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Entre a tradição e a modernidade: O Guarda Roupa Modernista, de Carolina Casarin

Em O Guarda Roupa Modernista, publicado pela Companhia das Letras em 2022, a figurinista e professora de história do vestuário e da moda Carolina Casarin recostura os vestígios do guarda roupa do casal icônico do modernismo, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. O livro é resultado da sua pesquisa de doutorado realizada no programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nesse livro, Carolina combina rigor científico com clareza e riqueza de informações para nos contar a história de um dos casais mais interessantes da nossa cultura brasileira através dos seus respectivos guarda-roupas.

Logo no início do livro percebemos o esforço de pesquisa admirável realizado por Carolina para a sua empreitada, visto que a maioria das peças de roupas do casal não foram preservadas enquanto um acervo e a pesquisadora teve que se basear em acervos documentais e fotográficos, analisando fotos, gestos, posições corporais, bem como peças de roupas, correspondências, entrevistas e reportagens em jornais. Para a autora, importa não somente as obras de Tarsila e Oswald, mas também as suas aparências, especialmente enquanto “o casal Tarsiwald”, que se manteve juntos entre 1923 e 1929, e tornaram-se representantes do primeiro movimento modernista. Nesse processo, os dois modelaram conscientemente suas formas de vestir, andar e se posicionar para conquistarem mais prestígio na high society da qual faziam parte. Por isso, sua pesquisa vai muito além da famosa Semana de Arte Moderna de 1922 e nos leva a conhecer um casal excêntrico, irreverente e contraditório.

Tarsiwald é o apelido dado ao casal em 1925 por Mário de Andrade, grande amigo dos dois e também um representante do modernismo brasileiro. Tarsila e Oswald começaram a se relacionar em 1922, logo depois de se conhecerem e formarem o Clube dos Cinco com Mário de Andrade, Anita Malfatti e Menotti Del Picchia, com o intuito de produzirem juntos e pensarem o cenário cultural brasileiro. É Anita Malfatti que apresenta Tarsila ao grupo que se torna inseparável. Nos primeiros capítulos minha adorada mamãe e némesis, sibila, musa, tarsila, conhecemos um pouco da biografia de cada um. Enquanto Oswald, o poeta, era irreverente e divertido a ponto de incomodar seus pares da elite paulista, Tarsila é definida por todos quase como um anjo, um mistério da natureza: linda, elegante e, ao mesmo tempo, simples. A aparência de Tarsila somada às suas roupas era o seu grande cartão de visitas. Os dois possuem origens ricas e passaram um tempo na Europa quando jovens, bancados pela família, para se cultivarem, terem contato com outras culturas e, no caso de Tarsila, para estudar pintura. A autora pontua que é essa relação que os dois possuem com Paris que definem seus gostos e o culto à vida moderna: a cidade parisiense, a vida boêmia e culta encantam os dois brasileiros que queriam criar uma identidade brasileira que não fosse definida pela Europa mas, paradoxalmente, que partisse dela.

guarda roupa modernista

Essa busca de uma identidade nacional mas com forte influência europeia é a marca do primeiro movimento modernista brasileiro, durante a década de 1920, do qual Tarsila e Oswald fazem parte. Mais especificamente, do modernismo paulista, ainda mais marcado por contradições, visto que apesar do desejo de modernização eram um grupo de pessoas abastadas ligadas às classes hegemônicas da Primeira República. Carolina cita o sociólogo Octavio Ianni para definir esse contexto da Semana de Arte Moderna de 22: “parece que o Brasil começa a ingressar no século XX nesse ano” (Pág. 62), ou seja, 22 anos atrasados do início do século. As mudanças, os ares de novas ideias da modernização tinham chegado finalmente ao Brasil e os modernistas brasileiros eram os responsáveis por trazê-las. Carolina pontua que a Semana, talvez, tenha sido um primeiro momento de organização de um grupo sobre as artes brasileiras.

No capítulo 4, etiqueta modernista, como usar, Carolina nos mostra as regras de vestimentas do casal e dos outros modernistas, que seguiam um forte decoro: era preciso se vestir adequadamente para cada evento. Mas Oswald, com sua personalidade irreverente e múltipla, quebrava algumas regras desse decoro, incorporando cores ao seu vestuário, por exemplo. Em 1923, o casal Tarsiwald viaja para a Europa juntos e é a partir dessa viagem que a carreira dos dois muda e as formas de vestir dos dois se consolidam como parte do projeto do casal, analisado pela autora no capítulo 6, a grife tarsiwald. Na Europa nesse momento, segundo Carolina, o autor é mais valorizado que sua obra, então é preciso investir nas vestimentas como parte do trabalho.

A partir dessa viagem, Tarsila consolida laços com o importante costureiro francês Paul Poiret, conhecido por suas peças irreverentes e criativas. Tarsila passa a se vestir chez Poiret exatamente porque queria essa irreverência e criatividade na sua própria figura, visto que ela construiu sua carreira sabendo que sua aparência chamava atenção e era preciso utilizar isso a seu favor. Sua beleza e presença de espírito era muito mencionada nesses circuitos artísticos que o casal frequentava, então era preciso um projeto de indumentária que estivesse à altura. Mas, a autora pontua que há nessa escolha de Poiret também mais um exemplo da mistura do antigo e do moderno no casal, visto que o francês estava em declínio, atrasado em relação às atualidades da sua época. Nas palavras de Carolina:

“A relação do casal Tarsiwald com a maison Poiret expõe a riqueza de aspectos contraditórios que estão na base de nosso modernismo: os trânsitos entre tradição e modernidade, as negociações — com os agentes das vanguardas artísticas — em torno do gosto antiquado das elites brasileiras e o próprio gosto tradicional de Tarsila e Oswald. A escolha por Poiret também manifesta, enfim, uma aparência que esteve na moda e exibiu uma modernidade fora de moda” (Pág. 131).

Carolina reconstrói esse contexto contraditório do Brasil entrando na modernidade atrasado através de diversas fotos do casal Tarsiwald, grupos de amigos e figuras importantes da classe cultural e artística das primeiras décadas do século XX no Brasil. Analisando detalhadamente as peças de roupa de Tarsila, suas luvas, chapéus, e adereços conseguimos imaginar a elegância retrógrada desse grande nome da nossa cultura, bem como a figura irreverente de Oswald. A imagem 17, no miolo do livro, por exemplo, traz o Flutê, usado por Tarsila na sua primeira exposição do Brasil, em 1929. Há também o corpete do vestido de casamento de Tarsila, bem como os trabalhos de Tarsila e alguns de Oswald: os retratos pintados pela artista de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, seus autorretratos e um dos poucos projetos conjuntos do casal (além deles mesmos) que é a capa do livro de Oswald, Pau-Brasil, ilustrada por Tarsila.

Na página 150, podemos ver mais detalhadamente a foto que estampa o livro de Carolina e a explicação sobre as vestimentas: enquanto Tarsila aparece elegante em um traje conhecido como riga, com elementos do vestuário da Europa Central, Oswald está mais descontraído em um paletó esporte muito utilizado pela juventude rica norte-americana do pós-Primeira Guerra Mundial. Os dois estão em um convés de um navio indo ou voltando de Paris, provavelmente (Pág. 152).

Em o entourage se desfaz, último capítulo do livro, acompanhamos o final da relação de Tarsiwald e do grupo de amigos modernistas. Em 1928, o casal já não tinha mais renda para sustentar seu estilo de vida de festas, viagens e compras de roupas de luxo. Nesse mesmo momento, a autora pontua que surge na high society paulista o movimento antropofágico que se pretende uma resposta à “parca safra literária posterior à Semana” (Pág. 213). É também em 1928 que Tarsila pinta um de seus quadros mais famosos, o Abaporu, coroando-a como a madrinha da Antropofagia, em um momento da sua carreira “mais interessante, original e critivo”, na visão de Carolina. Os contornos do movimento antropofágico são de humor e violência e o grupo e o casal Tarsiwald acabam: Mario de Andrade e Oswald se afastam; Oswald se apaixona por Pagu, uma moça mais jovem que o casal cuidava quase como uma filha, e deixa Tarsila.

Carolina faz um movimento inédito ao tratar das contradições do modernismo brasileiro a partir do casal Tarsila e Oswald e do projeto estético que os dois compartilharam, de criar uma brasilidade, uma identidade cultural nacional utilizando não somente suas obras, como também suas aparências. Nascidos e criados na alta sociedade brasileira e frequentadores da high society de artistas, intelectuais e políticos, Carolina nos mostra suas contradições através de uma pesquisa original e bonita sobre as aparências, já que o verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível, como disse Oscar Wilde.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza

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