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Monstros e seres fantásticos: as mulheres de Juliana Rojas

O cinema de horror, no Brasil, se divide entre aquele que herda o gore e sua explicitação, realizado no cinema marginal com personagens necrófilos e canibais; e aquele que faz uso do terrir, o uso cômico de criaturas, originalmente, aterrorizantes, como a múmia, o lobisomem e o vampiro. O horror brasileiro contemporâneo, reformulou-se como gênero, agora usando elementos e estéticas do horror justaposto à questões cotidianas.

A forma do curta-metragem demanda ser pensada, executada e refletida com suas características e privilégios próprios. Compara-se as formas cinematográficas com as literárias, não é possível resumir um romance a um conto, sem que este saía prejudicado, perdendo a potencialidade de sua forma.

Devido ao breve tempo de duração, o curta-metragem não é atraente para o mercado tradicional de distribuição, criando a potencialidade para experimentação, podendo ousar em áreas que o cinema comercial não é capaz. A princípio, esse modelo tornaria as produções mais acessíveis, porém, no contexto brasileiro, o curta-metragem restringe-se a um espaço de experimentação, como um rito de passagem na produção audiovisual, principalmente no meio universitário, quando deveria ser visto como uma possibilidade de linguagem e produção. No cenário atual do cinema brasileiro, temos alguns nomes que transitam de formato a fim de experimentar estéticas e temáticas, sendo um deles, Juliana Rojas.

Juliana Rojas

A readequação do gênero de horror, aliada à forma do curta, possibilita a abordagem de diferentes assuntos, como a feminilidade e o papel social da mulher — temáticas constantemente abordados pela diretora. Cada assunto é abordado pelo encontro entre a realidade, a monotonia da rotina com o fantástico ou sobrenatural, causando o estranhamento e suspense, podendo deixar finais abertos, ciclos viciosos ou trágicos. O horror do filme é o medo da sociedade de abordar e refletir tais assuntos, que questionam o tradicional.

A mise-en-scène possibilita o encontro dos elementos e da estética do horror com o banal e o tédio da realidade. A montagem e a trilha sonora são cruciais para que isso aconteça de forma plena, conduzindo tanto o personagem e o espectador, proporcionando, em alguns momentos, o alívio cômico. O horror do filme torna esses assuntos em algum questionamento do status quo e da sociedade tradicional.

A direção de Rojas é reconhecida por construir e manter a tensão por todo o filme. Com reconhecimento internacional, seus filmes trazem personagens femininas, presas no tédio de suas rotinas e de suas obrigações, como casamento, maternidade e, quando existente, trabalho se dão de encontro com o místico ou o mórbido para abordar essas questões consideradas femininas.

A mulher no gênero do horror é representada de duas formas, como monstro ou como vítima. Uma das imagens criadas pelo cinema é a mulher em perigo, que costuma ser atacada por um ser sobrenatural, tido como masculino, e que precisa de um herói. Nesses casos, tanto o herói quanto o monstro são engrandecidos, enquanto a mulher-vítima é diminuída ou esquecida. Por outro lado, há a construção do monstro-feminino, que ao contrário do monstro-masculino, construído de forma grandiosa, é feita para criar choque, rejeição e desgosto. Ambas as construções se utilizam das condições sexuais da mulher — a pureza é associada a vítima, enquanto a monstruosidade é associada a promiscuidade.

O reconhecimento cinematográfico de Rojas inicia-se em O Lençol Branco (2004), com a trágica morte de um bebê que questiona o desejo romantizado pela maternidade. A morte de um bebê, por si, é um assunto duro e carregar a causa da morte na mãe é o motivo do horror. A mise-en-scène é a peça central para a construção desse horror. Antes de lidar com a morte do bebê, Rojas traz a depressão pós-parto para a tela. A maternidade compulsória, que impõe que ter filhos é a melhor coisa que pode acontecer na vida de uma mulher, rejeita que a depressão exista e seja retratada.

A falta de trilha sonora, no início, constrói a ideia da maternidade solitária de Cecília (Clarisse Kiste), tendo unicamente o choro do bebê na madrugada, que ela deixa ressoar por um tempo, evitando lidar com a sua realidade. Depois, o único som da casa deixa de existir, deixando Cecília no silêncio da madrugada, que é preenchido pelo som da televisão, criando a atmosfera de suspense que dura o filme todo.

Cecília é apresentada como mãe e como filha, apenas. Não é possível saber sobre sua profissão, seus relacionamentos, sua sexualidade. Sabemos, apenas, que ela teve um filho, mas não é certeza que ela queria ter esse filho, se foi de um relacionamento que acabou, um encontro casual. Após a morte, Cecília ainda retira o leite do seio, mas logo depois o joga na pia com raiva, sendo mais uma representação de seu conflito com o desejo pela maternidade. Assimilar maternidade e morte vai para longe do convencional, assim como tratar da depressão pós-parto; Rojas faz isso de maneira sutil, mas firme, ao mesmo tempo.

Posteriormente, Rojas dirige Um Ramo (2007), trazendo outra personagem feminina que tem sua crise internalizada diante os outros personagens, mas é externada ao espectador. Clarisse (Helena Albergaria), mãe, esposa e professora infantil, é apresentada como uma mulher apática e entediada, até que o fantástico habita nela, ao ter um ramo nascendo em seu corpo.

Em primeiro momento, Clarisse não entende o que está acontecendo e rejeita compartilhar com qualquer outro personagem, rejeitando até o nascimento de outros ramos. O elemento fantástico causa o suspense nela e no espectador, ambos sem ter uma explicação objetiva do que acontece, a crise de Clarisse pertence apenas a ela. O fantástico tem efeito diretamente para ela, sem afetar o cotidiano das demais personagens. No meio do filme, as mudanças causadas no corpo, pelo nascimentos de outros ramos e raízes, tornam-se mais evidentes para as outras personagens, que se dão o direito de opinar, criticar e tocar o corpo de Clarisse.

Seguindo para o final do filme, as funções femininas de Clarisse (esposa, mãe e professora) são deixadas de lado para focar no conhecimento do corpo e o que está acontecendo com ele. Aqui temos o ápice da personagem feminina. No contexto de horror do filme, ela é a fonte, o fantástico emana dela, e o principal afetado é ela. O fantástico surge para a feminilidade e para o conhecimento de um corpo, de uma forma não erótica. Rojas traz para a tela o conhecimento do corpo feminino, um corpo que sente, que se transforma e que tem direitos. Esse conhecimento do corpo físico é subjetivado para o conhecimento de um corpo político, que a mulher existe para além de um status quo.

Por fim, O Duplo (2012) é o curta mais premiado de Rojas, trazendo a lenda do doppelgänger para o cotidiano de Silvia (Sabrina Greve), uma professora de matemática de uma escola católica. O filme está níveis acima em questões técnicas, como fotografia, direção de arte e trilha sonora, aliados a direção consolidada de Rojas, eleva o nível do horror e do suspense em relação aos anteriores. As personagens, em sua maioria femininas, são conduzidas por uma trama mais tradicional do horror, saindo do mistério e suspense inicial para um final violento, marcado pelo gore.

Como Rojas costuma fazer, o cotidiano da professora Silvia entra em choque com o fantástico do seu duplo, que pela lenda é um presságio de morte. Inicialmente, cria-se o suspense para entender a origem desse duplo e para onde ele conduzirá a personagem, que é afetada psicologicamente. A princípio, o curta seguiria o tradicional suspense em compreender o fantástico no meio da realidade, mas o filme, agora, traz a violência, a partir da cena de sexo, que surge do nada na tela, o que não aconteceu nos outros filmes de Rojas. Mais uma vez, a presença do corpo nu não está para o prazer visual ou pela erotização por ele mesmo. Utiliza-se do ato sexual para trazer a violência para dentro da trama, mesmo que ele aconteça de forma consensual.

A explicação do surgimento do duplo não é dada nem à Silvia e nem ao espectador, o que sustenta a tensão até a cena em que a professora Vanda (Gilda Nomacce) puxa freneticamente o elástico na pasta, começando de forma lenta, mas crescente, até seu ápice violento. A partir dessa cena, o curta já muda a tensão de entender a origem do duplo para o desenrolar do que pode acontecer com a sua presença, até os momentos de violência.

A construção das personagens femininas nos filmes de Rojas mostra-se consciente, trazendo mulheres, em um primeiro momento, presas à uma convenção, que encontram-se com o fantástico, carregando na subjetividade questionamentos ao tradicional, mas tendo o equilíbrio entre a realidade e o fantástico, sendo crível a coexistência deles.

A imagem da mulher no gênero de horror, tradicionalmente, segue o conceito de castração, a imagem feminina deve existir para o prazer masculino, exclusivamente, necessitando que a imagem feminina seja significante do outro masculino. Rojas redefine a imagem da mulher, com a representação da mulher sem estar relacionada em significar o outro masculino, em que a personalidade e a sexualidade feminina não é generalizada ao entrar em contato com a figura masculina, o que acontece raramente, sendo ela responsável por se significar, unicamente.

A narrativa que, tradicionalmente, teria personagens masculinos em primeiro plano, é criada para mulheres, interagindo umas com as outras. O horror é construído a partir delas, por meio de códigos e elementos fantásticos, aliados à realidade, com o objetivo de trazer discussões sociais. As críticas e reflexões são feitas pela subjetividade do espectador, devido à forma curta, que se constrói em menor duração, mas sem perder a potencialidade de criar metáforas, deixar finais abertos e reflexivos ou da criação de suspense até o fim. O cinema de Rojas foge do tradicional com discurso, formas e personagens, proporcionando realizações reconhecidas dentro e fora do Brasil.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!