Categorias: TV

A escolha do feminino em Chernobyl

Chernobyl, minissérie da HBO, o grande acerto do produtor Craig Mazin e resultado de um trabalho que está acontecendo desde 2015, foi a primeira série em muito tempo que me fez abrir um arquivo em branco e começar a escrever no exato segundo em que terminei.

Em poucas palavras, Chernobyl conta a história do que aconteceu a partir do segundo em que Anatoly Dyatlov (Paul Ritter) tomou a decisão que mudaria a história de Pripyat, uma cidade na antiga União Soviética (onde hoje é a Ucrânia, quase fronteira com a Bielorrússia), para sempre. Ou seja, assim que a série começa, o acidente aconteceu há poucos segundos, nós não precisamos esperar o assunto se desenvolver e culminar na explosão. O ar já está pesado, e os funcionários, ofegantes.

No primeiro episódio fomos apresentados aos personagens que seriam chave pro desvendar de toda essa história, tais como o próprio Dyatlov, Boris Shcherbina (Stella Skarsgard) e Valery Legasov (Jared Harris), mas é no segundo episódio que a mágica da escolha acontece: a escolha de gênero. Para entendermos tudo que acontece até esse ponto, precisamos caminhar pelo ponto que influenciou as escolhas de Mazin: cuidado.

Chernobyl

O primeiro cuidado está no quanto era importante para Mazin que tudo nessa série fosse exatamente do jeito que era na União Soviética, especialmente por não termos tanta representação fiel e sem romantismo daquele período. É aí que entram os produtores de objetos e figurinistas da série. É tudo autêntico, até o último tijolinho.

O segundo cuidado está na língua. Era importante que não fosse uma Rússia caricaturada, era importante que a série não parecesse uma paródia de si mesma. Para isso, Craig pediu para que os atores falassem com seus próprios sotaques, ou seja: irlandeses seriam irlandeses, britânicos seriam britânicos, e assim por diante. O único sotaque a ser mudado foi o do americano, pois, nas palavras dele, “essa seria a única coisa que tiraria a imersão de uma audiência americana: ouvir o próprio sotaque.” Isso fez com que os diálogos dos personagens não se perdessem no meio de uma atuação forçada.

O terceiro cuidado, e a verdadeira razão pela qual estamos aqui: o cuidado com a verdade. Não apenas em prédios e roupas, mas com relação às pessoas, e sobretudo as pessoas que realmente existiram.

Personagens como Shcherbina e Dyatlov são bem completos em si mesmos mas, em contrapartida, Legasov não é. No segundo episódio de The Chernobyl Podcast (um podcast criado para discutir os episódios da série mais a fundo), Craig Mazin explica que, na série, Legasov era um especialista em reatores RBNK, enquanto na vida real, ele não era, e muito de seu conhecimento e de suas decisões foram tomadas em equipe, com pessoas que eram mais experientes que ele, e o questionavam a todo instante. Surgiu então a necessidade de ter um personagem que representasse todas essas pessoas que questionavam a autoridade de Legasov e que soubessem mais do que ele sobre o reator com o qual estavam lidando. Foi nesse processo que Ulana Khomyuk nasceu.

Chernobyl

Interpretada por Emily Watson, Ulana é uma mulher que nunca existiu, e que serviu não apenas para condensar toda essa academia de cientistas que trabalharam por Chernobyl em uma só personagem que tivesse suas próprias dimensões, mas também para mostrar o quão progressista a União Soviética podia ser, já que, historicamente, mesmo sendo extremamente conservador em seus costumes, as mulheres eram muitas, senão maioria, na Ciência e na Medicina. Era importante que a personagem a questionar Legasov fosse uma mulher porque, na vida real, elas realmente faziam isso sem serem questionadas.

É muito interessante toda a cena em que Ulana caminha pelo hospital que vem tratando as vítimas do desastre e percebemos pouquíssimos homens, e mesmo quando eles estão lá, são corrigidos por mulheres que sabem mais e não estão pra risadinha. É também nessa cena em que Ulana passa dos limites no que diz e é presa pela KGB, mas por falar demais, e não por ser uma mulher. Mas Chernobyl não acerta apenas nas personagens que não existem, a série acerta nas personagens que existem também, como Lyudmilla Ignatenko (Jessie Buckley), esposa de Vasily Ignatenko, um dos primeiros bombeiros a atender o chamado da Usina, quando ela ainda estava sendo apenas comunicada como um “incêndio no telhado.”

Chernobyl

A personagem de Lyudmilla é responsável por humanizar o desastre, que por muito tempo é visto apenas como “uma explosão que foi muito grande mas que depois ficou tudo bem”, nas palavras do próprio Craig. É com ela que nos apegamos a personagens cujo destino já está traçado e colocamos rostos humanos e vidas humanas na tragédia, simplesmente por serem pessoas reais. Isso talvez seja o que faz a série ser tão densa e pesada.

Em Vozes de Chernobyl, livro de Svetlana Aleksiévitch que conta histórias em primeira pessoa, ela acende uma luz no que a gente nunca pensa e que a série trouxe: cada dia Vasily era uma pessoa diferente, e no espaço de duas semanas ela viu seu marido definhar sem ter tempo nem para chorar sua morte até que ela o visse sendo enterrado, como muitos que morreram pela radiação, em caixões de zinco e cobertos com cimento. Lyudmilla entrega uma pitada de amor, dedicação e sensibilidade que nunca vimos em histórias sobre desastres causados por homens.

Em conclusão, Chernobyl é uma história que poderia ser escrita por americanos e ser sobre “homens maus” soviéticos e seus erros, mas que por questões pequenas de cuidado, acabou se tornando uma história onde nós somos abraçados e movidos por personagens femininas muito bem representadas.

3 comentários

  1. Íncrível! Adorei o post e ler sobre esse lado da série. Admito que não pretendia assistir, mas percebo que pode ser importante justamente por todo esse cuidado na produção, sem falar que não é só mais uma coisa sensacionalista sobre o ocorrido. Gostei de saber do podcast também, que pretendo ouvir enquanto assisto. Enfim, me acrescentou bastante, obrigada!

  2. É interessante esse trecho de que existiam muitas cientistas na URSS na época. Tem fonte? Porque eu li em outros sites que falaram da série que eram praticamente todos homens. De qualquer modo, gostei muito de escolherem uma mulher pra representá-los.

    1. Oi, Carol! A minha fonte foi o podcast do Craig, The Chernobyl Podcast, artigos na internet mesmo como um do blog do Smithsonian, e o livro da Svetlana 🙂

Fechado para novos comentários.