Categorias: LITERATURA

Neuroses a Varejo: Aline Valek nos acolhe em nossas solidões

Aline Valek, escritora e podcaster, é mestre em criar personagens ordinárias em suas rotinas ordinárias. Claro que documentar o ressurgimento de uma cidade e trabalhar numa base marítima são atividades não tão ordinárias — especialmente para nós que estamos todos os dias na frente de um computador —, porém, suas personagens estão imersas em seus dias, incapazes de olhar para além daquilo que as cercam.

Depois de dois romances, Valek lança, em 2021, Neuroses a Varejo, uma coletânea de três contos e uma novela, onde nos leva a conhecer quatro mulheres e as suas solidões. Por poucas e intensas páginas, conhecemos fragmentos das vidas de Priscila, Liliana, Leona e Núbia, somos apresentados às suas solidões, que acabam sendo também nossas. Ao colocar quatro protagonistas femininas, o público — e até o mercado editorial — pode esperar que sejam narrativas do universo dito feminino, histórias que só podem ser protagonizadas por mulheres por serem sobre suas vivências. Não é o caso aqui: temos apenas histórias de pessoas comuns, em suas rotinas, vivendo acompanhadas de suas solidões.

Apesar do contexto de hiperconexões proporcionado pela internet e suas redes sociais, Valek não condena a solidão de suas personagens e nem tenta consertá-las, e sim as reconhece, guiando-as por um processo de reconhecerem-se dentro de si, entendendo a origem dessa solidão e para onde estão sendo levadas. O que surpreende nas palavras de Valek é o confronto com a solidão, feito por algum elemento fantástico, que permite que a personagem olhe para si e entenda o que está acontecendo — ela que já estava tão afundada e nem percebe mais aquilo que está ao seu redor. Sem a condenação e o julgamento, essas mulheres se desenvolvem e crescem, quase como um processo terapêutico.

neuroses a varejo

Podemos entender a solidão de Priscila, em “Desaparecida”, como uma apatia ao mundo exterior, ao desaparecer aos poucos, sem que os outros percebam seus pequenos apagamentos. Em um primeiro momento, o medo de desaparecer a toma, levando-a encontrar com a mãe e perguntar sobre o pai que desapareceu — será que da mesma forma? Aos poucos, ao perceber como é capaz de controlar esse desaparecimento, Priscila aprende a gostar de sumir, mesmo que por pouco, até não se importar mais em ser solitária. Mas, ao perder o controle de como se apagar, perde o controle de contar como e porque isso acontece, de forma que é apagada de fato.

“Descobriu que desaparecer tinha um gosto peculiar, e refletiu sobre isso na descida de volta à vila, enquanto aos poucos seus braços voltavam a ganhar consistência. ‘Você pode começar a gostar disso’, Murilo confessou. ‘Desaparecer vicia’.”

Já Liliana, em “Gravidite Encefálica”, vive a solidão da vida adulta de quem só está tentando viver um dia após o outro — não há licenças poéticas, é apenas o fato de que é preciso levantar, trabalhar, pagar contas e seguir. Até ser surpreendida por uma criança, uma mini-Liliana, sendo obrigada a deixar sua rotina de lado para cuidar da criança. Aqui, não se cai no conto da maternidade e de um novo desejo de ter uma criança para criar, mas sim se reencontrar com a sua criança interior e anterior. Aquela que não era tão presa e que tinha permissão para se divertir, sem as preocupações da vida.

“Dava trabalho, mas era criativa, extrovertida e sensível de um jeito que espantava Liliana. Pensando bem, era muito parecida com ela. Talvez até nesse breve tempo de convívio ela tivesse reencontrado partes dela que o trabalho e as preocupações da vida adulta a fizeram esquecer.”

Pisando no território da ficção-científica, Leona, em “O que Sonham as Pílulas”, enfrenta as dificuldades de dormir um sono de sonhos tranquilos, em que ela não precise ver o ex-marido, a antiga faculdade e nem os colegas com suas vidas bem-sucedidas. Leona é aquela que se amargura e se arrepende das coisas que fez e também das que deixou de fazer, sempre procurando de quem é a culpa — dos outros, é claro. A personagem acredita que se isolar é a solução para não lidar com essas frustrações — só não contava que as lembranças, os pensamentos e a imaginação a perseguiriam até nos sonhos. Sonhos que a guiam para entender que só se pode seguir em frente, se confrontar aquilo que nos incomoda.

“Não é isso, Léo. Pode levar até Amante das Profundezas se quiser. A questão é: o passado não some enquanto você não tiver coragem de encará-lo de frente. Talvez nem todas as pílulas que você conseguir enfiar na sua bolsa possam resolver isso.”

Por fim, conhecemos Núbia, em “Nome Sujo”, uma garçonete que descobre que seu nome está sujo por uma dívida criada por outra pessoa — “o golpe tá aí, caí quem quer”. No caso, uma dívida criada por um cartão da loja Marisa e esquecido no fundo de uma bolsa emprestada para outra pessoa. Núbia, enquanto tenta quitar a dívida, se vê sendo excluída e rejeitada pelo cheiro que seu nome passa a carregar, vivendo uma solidão formada pela vergonha — desde o ambiente de trabalho a dates, até chegar ao ponto de não querer estabelecer relações com o outro. Seu nome é reconhecido por um status, que define que tipos de relação ela pode ter nessas condições. Ao conhecer Eduardo em um grupo de apoio, ela entende que a solidão imposta pelos outros não precisa ser sua — mas, se ela assim quiser, pode ser, até quando ela quiser.

“Núbia sentia muitas coisas por Eduardo, só não sentia mais o cheiro. O método do grupo funcionava mesmo: acostumar-se ao cheiro dos colegas devedores era também acostumar-se ao próprio cheiro, e o constrangimento do nome sujo evaporava.”

Ben Platt, em seu show Ao Vivo em Nova York (disponível na Netflix), ao compartilhar um pouco sobre o processo criativo de suas músicas, diz: “eu passo muito tempo comigo mesmo, com meus pensamentos, o que me deixa ansioso, ao mesmo tempo que só eu me conheço nessa intensidade”. Neuroses a Varejo, como o nome mesmo indica, são histórias de pessoas que são confrontadas por si mesmas — em um nível fantástico e sobrenatural — e que precisam se entender para seguir em frente com suas vidas.


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