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A monstruosidade na obra de Guillermo Del Toro

Na crença popular, a monstruosidade está ligada à anormalidade, aos desvios, e àquilo que nos aterroriza. De acordo com as definições do dicionário, os monstros são “seres cujo aspecto vai contra a ordem regular da natureza”. As obras ficcionais, desde os romances clássicos como Drácula e Frankenstein, até os longas de ficção-científica como Alien e Godzilla, exploram o conceito e contribuem para a formação desse imaginário monstruoso. E é impossível falar dos “filmes de monstro” sem citar as produções cinematográficas do diretor, produtor, escritor e roteirista Guillermo del Toro.

A monstruosidade é um tema recorrente, senão o principal, na obra do cineasta mexicano. Nascido em Guadalajara, Guillermo Del Toro tem uma carreira consolidada com mais de 20 créditos no cinema e diversos prêmios conquistados ao longo dos anos, incluindo dois Oscars (Melhor Filme e Melhor Direção). Entre suas principais produções, estão: A Espinha do Diabo (2001), O Labirinto do Fauno (2006), A Forma da Água (2017), além dos blockbusters Círculo de Fogo (2013) e Hellboy (2007). Esses longas têm algo em comum: os monstros. Mas, do mesmo modo que Del Toro transita pelos diversos gêneros do cinema, do terror aos filmes de herói, o conceito de monstruosidade é sempre abordado a partir de uma perspectiva diferente, porém consistente, em cada obra.

Durante a cerimônia do Globo de Ouro em 2018, na noite em que o cineasta conquistou o prêmio de Melhor Diretor por A Forma da Água, Guillermo del Toro abriu seu discurso de agradecimento com a seguinte frase: “Desde a minha infância, sempre fui fiel aos monstros. Fui salvo e absolvido por eles porque acredito que os monstros são os santos padroeiros da nossa beata imperfeição. E eles permitem e abraçam a possibilidade de errar e viver.

“Since childhood, I’ve been faithful to monsters. I have been saved and absolved by them, because monsters, I believe, are patron saints of our blissful imperfection, and they allow and embody the possibility of failing and live.”

A frase sintetiza a essência da filmografia de Guillermo del Toro. Enquanto diversas obras da cultura pop — sejam elas literárias ou do audiovisual — retratam os monstros como seres irracionais, indesejáveis, aterrorizantes e inerentemente maus, as criaturas de Del Toro são tratadas com fascínio. Os monstros do cineasta mexicano têm emoções complexas e, em várias histórias, características humanas: eles sentem, se apaixonam, são curiosos e fazem suas próprias escolhas. Do mesmo modo que o diretor explora a humanidade nos monstros, ele denuncia a monstruosidade dos humanos.

Em entrevista à revista Time, Del Toro afirmou que, para ele, “o horror é um gênero inerentemente político”. De acordo com o cineasta, “assim como os conto de fadas, há duas facetas do horror. Uma delas é pró-instituição, que é o tipo repreensivo de conto de fadas: ‘não vá para dentro da floresta, não desobedeça aos seus pais’. O outro é completamente anárquico e anti-establishment.” Quem acompanha a filmografia do diretor, ou pelo menos teve contato com algum de seus filmes, percebe que Del Toro adota a segunda visão em sua obra.

Em O Labirinto do Fauno, o diretor utiliza a fantasia e os elementos do horror para simbolizar as atrocidades da guerra pelo ponto de vista de uma criança. Considerado pela crítica e pelos fãs como o seu melhor trabalho, o filme se passa durante o período Franquista na Espanha, e narra a história de Ofélia (Ivana Baquero), uma garota que está se mudando com a sua mãe para a casa do seu novo padrasto, o sádico Capitão Vidal (Sergi López), que está a serviço do ditador Franco.

No primeiro dia na casa nova, Ofélia, que é uma criança apaixonada por leitura, segue uma fada até uma floresta, e chega até um labirinto, onde se encontra com um fauno (Doug Jones). Apesar da aparência monstruosa, a garota não tem medo da criatura. O monstro afirma que, na verdade, Ofélia é uma princesa do submundo, e que para retornar ao seu reino e conseguir a vida eterna, ela deve cumprir uma série de tarefas. Conforme o filme se desenrola, não fica claro se os encontros com as criaturas fantásticas e as aventuras de Ofélia realmente estão acontecendo ou se são uma forma de escape da realidade tão assustadora.

Se nos contos clássicos de terror e fantasia é perigoso ir à floresta por conta das ameaças que podemos encontrar no caminho, em O Labirinto do Fauno é justamente ao explorar o desconhecido que fazemos descobertas fantásticas. O longa subverte as expectativas e a visão que temos em relação à monstruosidade ao colocar uma criatura monstruosa como um guia e companhia de Ofélia, enquanto o real monstro é o General Vidal, um homem autoritário a favor de um regime ditatorial. Quando tudo está desmoronando à sua volta, Ofélia encontra conforto na companhia do Fauno.

As fábulas infantis são geralmente protagonizadas por animais que falam, e que, conforme a história se desenrola, nos ensinam como devemos nos comportar, e terminam com uma lição de moral. O Labirinto do Fauno tem o formato clássico de uma fábula, com uma criatura animalesca que vai nos dizendo o que fazer ao longo da jornada. A diferença é que, nesse caso, a lição de moral é a desobediência. A protagonista é uma criança desobediente, e essa é a sua maior qualidade. Ela desafia quem for preciso para fazer o que ela acredita que é o certo. Ofélia desobedece as figuras autoritárias e as regras do fauno, sem medo de encarar as consequências. Ela só alcança o seu “final feliz” quando prefere desobedecer mais uma vez ao invés de entregar a vida de um inocente.

Assim como outros filmes de Del Toro, O Labirinto do Fauno é uma fantasia ficcional bastante política e realista, que nos faz questionar o que é certo e errado, quem são os verdadeiros monstros, e quais as consequências de uma obediência cega. Em regimes autoritários, como o período da ditadura franquista retratado no longa, há a necessidade de manter a ordem a todo custo e a obrigação de seguir as regras impostas pela classe dominante. Então, nada mais significativo do que ter uma criança, mulheres e rebeldes desobedientes que se recusam a se curvar diante uma maioria como protagonistas e heróis da história. É a desobediência que os salva.

“Você só encontra você mesmo quando você desobedece. A desobediência, eu acho, é o início da responsabilidade.”

“You only find yourself when you disobey. Disobedience is the beginning of responsibility, I think.”

O Labirinto do Fauno é um filme complexo, que nunca deixa de ser atual. É um daqueles longas que não terminam quando rolam os créditos, e abrem espaço para discussões porque cada pessoa tem a sua maneira de interpretar. A obra pode ser revista inúmeras vezes porque sempre vamos ter uma nova perspectiva sobre os temas que são abordados, ou pescar algum detalhe que deixa a trama ainda mais completa.

Depois de O Labirinto do Fauno, Guillermo del Toro passou mais de uma década transitando por vários gêneros — dos filmes de kaijus, ao terror gótico — até lançar A Forma da Água. O longa, ganhador de quatro prêmios da Academia, incluindo o Oscar de Melhor Filme em 2018, é um conto de fadas adulto, que narra a improvável história de amor entre uma mulher muda e uma criatura mágica das águas.

A trama se passa no período da Guerra Fria, e apresenta Elisa (Sally Hawkins) como protagonista: uma mulher muda que leva uma rotina repetitiva e calculada. Ela trabalha como zeladora em um complexo científico, e tudo muda quando ela tem contato com uma criatura fantástica das águas que está sendo mantida em cativeiro. Ela se fascina pelo anfíbio, faz um plano para resgatá-lo, e se apaixona. É uma daquelas fantasias que só o del Toro poderia fazer funcionar, e como funciona!

Assim como em Labirinto do Fauno, Del Toro utiliza o realismo fantástico para contar a história de personagens que não têm voz. As heroínas, heróis e princesas do diretor são, em geral, pessoas invisibilizadas, tanto no contexto da época retratada, quanto nos dias atuais: mulheres, pessoas racializadas, LGBTQs, PCDs, trabalhadoras, crianças, etc. No caso de A Forma da Água, são justamente os despercebidos e subestimados que conseguem resgatar a criatura fantástica. Nem Elisa, nem o anfíbio têm voz, mas isso não os impede de conseguirem se comunicar, e se apaixonar. Em um dos momentos mais marcantes do filme, Elisa afirma a seu amigo Giles (Richard Jenkins) que a criatura é a única que a compreende por completo.

“Quando ele olha pra mim, o jeito que ele me olha… Ele não sabe o que me falta, ou como eu sou incompleta. Ele me vê pelo o que eu sou, como eu sou.”

“When he looks at me, the way he looks at me… He does not know, what I lack… Or – how – I am incomplete. He sees me, for what I – am, as I am.”

Novamente, o real monstro da história é um homem autoritário, sexista, que tortura e pisa em cima de quem for preciso para se manter no poder. O Coronel Richard Strickland (Michael Shannon) é muito mais assustador do que a criatura. Em A Forma da Água, os espectadores sentem empatia pelo “monstro” e repulsa pela humanidade. A monstruosidade na obra de Del Toro pode ser encarada como uma alegoria à alteridade. As criaturas fantásticas do cineasta — principalmente por causa da aparência física “assustadora” — representam todos aqueles que desviam da norma estabelecida por uma maioria e são tratados como “os outros”, e até como uma aberração pela sociedade. Nos filmes de Guillermo Del Toro, é muito mais fácil se reconhecer nos monstros e nos desajustados, do que nos homens.

Assim como as pessoas desajustadas e os monstros são os protagonistas dos filmes, é preciso mencionar que desde o início da carreira, o diretor busca trazer histórias com protagonismo feminino. E não é apenas uma questão de representatividade pela representatividade. As personagens femininas de Del Toro, sejam elas desafiando monstros, ou apaixonadas por eles, são complexas, e agentes da própria história.

Em O Labirinto do Fauno, por exemplo, temos três mulheres principais: Ofélia, Carmen (Ariadna Gil), mãe de Ofélia, e Mercedes (Maribel Verdú), que trabalha na casa do General, mas na verdade está ajudando o grupo de rebeldes. Cada uma tem uma história complexa, além de motivações próprias e diferentes. Todas elas encontram um jeito de desafiar as ordens do general ou frustrar os seus planos, direta ou indiretamente. Apesar de retratar o sofrimento e a violência machista sofrida por essas mulheres, o filme não faz isso de forma gratuita, ou apenas como um motivador para a narrativa.

As personagens femininas de Del Toro, assim como os seus monstros, são complexas e fazem suas próprias escolhas. E o diretor não se prende a apenas um arquétipo estereotipado para retratá-las: elas não são completamente boas e ingênuas, mas também não caem na caixa do vilanismo puro. Inclusive, um teste — assim como o de Bechdel — usado para medir a representatividade feminina no cinema, carrega o nome de uma das personagens de Del Toro: Mako Mori, de Círculo de Fogo (2013).

O Teste Mako Mori tem as seguintes regras:

1. Uma produção deve ter uma personagem feminina;
2. Essa personagem deve ter seu próprio arco narrativo;
3. Esse arco narrativo não deve servir apenas como suporte para a narrativa masculina.

Além da maioria das produções de Del Toro passarem no Teste de Bechdel, elas também apresentam protagonistas femininas complexas que estão aprovadas no Teste Mako Mori. E é muito mais fácil se identificar com personagens que têm falhas e defeitos, do que com mulheres que são “perfeitas”, mas escritas de forma completamente rasa.

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro

O que podemos interpretar da filmografia de Del Toro é que a monstruosidade e a fantasia são completamente políticas, e é possível retratá-las de forma questionadora, quebrando a obviedade entre bem e mal, heróis e vilões, monstros versus homens. Em Hellboy II: o Exército Dourado (2008), vemos um monstro e um anfíbio apaixonados, ouvindo uma trilha sonora de músicas de amor, enquanto bebem uma cerveja. Tem algo mais humano que isso?

Do outro lado, os personagens de O Beco do Pesadelo (2021), e as figuras autoritárias de A Forma da Água e O Labirinto do Fauno simbolizam os atos monstruosos que a humanidade é capaz de cometer. No final das contas, a monstruosidade na obra de Del Toro é tão sensível e tocante, pois ela é um reflexo do que nós temos de mais humano.

“A beleza dos monstros é que eles precisam da nossa aceitação e o do nosso amor para sobreviverem.”

“The beauty of monsters is that they require our acceptance and our love to survive.”

Referências:


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!