem contestar.

O ápice do relacionamento das duas é quando elas param o que estão fazendo para elogiar uma à outra. Normalmente, quando a cultura pop resolve representar uma amizade entre mulheres, especificamente jovens mulheres, é colocada uma rivalidade desnecessária em pauta — rivalidade, vale apontar, que geralmente tem como estopim um interesse amoroso do gênero masculino. Em Booksmart, por outro lado, não há competição entre Amy e Molly, mas um carinho genuíno visto que elas estão a todo momento elevando uma a outra, seja empurrando uma para situações inesperadas e novas, ou trocando elogios. A amizade que acompanhamos pelas lentes da diretora Olivia Wilde é real, forte e adorável de acompanhar.

No entanto, o fato da amizade das duas ser tão única não significa que não temos momentos de conflito no filme. Ao invés de brigarem por um garoto ou pelo grande prêmio de mérito escolar, Amy e Molly entram em desavenças por outras questões. Suas personalidades são diferentes e uma bate de frente com a outra em alguns momentos: enquanto Molly possui uma personalidade mais forte e extrovertida, Amy poucas vezes se deixa chegar no limite de sua zona de conforto ou de experimentar coisas novas. Isso, em certo momento, as fazem se chocar quando as coisas não saem do jeito que estão planejando. Nenhuma amizade é perfeita ou é construída sem conflitos, principalmente quando estamos conectados com pessoas diferentes e com personalidades diferentes, e essa é outra coisa que o filme acerta: retratam que até as amizades mais fortes também são feitas por momentos de altos e baixos, mas que isso não tira o amor envolvido ali.

Apesar de não ter arrecadado uma grande bilheteria, Booksmart já entrou para a lista de filmes adolescentes que são clássicos e que vão marcar uma geração de jovens que possuem mais ferramentas para se defender, para experimentar e para serem quem são. São apenas dois anos desde que o filme ganhou as salas de cinema, porém já podemos começar a sentir a onda de mudança e inspiração que Booksmart deixou. O filme já se vê refletido em outras produções e também no público que sabe o quer ver e onde basear nossas experiências.