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Original Sin: trauma, justiça e quem deve pagar pelos nossos pecados?

Seguindo a não-tão-nova tendência do entretenimento, este ano foi lançada a primeira temporada do novo reboot de Pretty Little Liars, chamado de Original Sin. Apesar de alguns pontos da história original se manterem nesta nova versão, Original Sin traz um novo rumo e reorganiza o enredo principal que acabara se perdendo ao longo das sete temporadas da sua versão original e de suas outras versões que não viveram o suficiente para explorá-las.

Pretty Little Liars prometia ser muita coisa, muito antes de seriados como Riverdale e Nancy Drew serem lançados, e, no início dos anos 2010, era o que prendia uma legião de adolescentes e fãs antes mesmo de o streaming se tornar o que é hoje. A premissa original girava em torno de quatro amigas, Aria (Lucy Hale), Spencer (Troian Bellisario), Emily (Shay Mitchell) e Hanna (Ashley Benson), que eram ameaçadas via mensagens de texto por alguém que se identificava como “A” na mesma época em que a quinta integrante do grupo, Alison DiLaurentis (Sasha Pieterse), desapareceu e foi declarada morta. Ao longo das sete longas temporadas, a premissa foi se perdendo e novos enredos foram adicionados, o que também levou a criação de um spin-off em paralelo com a série, mas todos sofreram com a perda significativa do público devido a falta de entrega daquilo que foi prometido inicialmente.

Original Sin traz cinco protagonistas nos tempos atuais que descendem de um grupo também de cinco garotas que aparentam estar envolvidas de alguma forma em um suicídio que aconteceu na virada do milênio. Ao longo da temporada será explorado a união entre elas devido ao trauma compartilhado, além de falar sobre como o trauma geracional pode afetar nosso senso de si.

Atenção: este texto contém spoilers!

A série inicia em uma festa do ano novo em 1999 com a jovem Angela Waters (Gabriella Pizzolo) em seus últimos momentos de vida antes de se matar e deixar cinco garotas traumatizadas além de um pouco culpadas pelo ocorrido. Vinte anos mais tarde, Imogen (Bailee Madison) encontra sua mãe, Davie (Carly Pope), morta na banheira de casa com um “A” escrito em sangue na parede. Este evento desencadeia acontecimentos e outras mortes macabras que levam os personagens a acreditar que uma vingança está sendo cobrada com anos de atraso, afinal, vingança é um prato que se come frio… ou seria a justiça?

Após o suposto suicídio de sua mãe, Imogem passa a viver com Sidney Hayworthe (Sharon Leal) e sua filha Tabby (Chandler Kinney), mas é só quando elas ficam presas na detenção com Mouse (Malia Pyles), Faran (Zaria) e Noa (Maia Reficco) após serem todas acusadas de praticar bullying contra Karen e Kelly Beasley (Mallory Bechtel), que as cinco descobrem algo em comum: todas estão recebendo mensagens de texto anônimas e vendo coisas estranhas acontecendo ao seu redor.

Quando o padrão de seriados adolescentes são as personagens adultas serem secundárias, invisíveis, negligentes e até inexistentes, em Original Sin vemos como quem somos na adolescência constrói quem nos tornamos quando adultos e que nossos erros e atitudes ditam o nosso caráter pelo resto da vida baseado se temos orgulho ou arrependimento do mesmo. E é nesse sentido que Original Sin se apoia no desenvolvido (e até mesmo na falta de) dos personagens adultos que orbitam ao redor dos adolescentes.

Ao longo dos episódios, as meninas percebem que têm mais do que mensagens anônimas ou o mesmo homem mascarado atrás delas em comum. Suas mães eram melhores amigas quando jovens e faziam parte do clichê de garotas populares e malvadas que intencionalmente praticavam bullying contra Angela Waters.

O trauma geracional, que é passado entre gerações e afeta a nossa resposta ao mundo, gera um silêncio que contribui com a perpetuação do sofrimento dentro das relações. Ao investigar a dinâmica entre mães e filhas, seja por experiência própria ou observação, é clara a existência de traumas que são carregados pela maneira como mães educam e reagem às suas filhas, principalmente se tratando de mulheres educando mulheres para viverem e existirem em um mundo patriarcal e machista. Dentro da série, quando a primeira geração se nega a dialogar sobre o que aconteceu com Angela Waters, o trauma vem em forma de bicho-papão (ou o homem mascarado que se denomina “A”) e está sedento por justiça, afetando a maneira como as adolescentes navegam pelo seu mundo e se comportam normalmente. Afinal, quanto mais silêncio, mais dor.

Apesar do gênero fazer qualquer sentimento ser elevado ao psicótico e macabro, a realidade é que carregamos os traumas e erros de nossos antecedentes na forma como conduzimos nossas vidas e respondemos às situações. É como Mouse privada de crescer aos olhos de suas mães superprotetoras após uma tentativa de sequestro quando era criança e que a faz se isolar do mundo real e recorrer à internet para criar laços. Ou como Noa que se sente responsável pela mãe viciada em drogas a ponto de colocar todo o seu futuro em risco para que a genitora não seja presa.

A questão de crescermos e aprendermos com os nossos erros está na certeza de que nossas atitudes serão diferentes caso a mesma situação aconteça novamente. Tal como quando Angela conta a Sidney (Kristen Maxwell) que foi estuprada e Davie (Ava DeMary) descobre que o abusador era o seu namorado, ambas a ignoram e tomam o lado dele. Vinte anos depois, suas filhas são vítimas do mesmo abuso e elas precisam e têm atitudes completamente diferentes do que tiveram no passado.

No entanto, crescer e amadurecer não é garantia de que nos tornaremos pessoas melhores e entenderemos o que fizemos de ruim e o que precisamos melhorar. Às vezes, o caráter está tão intrínseco em uma crença de quem devemos ser no mundo que não há volta. É o caso de Corey (Zakiya Young), que induz Faran, sua filha, a anos de traumas por uma condição física por puro capricho de não aceitar não ter uma filha perfeita aos padrões.

Também é o exemplo de toda a família Beasley construída à imagem da família modelo com o casal que serve a Deus e a lei, e as filhas gêmeas que são boas em absolutamente tudo. Na escola, Kelly e Karen são a reprodução do que seu pai é em casa e se tornam as garotas malvadas e que praticam bullying com o que julgam serem os mais fracos; enquanto Martha (Jennifer Ferrin) é a fiel esposa submissa e silenciosa, dando espaço para Tom (Eric Johnson) ser o macho alfa. Após a morte trágica de Karen durante uma falha tentativa de reproduzir a icônica cena de Carrie, a Estranha, filme de 1976, Kelly está sozinha para aguentar os abusos do pai e se manter na fachada de perfeição que sempre foi esperado dela e de sua irmã.

Ao passo que Tom Beasley quer justiça pela morte de sua filha mais querida, “A” quer justiça pela morte de Angela e ambos focam nas adolescentes para receberem o que acham que merecem conquistar. Como garantir essa justiça aos que se denominam injustiçados quando eles são perpetuadores da mesma dor que os afligiram? Tom Beasley demanda justiça pelo o que ele julga ser o assassinato de sua filha por bullying quando ele mesmo levou a jovem Angela Waters ao suicídio após abusá-la sexualmente ou como “A” quer receber a justiça pela morte de Angela indo atrás de cinco adolescentes inocentes que não tem controle sobre as ações de suas mães no passado; e como Karen pagou pelas atitudes cruéis que tinha, mas uma óbvia compensação pelos abusos que vivia privadamente?

Em todas essas histórias e narrativas é claro que não existe um certo ou errado, um vilão e um mocinho, e esse é exatamente o ganho que a franquia tem ao inserir o gênero e tropos do terror slasher dentro de suas histórias. A troca do gênero drama para o slasher refresca a premissa da série original e abandona questões problemáticas que se criaram no envolver do popular fanservice usado de inspiração para condenar o comportamento manipulador e predatório que Wes (Derek Klena) tem sob sua funcionária menor de idade, Tabby. No final, todas as histórias adolescentes têm o mesmo significado sobre como crescer é difícil e complexo, mas as nuances e perspectivas inseridas nas produções do gênero dão uma outra dimensão para explorar personagens complexas, reais e empoderadas.

Cada vez mais é criado espaço para a construção de histórias com protagonistas femininas que não caem na perpetuada exploração, objetificação e sexualização, algo bastante comum, e por muitas décadas, e isso se dá pela inserção do olhar feminino e diverso dentro das produções atrás das câmeras. Essas produções têm a chance de reinventar o gênero e encaixar tropos populares e solicitados dentro de histórias em que não apenas um grupo específico irá gostar, mas que cria também novos espectadores e amantes do gênero.

A série não tem o objetivo de renovar ou criar algo do zero, mas sim de homenagear grandes momentos e mestres do terror e dar uma nova visão a uma produção que foi por muito tempo amada e a escolha de muitos como principal peça de representatividade (muito pela falta de escolha), para que possamos continuar amando e celebrando as diferentes vivências e visões retratadas ali com complexidade.

Original Sin tem a maestria de capturar a moral de todo bom slasher: não é sobre quem é o vilão ou quem é o mocinho, é sobre como lidamos com os fatos que acontecem conosco e suas consequências. A rede de abuso e agressões envolvendo todos os personagens faz com que todos tenham suas parcelas de culpa e não são 100% absolvidos, mas quem é que tem um passado completamente limpo?


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!