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Notas Sobre o Luto: quando o coração te escapa

Na primeira página de Notas Sobre o Luto, quando Chimamanda Ngozi Adichie descreve a rotina de chamadas no Zoom com a família aos domingos, eu já soube que não terminaria o livro sem chorar. É uma identificação instantânea: há mais de um ano as chamadas de vídeo no fim de semana também fazem parte da rotina da minha família, talvez da sua e certamente de muitas outras. A leitura começa assim, com a presença impositiva da distância. Ainda que sua família não esteja espalhada por três continentes, como a da autora, que se conecta da Nigéria, dos Estados Unidos e da Inglaterra — eu mesma estou a apenas 120 km de distância dos meus pais —, a primeira coisa que o livro nos diz é isso: estamos distantes. Isso dói. Respire fundo antes de continuar.

Em Notas Sobre o Luto, Chimamanda escreve sobre a perda de seu pai, James Nwoye Adichie, que faleceu em junho de 2020 devido a uma infecção que levou à falência renal. Publicado pela Companhia das Letras, com tradução de Fernanda Abreu, Notas Sobre o Luto é um livro curto, mas pungente. Nele, estão sentimentos de uma dor imensa e recente, compartilhada e extremamente íntima. É quase que um compilado de pensamentos que abarcam desde o momento em que a autora recebe a notícia até os dias e meses seguintes, as conversas com a família, lembranças do passado e ritos culturais.

É incrível como o texto soa próximo, como se você estivesse sentada em uma sala silenciosa conversando com uma amiga. A leitura me trouxe uma lembrança clara de conversar com pessoas em velórios — pensamentos que saem num jorro, assuntos que se cruzam, pequenas memórias dispersas e cheias de significado. Não é um ambicioso e rebuscado ensaio sobre o luto em seu aspecto mais universal, nem uma complexa análise cultural dos rituais que envolvem a perda de alguém querido. São pedaços honestos da experiência de alguém, poderia ser qualquer um de nós. E é isso que faz Notas Sobre o Luto ser um registro tão valioso.

“O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com as palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras. Por que sinto tanta dor e tanto desconforto nas laterais do corpo? É de tanto chorar, dizem. Não sabia que a gente chorava com os músculos.”

Em pleno ano de 2021, o luto é um tema inescapável. A pandemia da covid-19 já deixou 4 milhões de mortos no mundo, mais de meio milhão deles no Brasil. O luto se tornou coletivo. Todo mundo perdeu alguém ou, no mínimo, viu isso acontecer com alguém. Sentimos a dor de todas essas perdas, a tristeza e a indignação de tudo que vem com elas. Ao mesmo tempo, a pandemia fez com que o luto se tornasse insuportavelmente individual. Afinal, estamos distantes, como nos lembra Chimamanda já no começo do livro. É um luto sem conforto, sem abraços.

Quando recebe a notícia da morte do pai, a autora está longe, em outro país. O desejo de estar com a família é um desejo frustrado. Sair de casa não é seguro, aeroportos estão fechados, ninguém sabe quanto tempo tudo isso ainda vai durar. O contato continua obrigatoriamente pelas chamadas de Zoom, a aproximação mais distante de todos os tempos. É impossível fazer planos e acompanhamos as tentativas da família de fazer com que o enterro aconteça, o sofrimento por estarem separados, o cenário surreal de só poder chorar com sua família pelo Zoom.

E não é só — não que isso seja pouco, mas Chimamanda vai além. Além da esfera coletiva de um mundo caótico, além da individualidade forçada pelo distanciamento social, a autora também explora o que o luto tem de mais íntimo. Ela fala de como sua reação ao receber a notícia da morte do pai assusta sua filha, de sonhos em que o pai não morreu, de como é difícil escrever, de válvula de escape possível que é criar camisetas customizadas na internet. Da culpa. Não sei se é possível falar em luto sem falar em culpa. Quando alguém que amamos se vai, nossa mente corre solta pelas oportunidades que perdemos, as frases que não falamos, as coisas hipotéticas que poderíamos ter feito para que aquilo, de alguma forma, fosse diferente.

“Queria não ter ficado esses poucos dias sem ligar para eles, porque eu teria visto que ele não estava se sentindo apenas um pouco mal — ou teria pressentido caso não estivesse óbvio — e insistido para ele ir ao hospital muito antes. Queria, queria. A culpa me corrói a alma. Penso em todas as coisas que poderiam ter acontecido e em todas as formas como o mundo poderia ser transformado para impedir o que aconteceu no dia 10 de junho, para fazer isso desacontecer.”

No meio de toda a dor e das incertezas, Chimamanda ainda encontra meios para compartilhar com o leitor uma coleção de memórias. São memórias carregadas de afeto — foi o que senti enquanto avançava pelas páginas. Isso deixa as coisas ainda mais palpáveis, porque é claro que somos levados imediatamente às nossas próprias lembranças. O tom tão próximo faz com que seja muito fácil se emocionar, traçar seus próprios paralelos e se colocar no lugar da autora.

Se misturam momentos em que a autora relê uma biografia sobre o pai, vê fotos e vídeos antigos, relata lembranças compartilhadas por pessoas que o conheciam e conta suas próprias memórias, anedotas de tempos diversos. É assim que ela constrói, sem precisar ser prolixa, um retrato vívido de como era sua relação com o pai, como ele era com o restante da família, as características que ela imagina ter herdado dele. Assim como é um registro sincero de luto e perda, é também uma homenagem a quem o pai foi e ao que ele representou para ela e para outros.

“‘Você tem uma risada especial quando está com papai’, me diz meu marido, ‘mesmo quando o que ele fala não tem graça.’ Reconheço a risada aguda que ele imita e sei que ela tem menos a ver com o que o meu pai diz do que com o fato de estar com ele. Uma risada que eu nunca mais vou dar. ‘Nunca mais’ veio para ficar. ‘Nunca mais’ parece muito injusto e punitivo. Eu vou passar o resto da vida com as mãos estendidas tentando alcançar coisas que não estão mais ali.”

Notas Sobre o Luto é uma leitura para ser sentida com força por todos aqueles que já encararam o vazio abismal de perder alguém de quem se sente falta todos os dias. E também por aqueles que apenas podem imaginar e temer esse sentimento. No fim, por tomos nós.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.


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1 comentário

  1. Fiquei mais curiosa para ler o livro. De fato, nesta pandemia, estamos vivendo o luto coletivo. “Quando alguém que amamos se vai, nossa mente corre solta pelas oportunidades que perdemos, as frases que não falamos, as coisas hipotéticas que poderíamos ter feito para que aquilo, de alguma forma, fosse diferente”… Perdi um ente e é muito real.

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