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Estela Sem Deus, de Jeferson Tenório, e a menina que sonha em ser filósofa

Em Estela Sem Deus, romance antecessor ao vencedor do prêmio Jabuti, O Avesso da Pele (2020), Jeferson Tenório apresenta com delicadeza a história de um jovem sonhadora, Estela, e a sua dura vida nas periferias de Porto Alegre e Rio de Janeiro na Era Collor.

Lançado pela primeira vez em 2018 pela editora Zouk, com relançamento pela Companhia das Letras, Estela Sem Deus é mais uma obra de Tenório a escancarar a truculenta realidade brasileira, sobretudo a opressão que é operada sobre a população negra. Assim como em O Beijo na Parede (2013), o autor opta por ter uma protagonista e narradora criança. Essa escolha estética e técnica é um grande desafio, pois requer uma certa simplicidade, tanto na escrita quanto nos próprios pensamentos de Estela, mas há de se atingir profundidade, tendo em vista os temas que Tenório desejou atingir com a obra.

O resultado é bem sucedido. Somos lembrados da pouca idade de Estela, principalmente no início do livro, em suas conversas com a prima, por quem nutre sentimentos mistos, típicos de alguém ainda muito jovem. Porém, também percebemos a maturidade que lhe é forçada, assim como à tantas outras meninas negras do Brasil. Com um pai ausente, uma mãe que trabalha como doméstica e tem nas mãos e braços as feridas causadas por uma tarefa tão desprestigiada e um irmão mais novo, Estela precisa crescer rápido.

Ao longo da narrativa, acompanhamos Estela nos percalços da sua adolescência e seu processo de amadurecimento. Questionadora, suas perguntas desafiam sua realidade, os sentimentos ambíguos em relação à família e a religião, elemento muito presente na narrativa. Deus, sempre evidente nos discursos religiosos que cercam a adolescente, torna-se um ausente, mais um entre tantas outras ausências.

Em meio a tantas faltas, como a figura do pai e a do Estado, as mulheres ocupam um importante lugar na obra. Na formação da identidade de Estela circundam diversas mulheres: a mãe, a avó, a madrinha. Todas compartilham a experiência da violência, do machismo, racismo, da pobreza, do trabalho doméstico, da interdição da vida escolar, da solidão, entre outras agressões que mulheres negras comumente sofrem. Há, no entanto, uma força que as move, uma resistência. Não á toa, figuram com relevância sem igual no cotidiano da protagonista, que as iguala a Deus:

“Deus não era homem. Deus sempre foi mulher (…). Deus era na verdade a minha mãe limpando o chão nas casas das madames. Deus era a minha mãe tendo de sustentar a casa sozinha porque meu pai nos esquecera. Deus era a minha tia cuidando do tio Jairo com derrame. Deus era Melissa querendo voar pela janela. Deus era a minha madrinha Jurema suportando o Padilha. Deus éramos nós sendo violentadas.” (p.206)

E a resistência movimenta Estela na narrativa. A menina sonhadora deseja ser filósofa, uma manifestação clara de sua objeção à realidade em que vive. As dificuldades que lhe são impostas, como a pobreza, a insegurança alimentar e de moradia e a impossibilidade de estudar são duros golpes para a jovem, afastando-a do seu sonho. Ainda assim, Estela mantém-se crítica e encontrando em sua realidade formas de construir saberes. “(…) eu já estava me tornando uma filósofa porque aprendi a observar” (p.180), afirma a personagem.

Assim como em O Avesso da Pele, há um gosto amargo na boca ao finalizar a leitura de Estela Sem Deus. As diversas violência visíveis e invisíveis cometidas diariamente contra a comunidade negra no Brasil e tão bem representadas na obra tornam a narrativa dura de acompanhar, mesmo que a escrita fluída de Tenório nos convide a devorar as páginas do romance. Porém, a tristeza que nos acompanha ao final da leitura, semelhante a que Estela sente em sua trajetória, não é uma tristeza paralisante, que se conforma com a realidade como está, mas que é motor para a mudança. E esta é uma das virtudes do livro de Jeferson Tenório; mais do que carregar ressentimentos de uma sociedade extremamente injusta, a narrativa nos convida a seguir em frente, ainda que nos lembre que a caminhada em direção a mudança é longa.


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