Categorias: LITERATURA

A beleza na memória das ruínas: Cidades Afundam em Dias Normais, de Aline Valek

Fazendo um empréstimo das palavras da autora, Cidades Afundam em Dias Normais é uma história sobre o que sobrevive ao apocalipse. Diferente do cenário violento e extremamente dinâmico no qual estamos acostumamos a vivenciar histórias distópicas, na narrativa de Aline Valek o fim faz parte do cotidiano. Ele ocorre lentamente enquanto as águas engolem uma cidade fadada ao esquecimento. A distopia faz parte do cotidiano dos personagens, verdadeiros museus vivos que emprestam suas memórias distorcidas pelo tempo.

Aline Valek é uma escritora mineiro-brasiliense que compartilha sua herança do Cerrado em sua obra. Também é ilustradora, como mostra sua icônica ilustração de lobo-guará, estampado em seu mais recente romance. Cidades Afundam em Dias Normais, lançado em 2020, é o seu segundo romance publicado pela Rocco, sendo o primeiro outro mergulho na estética aquática: As Águas-Vivas Não Sabem de Si, lançado em 2016. Em sua mais nova obra acompanhamos o retorno de Alto do Oeste, uma pequena cidade fictícia, situada entre o Cerrado, BRs e um lago que um dia seria o responsável por sua decomposição.

Depois de dezesseis anos submersa e abandonada, Alto do Oeste ressurge em ruínas lamacentas, como consequência da seca que atingiu o lago que a consumiu. Tal notícia atrai os antigos moradores da cidade, que após a perda veem uma oportunidade para recomeço, principalmente pelo “turismo da desgraça” que tiraria de vez a cidade do esquecimento. Recebe até mesmo um novo título, armadilha para turistas: “A Atlântida do Cerrado”, atribuindo um aspecto mitológico àquela cidade pós-apocalíptica.

“A fórmula do sensacionalismo estava ao seu alcance: turismo da desgraça era um nicho com alta demanda, e Alto do Oeste estava bem servida nesse quesito. O cenário da destruição, as pessoas vivendo em situação primitiva, as histórias de gente que perdeu tudo naquele lugar, a oportunidade de debater o abandono do poder público e de investigar as consequências das mudanças climáticas naquela tragédia.”

A possibilidade da volta também atrai os olhos fotográficos de Kênia Lopes, a personagem que vai nos guiar pela reconstrução da cidade a partir de fotografias e depoimentos. Retornando ao lugar onde cresceu, a personagem é marcada pela digressão entre sua memória como adulta, fotógrafa e viajante sem um lar específico, e sua memória como criança e adolescente, vivendo suas primeiras experiências em um lugar que chamava de casa, mas que nada mais podia lhe oferecer. Junto de Facundo, um jornalista argentino que a acompanha em diversos trabalhos, os dois coletam as histórias das ruínas de Alto do Oeste. Inicialmente, a aventura tem como objetivo aproveitar o turismo sensacionalista, marcado pela paisagem, pela religião e pela cultura popular. Entretanto, as histórias daqueles que voltaram, e suas visões sobre como começou e de fato chegou o fim oferecem materiais muito mais profundos sobre a história da cidade.

Aline Valek - cidades afundam em dias normais

Essa nova chance para uma cidade em ruínas desperta curiosidade coletiva, e me fez indagar por que as pessoas retornam ao que já se foi. Machu Picchu recebe inúmeros turistas todos os anos, ávidos por conhecer o legado de uma antiga civilização. Atafona, um pequeno distrito do estado do Rio de Janeiro, chama a atenção de viajantes pelo mar engolindo lentamente a cidade. Essa beleza nos destroços e nas ruínas faz parte da reconstrução da memória coletiva e mostra o poder criativo que a destruição tem. Bakhtin defende que o esquecimento é estruturante, necessário para constituir novos sujeitos e sentidos, e por isso todo retorno à memória, seja por meio de relatos ou de fotografias, é reconstruído e moldado por outros olhos. O que vemos profundamente marcante na construção do ambiente e dos personagens em Alto do Oeste.

A narrativa de Aline Valek é profundamente imagética, tanto ao trabalhar a fotografia como algo bastante poético, quanto pelas imagens que suas palavras germinam em nossa imaginação. A maneira como ela separa seu livro em “galerias” (galeria I: seca e galeria II: água) remete a esse campo da fotografia e da exposição. A fotografia no livro vira um processo de repetição e retorno, até alcançar o seu momento perfeito, como mostra a icônica cena do retrato do lobo-guará, símbolo do Cerrado e também símbolo de uma realidade ameaçada, uma realidade em extinção. As fotografias são recriadas em nossa imaginação leitora, graças a cor local que testemunha uma parte tão rica do Brasil.

“Henri Cartier-Bresson dizia que fotógrafos são aqueles que lidam com coisas que estão continuamente desaparecendo; e que, uma vez que elas desaparecem, não há mecanismo no mundo que as faça reaparecer. Resta apenas a fotografia e, dentro dela, um momento extinto. Por isso, diante de uma foto, nada acontece; há apenas uma cena a se observar. Fotografias são imagens incapazes de se mover. Quem as põe em movimento é quem observa.”

Em Cidades Afundam em Dias Normais os personagens são como museus a serem visitados, e nenhum deles ilustra melhor tal característica como a professora Érica, vista pelos alunos da época de escola de Kênia como uma imortal. Professora de história, descendente dos xavantes de Alto do Oeste, ela “nunca esquece”. É a que mais luta durante a destruição lenta da cidade, administrando uma escola também fadada a afundar no lago ou secar em insumos. É ela quem apresenta os cadernos de memória de Tainara, uma antiga amiga de Kênia, que escreveu sua história enquanto a cidade se desfazia. Os cadernos de Tainara, uma menina tímida e marcada por perdas durante a vida inteira, dividem o espaço da narrativa em terceira pessoa, atribuindo um olhar mais intimista e moldado nos olhos de uma adolescente presenciando seu mundo inteiro desabar, aglomerando suas perdas. É do seu caderno que saem as palavras mais repercutidas do livro, a constatação do que significa o título “cidades afundam em dias normais”: a banalização das tragédias.

“A gente se acostuma depois de um tempo. Se acostuma com o caminho até o colégio, com os programas da TV, com as cidades sumindo, com os blackouts, com apanhar sem nenhuma explicação. Isso me assusta um pouco. Se acostumar é não conseguir mais diferenciar as tragédias dos dias normais.”

Essas linhas batem de frente com o próprio cenário distópico de 2020, o ano de lançamento deste livro. Com a naturalização de mortes diárias e incêndios constantes atacando a biodiversidade do Cerrado, a ideia de não conseguir diferenciar as tragédias dos dias normais evocou essa narrativa na minha memória, feito um fantasma. Aline Valek torna um cenário distópico muito mais realista e palpável, afinal desde sempre cidades afundam no Brasil, pessoas recomeçam suas vidas depois de perder tudo, e não há um momento de reconstrução, pois o tempo é cíclico, as tragédias se fundem. E é esse elemento real que torna sua história tão fantástica. Uma narrativa apocalíptica para quem gosta de histórias construídas por memórias, digressões, e por narradores que enxergam seu passado com outros olhos, e por isso não são confiáveis. É uma história sobre o que fica depois do fim.


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