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As personagens femininas de Liberdade, Liberdade

Não costumo assistir a muita televisão, mas quando vi o primeiro anúncio de Liberdade, Liberdade, fui fisgada. Uma história focada na filha de Tiradentes (ignoremos o fato de que eu nem sequer sabia que Tiradentes teve uma filha, para começo de conversa), baseada no livro escrito por Maria José de Queiroz, parecia uma ótima ideia.

Então, a novela começou. No primeiro capítulo conhecemos Joaquina ainda criança (Mel Maia), filha ilegítima do Auferes (Thiago Lacerda) — uma menina apaixonada pelo pai (que nem se dignou a registrar a criança, diga-se de passagem), mas sendo criada pela mãe (Letícia Sabatella), porque claro. Então Auferes é preso e a menina foge de casa, no interior de Minas Gerais, para ir atrás do pai, e consegue não só chegar ao Rio de Janeiro sozinha, como encontra o pai na cadeia e presencia sua execução. No meio da multidão, Raposo (Dalton Vigh), um minerador que surge do nada, vê a menina e cobre os olhos dela (numa cena que me lembrou muito a execução de Ned Stark na primeira temporada de Game of Thrones). O homem resolve, então, levar a menina de volta para a casa da mãe, enquanto os dois brigam e discutem interminavelmente como se tivessem a mesma idade.

No caminho, eles são assaltados e Joaquina é sequestrada pelo bando chefiado por Mão de Luva (Marco Ricca), com o resgate fixado no peso dela em ouro. Raposo segue em frente, pensando no que fazer, e vai até a casa da mãe da menina, que a essa altura está agonizando depois de ter sido atacada pelo mesmo homem que denunciou Tiradentes, e promete à ela que vai cuidar de Joaquina. Ele então volta, paga o resgate (o minerador era, na verdade, um homem rico), enfia a criança em um baú (literalmente) e para com ela para Portugal, onde dezesseis anos se passam fora das nossas vistas.

Então chegamos onde eu queria chegar: no povoado de Vila Rica, depois que Rosa Raposo (nova identidade de Joaquina, agora interpretada por Andreia Horta) volta ao Brasil com a família no mesmo comboio que trouxe a família real para o país, e a história começa realmente a acontecer.

A princípio, me pareceu que os melhores personagens eram os homens, o que me deixou bastante chateada. Não só eles dominavam a trama, como pareciam muito mais bem construído em relação às mulheres. Mas, com o passar do tempo, as personagens femininas foram se mostrando.

As “damas finas”

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A “alta sociedade” de Vila Rica não é muito diversificada. Temos a família Farto, o Intendente, e a recém chegada família Raposo. Com algum esforço, é possível incluir a família Xavier, que está falida e não aparece com tanta frequência. De relevante entre essas famílias temos a própria Rosa/Joaquina, Bertoleza (Sheron Menezzes), Dionísia (Maitê Proença), Branca (Nathalia Dill) e Luzia (Chris Couto).

Rosa foi minha primeira grande decepção. Enquanto a intenção parece ser construí-la como uma personagem forte, o resultado é uma personagem bidimensional. É o tipo de personagem que sofre tanta pressão para ser forte que parece uma caricatura. Ela não é só uma moça que desafia os padrões de gênero da época e não se importa para as más línguas: ela extrapola isso até se tornar uma personagem extremamente mimada que faz milhares de coisas desnecessárias e irresponsáveis. Aquele tipo superior e idealizado que só faz/deseja coisas boas e que, definitivamente, não existe na vida real.

Junto dela está sempre Bertoleza, nascida escrava, comprada por Raposo aos três anos, alforriada e criada quase como uma terceira filha da família. Quando chega ao Brasil, Bertoleza tem que lidar com todos os olhares e preconceito do povo — e, não fosse o fato de ser negra, ela seria uma típica dama de época, sem nada de extraordinário. As coisas podem ficar mais interessantes com o plot romântico que vai ganhar com o irmão do intendente, mas, pessoalmente, acho que a história seria mais interessante se ele não fosse cego.

Dionísia, por sua vez, é uma personagem muito interessante. Como pessoa, é 90% detestável, sendo que o que a salva um pouco é a dedicação e preocupação genuína que tem com Rosa/Joaquina, mesmo sabendo que ela não é sua sobrinha de sangue. Basicamente, Dionísia não tem escrúpulos quando se trata de fazer o que acha que é necessário para “proteger” a família, mas as falhas de caráter não param por aí — com ênfase na forma como trata os escravos. O amor dela por Rosa/Joaquina, no entanto, é um ponto de humanização da personagem.

Luzia e Branca Farto são um caso à parte. Luzia nem merecia ser citada porque é muito mais uma personagem-acessório da filha do que uma personagem autônoma. Branca é o que deveria ser o “alívio cômico” do folhetim, mas só consegue ser irritante e, às vezes, cruel (como achar graça de uma pessoa que tem a capacidade de mandar cortar a língua de outra?). Sua diferença para Rosa/Joaquina é só que ela tende para o lado “fútil” e passional, enquanto a protagonista é mais idealista. No fim, são ambas farinha do mesmo saco.

Alexandra (Juliana Carneiro da Cunha) é única que realmente se salva. O começo foi devagar, mas o que parecia uma personagem prepotente e autoritária é, na verdade, uma ótima personagem e ótima pessoa. Apesar de rica e de supostamente ter relações aristocráticas, Alexandra une qualidades que não são frequentemente colocadas em uma mesma personagem: é muito inteligente e uma boa pessoa. Tem muita habilidade para administrar o patrimônio e, ainda assim, tem o pé no chão; é rica e poderosa, mas não tem a crueldade que normalmente vem no pacote. Adota a filosofia de que cada um sabe da sua vida e salva o dia. Se dependesse desse grupo, e sem a adição preciosa de Alexandra, Liberdade, Liberdade seria um fiasco.

As prostitutas

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Meu núcleo favorito da novela, o grupo composto por Virgínia (Lília Cabral) e suas três “afilhadas” principais é muito mais interessante e promissor. Primeiro, porque é impossível não amar Virgínia; depois, porque suas “afilhadas” têm personalidades bem diferentes, formando um conjunto geral bem interessante; e, por fim, porque esse é o espaço em que mais se vê interação entre mulheres.

Virgínia é uma cafetina, chamada pelas meninas de madrinha. Fique claro que sou completamente contra a venda de mulheres, especialmente a cafetinagem — e colocar uma mas nessa frase poderia soar como se eu estivesse abrindo uma exceção e não estou. A história das meninas nunca foi contada, mas a impressão é realmente a de que eram jovens que não tinham nada nem ninguém a quem recorrer e, nesse ponto, Virgínia é como uma espécie de chefe de família. As coisas acabam muito romantizadas porque, na novela, não enxergamos claramente o fato de que ela lucra com os corpos das meninas, o que obviamente acontece. Ainda assim, ela ocupa o lugar da mãe que elas aparentemente não tiveram — dá proteção, zela pela ordem e ama todas elas. Virgínia também é uma das (se não a) maiores agitadoras da revolução, e tem um plot romântico engatilhado, mas é difícil saber se os roteiristas vão ter peito para desenvolver essa trama.

Dentre as prostitutas, Mimi (Yanna Lavigne), Gironda (Hanna Romanazzi) e Vidinha (Yasmin Gomlevsky) são as que recebem destaque. Mimi é carinhosa, autossuficiente e tem um ótimo coração — minha favorita. Gironda é romântica e sonhadora. Vidinha é prática, inteligente e bem relacionada. Se fôssemos falar em termos astrológicos, Virgínia seria ariana (fogo), Mimi seria canceriana (água), Gironda algum signo de ar e Vidinha, taurina (terra).

Se o núcleo caiu no gosto popular ou foi planejado para ter destaque, fato é que elas ganharam espaço e novas camadas de personalidade que transformaram o grupo e suas integrantes nos melhores personagens de toda a novela. E, por mais que elas briguem bastante, dá para enxergar no bordem um espaço exclusivamente feminino e de irmandade.

As escravas

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Eis um núcleo tão mal aproveitado que dá até desgosto.

Não são poucas as escravas, mas elas mal interagem entre si e quase não aparecem. Liberdade, Liberdade foca na revolução, tem como tema central a luta pela igualdade, mostra uma “grande preocupação” dos brancos revolucionários com a questão da escravidão, mas, na hora de dar voz às personagens negras, nada.

A começar por Celeste (Olívia Araújo), ex-escrava da família Xavier, vendida para os taberneiros, que ocupa o papel estereotipado de comilona, linguaruda, engraçadinha e levemente indolente. Passamos por Blandina (Mariana Nunes), que mais observa do que faz qualquer coisa, e Luanda (Heloísa Jorge), que é apaixonada pelo negro usado por Dionísia como brinquedo sexual, não tem papas na língua e tinha um potencial imenso que não foi bem aproveitado. O talento de todas elas é de fazer qualquer um chorar — de raiva — com o quanto é mal aproveitado; destaque para Heloísa Jorge, que vai da cara de inocência ao escárnio em uma fração de segundo e com clareza e sutileza colossais.

E então temos Malena (Lucy Ramos). Em princípio, ela parece seguir por um caminho diferente, coloca a língua no mundo, chantageia as brancas — mas, claro, não aconteceu: Malena teve a língua cortada e morreu sem contar sua história. No meio de tudo isso, não houve nenhuma interação relevante entre essas mulheres, apenas o potencial desperdiçado.

A Bruxa

Finalmente, chegamos na que talvez seja minha personagem favorita de todas: Ascensão, a Bruxa (Zezé Polessa): uma mulher que vive sozinha no meio do mato, tem um caso com o líder do bando salteador, detém todo o conhecimento, conhece a cura para diversas doenças, faz abortos e defende a liberdade de escolha das mulheres, tem um facão enorme como arma oficial e um coração de ouro.

Se deixada livre, Ascensão dominaria a série. Por isso, ela também foi cuidadosamente delimitada pela sua própria natureza, pela vida sozinha, por raramente sair do seu habitat e toda a sua interação acontecer quando as pessoas vão até ela pedir ajuda. Não dá para ser uma pessoa como ela e querer viver em sociedade. Mas fica declarado aqui meu amor pela personagem.

Em linhas gerais, essas são as personagens que têm destaque no folhetim e dá pra dizer que é um grupo relativamente bem variado. Como na vida, o grupo mais sem graça e desagradável é o que mais destaque tem — e também o que tem as piores personagens (não só piores em termos de serem pessoas ruins, mas também por serem as mais fracas). Em alguns pontos, fica claro que a mão por trás de tudo é uma mão masculina. Gosto de imaginar qual poderia ser o resultado se elas tivessem continuado nas mãos femininas de que saíram em primeiro lugar.