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O Abrigo, um filme de horror sem monstro definido

O horror pode ser definido como um gênero que usa medos primários para provocar respostas emocionais. Assim, em muitos casos, os filmes assumem o papel de representar aquilo que os saberes acadêmicos não conseguem explicar, sendo capazes de dar vazão às angústias inconscientes que atravessam a humanidade. Isso porque o escapismo proporcionado pelas telas faz com que visualizar estes temores seja prazeroso, ainda que a sua presença no cotidiano tenha potencial para se tornar intolerável.

Logo, parte do que faz com que o gênero funcione é a maneira como ele permite a elaboração dessas questões sem prejuízos para o público. Talvez, o horror seja o único estilo a compreender que o medo é parte do que nos constitui enquanto sociedade, bem como um sentimento que contribui para a evolução humana, uma característica que persiste mesmo quando os longa-metragens lidam com a possibilidade de extinção daquilo que conhecemos como mundo.

O Abrigo

Dos zumbis de George A. Romero, uma representação da morte em vida após o abandono das convenções sociais, às catástrofes naturais que tornam a Terra inabitável, este tipo de filme nos coloca frente a frente com a impotência, retirando completamente a falsa ideia de que é possível controlar os nossos entornos. Embora algumas vezes esses longas sejam diretos na sua abordagem, especialmente quando seguem pelo caminho homem versus natureza, em outras ocasiões assumem roupagens propositalmente ambíguas para provocar reflexões maiores, como acontece em O Abrigo (Take Shelter, 2011), de Jeff Nichols.

Neste filme, acompanhamos a vida comum de Curtis (Michael Shannon) ao lado de sua esposa e filha. Os três residem em um local remoto de Ohio e participam das atividades da comunidade tanto quanto possível. Porém, essa normalidade é interrompida quando Curtis começa a ter sonhos vívidos e alucinações a respeito de uma tempestade capaz de devastar a região. Então, ele se torna obcecado pela construção de um abrigo subterrâneo no quintal da família, algo que chega a comprometer o seu trabalho, as suas amizades e a sua relação com Samantha (Jessica Chastain).

Apesar da sinopse com elementos reconhecíveis, O Abrigo toma um rumo pouco usual pela maneira como o roteiro, também assinado por Nichols, opta por construir o protagonista: ao mesmo tempo em que ele se rende às suas “fantasias”, existe racionalidade por trás dos seus atos. Assim, primeiramente, Curtis cogita ter herdado a esquizofrenia de sua mãe, que vive em um hospital psiquiátrico desde os 30 anos. Entretanto, ainda que ele reconheça a possibilidade de uma doença mental e faça esforços para verificar esta hipótese, o protagonista não consegue descartar completamente o conteúdo das suas visões. Desse modo, assistimos a escalada da sua paranóia enquanto, simultaneamente, cogitamos a possibilidade de que ele esteja certo.

O Abrigo

Parte do que nos coloca ao lado de Curtis está ligado à maneira como Jeff Nichols filma a paisagem interiorana. Com planos abertos imponentes, que nos fazem confrontar o quanto a vida humana é pequena frente a fúria da natureza, o diretor endossa a visão do protagonista e a ideia de que existe uma ameaça. Além disso, mesmo quando o texto dá a entender que uma cena se passa no período da manhã, os cenários são escuros e pouco acolhedores. Existem nuvens densas no céu e, por vezes, pássaros voando em bandos. Logo, Curtis habita um meio inóspito que alimenta os seus temores. Ainda assim, ele nunca sucumbe ao descontrole, uma vez que segue tentando extrair sentido daquilo que vive por entender que, independente da chegada da tempestade, as suas atitudes não impactam somente a sua vida. Então, mesmo quando adota comportamentos que arriscam a subsistência da sua família, como pegar dinheiro emprestado para a construção do abrigo, ele ainda mantém a esposa e a filha em mente. Escolhas como essa fazem com que O Abrigo nunca perca a sensibilidade na abordagem das suas temáticas. Afinal, da mesma forma que é possível que o protagonista esteja certo sobre a catástrofe, é possível que ele esteja sofrendo com os primeiros sinais de uma doença psiquiátrica, um assunto que demanda tato.

É possível afirmar que O Abrigo é um filme de horror sem um “monstro” definido, algo arriscado e difícil de executar, especialmente quando a direção opta por transforma-lo em um slow burn, ou seja, algo que depende de tempo para se desenvolver antes de recompensar o espectador pelo seu “esforço”. Em um contexto que valoriza retribuições rápidas e ritmos acelerados, acompanhar este tipo de história pode ser frustrante para uma parcela do público, mas, sem dúvidas, oferece gratificações que justificam cada minuto da metragem. Isso porque a cena final de O Abrigo pode ser moldada a crenças individuais e proporciona discussões inesgotáveis. Caso você acredite que, o tempo todo, assistiu a um filme sobre um homem com a saúde mental debilitada, o desfecho satisfaz a necessidade de ver Curtis amparado. Por outro lado, aqueles que embarcaram na narrativa da tempestade, são recompensados pela confirmação de que estavam certos. Por fim, quem se manteve em dúvida durante toda a projeção continua sem respostas claras, algo que torna o filme mais marcante por fazer com que ele permaneça vivo depois que os créditos sobem.

O Abrigo